Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Diabólica delação. Uma tautologia ameaçadora.
Texto
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Manda a prudência: antes de empregar um meio de controle social – político, econômico, jurídico – é preciso conhecer sua gênese, perfeições ou fraquezas. Nas “delações premiadas”, frutos de nada santas inquisições, tais cautelas são esquecidas. O prisioneiro, para escapar dos autos de fé estrelados por juízes, promotores e policiais que deveriam ser neutros, confessa atos e palavras pouco submetidos ao controle fático e subjetivo. Deixam de ser revistos motivos trazidos pelas paixões mais baixas. Afetos negativos são velhos como a humanidade. E sua análise recolhe milhares de anos. Não por acaso, nas falas religiosas, o agente de ódio e desunião chama-se Diabo, o turbulento delator. Ele agiu em Atenas, Roma, na inquisição (o terrível Monitório exigindo a delação geral, pelo inquisidor português Dom Diogo da Silva, em 1536), sob o absolutismo (Lacôte-Fernades, H. Les procès du cardinal de Richelieu, 2010), nos regimes totalitários. As ditaduras brasileiras nele tiveram um auxiliar polivalente.
Manda a prudência: antes de empregar um meio de controle social – político, econômico, jurídico – é preciso conhecer sua gênese, perfeições ou fraquezas. Nas “delações premiadas”, frutos de nada santas inquisições, tais cautelas são esquecidas. O prisioneiro, para escapar dos autos de fé estrelados por juízes, promotores e policiais que deveriam ser neutros, confessa atos e palavras pouco submetidos ao controle fático e subjetivo. Deixam de ser revistos motivos trazidos pelas paixões mais baixas. Afetos negativos são velhos como a humanidade. E sua análise recolhe milhares de anos. Não por acaso, nas falas religiosas, o agente de ódio e desunião chama-se Diabo, o turbulento delator. Ele agiu em Atenas, Roma, na inquisição (o terrível Monitório exigindo a delação geral, pelo inquisidor português Dom Diogo da Silva, em 1536), sob o absolutismo (Lacôte-Fernades, H. Les procès du cardinal de Richelieu, 2010), nos regimes totalitários. As ditaduras brasileiras nele tiveram um auxiliar polivalente.
Volumes imensos acolhem o exame de vergonhosas práticas na ordem
política. A história infame define culturas, Estados, credos
conflitantes. No arsenal de baixezas dois itens merecem maior cautela, a
calúnia e a delação. Para a denúncia caluniosa, vale retomar a Apologia de Sócrates (19a – 19 b). A peça acusatória (Diabolé)
incrimina o filósofo por suposta sofística. O pensador transformaria
argumentos fracos em fortes, no mesmo passo em que investigava os entes
subterrâneos e celestes. Na acusação temos o ensaio de caçadas milenares
contra a pesquisa científica. O termo usado para ferir Sócrates
refere-se à Zetesis a busca dos
fenômenos naturais ou históricos. A acusação une-se à calúnia segundo a
qual o réu corrompe a juventude de Atenas, ensinando a impiedade. Exílio
ou cicuta, a sentença já agia no indicador endurecido de Meletos.
Denúncia e calúnia, faces do mesmo comportamento.
Platão cita vários exemplos de fala caluniosa. Na República (489d) é indicado o ultraje contra os praticantes da filosofia. Segundo a acusação (Diabolé),
quem se dedica àquele estudo é pervertido ou inútil. A própria
filosofia pode ser caluniada se o praticante se mostra dela indigno (Carta 7, 329b). O filósofo diferencia testemunho, denúncia, calúnia (Leis, 937 a – e). No Estado a ser instituído segundo a justiça “se
alguém for pego multiplicando processos indevidamente (...), qualquer
um pode indigitá-lo por procedimento perverso ou ajuda em procedimento
perverso. Ele será julgado pela Corte Superior”. Se culpado, “deve-se
ver se agiu por avareza ou ambição de glória. Se estrangeiro, na
recidiva será banido. No caso de um cidadão, morto”. A pena capital é
antídoto contra a pletora de processos e delações que infernizam a vida
coletiva. Platão recorda as peças de Aristófanes, sobretudo As Vespas. Nela, os
querelantes e suas picadas fazem inchar a cidade com chicanas que visam
alvos financeiros ou políticos. Em tal ambiente, o sicofanta tem seu
berço esplêndido. Aristófanes persegue os defeitos individuais e
coletivos fazendo o povo gargalhar. Platão conduz ao ridículo as
atitudes consideradas por ele como nocivas. (O’Gorman, Diderot the satirist, mas também David Bouvier : “Platon et les poètes : peut-on rire de Socrate?” in Desclos, M.L. Ed. Le rire des Grecs, anthropologie du rire en Grèce ancienne).
Um escritor satírico conhecido é Luciano de Samósata.
Seus textos oferecem o arsenal contra a tolice e a miséria humana, em
estilo diáfano que marcou a cultura renascentista e moderna. Basta
pensar no quanto Erasmo, Rabelais, Tomás Morus. Denis Diderot dele se
nutriram. Obras como O Elogio da Loucura e O Sobrinho de Rameau seriam impensáveis sem Luciano. (J. L. Brandão : A poética do hipocentauro - Literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata Editora UFMG e R. Romano, Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot, Ed. Unicamp).
Uma peça candente de Luciano tem o seguinte título: Sobre a Delação (Diabolé) que não se deve nela acreditar de modo apressado, traduzido para o latim por Guarino de Verona no inicio dos 400 (Calumniae non temere credendum). O
editor mais recente de Oxford afirma ser o texto “pura retórica”. Mas
retórica crudelíssima no entanto, pois examina o péssimo comportamento
presente na delação. Um editor francês do século 19 acentua: “Diabolé
se traduz ordinariamente como calúnia; mas tal exegese é falsa. O
próprio título o prova. Luciano não diria que não se deve acolher com
ligeireza a calúnia, pois nunca devemos nela acreditar, visto que a calúnia é acusação falsa. Diabolé
significa maledicência, ruídos verdadeiros ou falsos espalhados contra
um inimigo, no desejo de o prejudicar”. O texto ataca a delação
caluniosa e a rapidez com a qual ela se espalha. Quando as delações
brasileiras são feitas e vazadas em velocidade similar à do jato, com
ligeireza e pressa, vale reter a advertência.
Luciano usa a história do pintor Apeles, que sofreu uma
delação premiada de Antifilo, rival invejoso do seu talento e prestígio
junto a Ptolomeu. Houve de fato uma tentativa de golpe, em Tira, contra o
dirigente. Apeles nunca estivera naquela cidade, não conhecia o
golpista Teodotas, de quem sabia apenas ser um auxiliar de Ptolomeu.
Mas Antifilo convenceu o quase deposto, ao insinuar que Apeles teria
sido visto na Fenícia em almoço com Teodotas, sussurando aos seus
ouvidos. Logo, a tentativa de golpe teria sido inspirada por....Apeles!
Acostumado à lisonja, Ptolomeu não pesou elementos vitais da delação:
ela vinha de um rival de Apeles, o próprio Apeles não tinha importância
política para inspirar um golpe de Estado, Apeles nunca estivera em
Tira. O acusado foi salvo por um golpista preso que, com nojo da baixeza
exibida por Antifilo, declarou que o pintor nada sabia sobre o golpe.
Ptolomeu assumiu a inocência de Apeles e lhe deu uma recompensa em
dinheiro e Antifilo como escravo. Mas a vingança maior do artista veio
ao pintar um quadro, cujo título é justamente “A Delação”. No
Renascimento o motivo foi retomado por Botticelli (“A calúnia de
Apeles”). Leon Battista Alberti trata o tema no De Pictura (3, 53-54).
Luciano assim descreve o quadro: “à direita está um homem
que ostenta grandes orelhas, semelhantes às de Midas. Ele estende o
braço para a Delação. Perto dele surgem duas mulheres, uma parecida com a Ignorância,
a outra com a Suspeita. No outro lado vemos a Delação caminhar com a
forma de uma jovem perfeitamente bela, rosto inflamado, submetido à
cólera e ao ódio. Nma das mãos ela empunha a tocha ardente, com a outra,
arranca os cabelos de um jovem que levanta os braços ao céu e parece
tomar os deuses por testemunha. Um homem pálido e desfigurado a conduz.
Seu olhar fixo e sombrio, o raquitismo extremo, fazem lembrar os doentes
emagrecidos por longa abstinência. O reconhecemos: é a Inveja. Duas outras mulheres seguem a Delação, a encorajam, arrumam suas vestes e cuidam dos enfeites. Uma é a Conspiração ( Epiboulé ) e a outra, a Fraude (Apatē) acompanhadas de longe por outra mulher cuja face anuncia a dor, vestida de negro, roupas rasgadas. Temos o Arrependimento (Metanoia). Ela chora, vira a cabeça e olha confusa a Verdade (Alētheia)
que vem ao seu encontro”. No Brasil, uma pintura assim traria outro
personagem alegórico: a cadavérica presunção de inocência.
Com a descrição (Ékphrasis) vívida, na qual recolhe pontos éticos,
sobretudo os negativos, Luciano define a delação. “Uma espécie de
acusação clandestina feita na ausência e sem o conhecimento do acusado, à
qual um terceiro dá fé porque só existe uma fala, sem contraditor”.
Na história milenar da infâmia, saímos da Grécia e chegamos ao Brasil. A
delação implica má fé de quem a move, de quem ouve, de quem julga, de
quem acusa. O delator não pode ser boa pessoa, pois gente honesta não
prejudica nem delata, mas age em prol do bem coletivo. O delator é
injusto, antes e depois de delatar, é inimigo das leis e perigoso para
quem o frequenta. A pessoa que usa, contra o próximo, a arma clandestina
da delação rouba os ouvidos dos auditores, para os fechar às falas que a
contradizem. Solon e Draco obrigam os juízes a ouvir a outra parte nos
processos. É uma blasfêmia acolher apenas o acusador, sem escutar o
acusado. A delação, continua Luciano, “violenta a justiça, a lei e o
juramento dos juízes”. Em tempos de premiada e premida delação
brasileira, vale a pena reler o texto, fonte de prudência e retidão
ética.
Voltarei ao tema, revisitando autores que trataram
do assunto. Segundo as notícias sobre a “luta contra a corrupção”,
parece que muitos brasileiros, na sociedade e no Estado, em vez da
prudência, imitam Ptolomeu. Eles decretam apressadamente a culpa antes
de examinar a integralidade dos fatos e do direito. Immanuel Kant põe
como base do saber científico o exame dos fatos com o maior rigor possível. E com não menor rigor, auscultar as leis
que os sancionam, positiva ou negativamente. Tal lição é afastada pela
midia, justiça e opinião pública. Semelhante “esquecimento” é um câncer a
mais em nossa medonha ética e diabólico arcabouço institucional.
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