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sábado, 4 de novembro de 2017

Lutero como discípulo de Paulo e o cristianismo como religião do ressentimento. Entrevista especial com Andreas Urs Sommer, ihu.unisinos.

Lutero como discípulo de Paulo e o cristianismo como religião do ressentimento. Entrevista especial com Andreas Urs Sommer

Revista ihu on-line

Por: Márcia Junges | Tradução: Walter O. Schlupp | 04 Novembro 2017

“Em suas primeiras obras, Nietzsche, cujo pai era pastor luterano, apresentava uma relação bastante positiva com Lutero; em O Nascimento da Tragédia ele o coloca como pioneiro da cosmovisão dionisíaca. A par do seu distanciamento com seu mentor de outrora, Richard Wagner, Nietzsche vai se distanciando de Lutero. Agora o Reformador se apresenta como representante de uma cosmovisão retrógrada, como valentão da colônia e provinciano chauvinista alemão, até mesmo como restaurador de um cristianismo que, na verdade, já está fadado ao ocaso, como inimigo das ciências e da autoemancipação da pessoa humana.” A afirmação é de Andreas Urs Sommer, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

E acrescenta: “Também Paulo só recebe um papel central na obra tardia de Nietzsche. Ali ele é o inventor propriamente dito do cristianismo, “gênio do ódio”, que teria conseguido transformar a mensagem de Jesus numa religião do ressentimento de primeira categoria. Nisso, Nietzsche considera Lutero discípulo de Paulo, porém sem lhe atribuir a mesma importância: sua influência histórica teria sido de séculos, enquanto a de Paulo, de milênios.” Paulo seria o protagonista e Lutero, o “continuador dessa total inversão de intuições originariamente jesuínas.”

Andreas Urs Sommer | Foto: Friburg University

Andreas Urs Sommer é filósofo, professor catedrático de Filosofia, área de Filosofia da Cultura e especificamente Friedrich Nietzsche, na Universidade Albert Ludwig em Freiburg, Alemanha. Estudou nas Universidades de Basel, Göttingen e Freiburg. Publicou inúmeras obras, mais recentemente Nietzsche und die Folgen [Nietzsche e as Consequências] (Stuttgart: J. B. Metzler, 2017).

A entrevista é publicada na revista IHU On-Line, no. 514, cujo tema de capa é Lutero e a Reforma. 500 anos depois. Um debate.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da crítica formulada por Nietzsche, quem é Lutero e o que é o Luteranismo?

Andreas Urs Sommer - Em primeiro lugar surpreende quão multifacetadas são as imagens que Nietzsche [1] tem de Lutero [2]. De forma alguma é possível aplicar a elas um denominador comum. Em suas primeiras obras, Nietzsche, cujo pai era pastor luterano, apresentava uma relação bastante positiva com Lutero; em O Nascimento da Tragédia ele o coloca como pioneiro da cosmovisão dionisíaca. A par do seu distanciamento com seu mentor de outrora, Richard Wagner [3], Nietzsche vai se distanciando de Lutero. Agora o Reformador se apresenta como representante de uma cosmovisão retrógrada, como valentão da colônia e provinciano chauvinista alemão, até mesmo como restaurador de um cristianismo que, na verdade, já está fadado ao ocaso, como inimigo das ciências e da autoemancipação da pessoa humana. Por outro lado, Nietzsche continua tendo em alta estima a tradução da Bíblia por Lutero; ele chega a imitar o jeitão do alemão bíblico de Lutero em sua obra Assim falou Zaratustra. Em suas obras tardias, Nietzsche acaba elaborando uma oposição sistemática entre Reforma [4] e Renascença.

IHU On-Line - Por que Nietzsche compreende a Renascença como uma transvaloração dos valores cristãos?
Andreas Urs Sommer - Para o Nietzsche tardio, a Renascença se constitui na tentativa de romper a moral escravista judaico-cristã que já prevalece há dois mil anos. As virtudes cristãs da negação do mundo, do ficar voltado para o além, da submissão e da compaixão teriam sido substituídas, com a Renascença, pela afirmação do mundo, orientação para o aquém, pela altivez e grandiosidade. Para Nietzsche, a Renascença, em seus grandes feitos culturais bem como em sua crueldade por vezes exorbitante, teria colocado no centro o grande indivíduo, para assim emancipá-lo da consciência suja cristã.

IHU On-Line - E qual é a razão pela qual Nietzsche diz que Lutero perdeu a grande chance de evitar a decadência alemã quando impediu a Renascença?
Andreas Urs Sommer - Em O Anticristo Nietzsche expõe o conflito histórico-universal entre a Renascença e a Reforma; Lutero aparece como o verdadeiro destruidor da emancipação dos vínculos cristãos que a Renascença conseguira. Renascença e Reforma, portanto, não são vistas como geralmente ocorre na historiografia iluminista, como movimentos paralelos de uma libertação dos grilhões medievais, e sim como estando em contradição irreconciliável. Para Nietzsche, Lutero agora é representante resoluto do retrocesso para o embaraço escravista moral cristão. Lutero – e com ele os alemães – levariam a culpa de ainda não nos termos livrado há muito do jugo do cristianismo.
IHU On-Line - Que paralelos podem ser traçados entre a crítica nietzschiana a Paulo de Tarso [5] e Lutero? Quais são seus contextos e diferenças fundamentais?

A teologia de Lutero resolutamente quer ser uma teologia da cruz
Andreas Urs Sommer - Também Paulo só recebe um papel central na obra tardia de Nietzsche. Ali ele é o inventor propriamente dito do cristianismo, “gênio do ódio”, que teria conseguido transformar a mensagem de Jesus numa religião do ressentimento de primeira categoria. Nisso, Nietzsche considera Lutero discípulo de Paulo, porém sem lhe atribuir a mesma importância: sua influência histórica teria sido de séculos, enquanto a de Paulo, de milênios.

IHU On-Line - De acordo com Nietzsche, o único cristão morreu na cruz. A partir dessa afirmação, como se pode entender o tipo de cristianismo sistematizado por Paulo e a sua Reforma, proposta por Lutero?
Andreas Urs Sommer - Com efeito, Nietzsche, em sua obra tardia, retira Jesus de Nazaré do contexto geral de decadência da história universal com a qual ele descreve a história judaico-cristã. Jesus teria sido o único cristão autêntico, que teria ensinado não uma nova fé, mas uma nova “prática”, qual seja, de abandonar todas as distâncias no sentimento. Os conceitos de Jesus teriam sido pura linguagem simbólica, que nada teria a ver com doutrinas de fé. Os próprios discípulos diretos já não teriam entendido seu mestre, o “grande simbolista”; com a eclesialização do cristianismo teria ocorrido a total perversão do modelo jesuíno. Paulo é o protagonista, e Lutero, o continuador dessa total inversão de intuições originariamente jesuínas.

IHU On-Line - Se pensarmos que Nietzsche contrapõe Dionísio ao Crucificado, como entender o empreendimento de Lutero ao retirar Jesus da cruz e assim o representar nessa religião?
Andreas Urs Sommer - A oposição entre Dionísio e o crucificado com que Nietzsche opera em suas manifestações tardias não é a oposição entre o helênico deus do vinho e o Jesus de Nazaré com quem Nietzsche simpatiza nessa contraposição. O “crucificado” é o Cristo da doutrina paulina eclesiástica, aquilo em que a dogmática o transformou: o filho de Deus que morreu pelos pecados do mundo. A teologia de Lutero resolutamente quer ser uma teologia da cruz. Para Nietzsche, esta é uma expressão da perversa divinização do sofrimento, a qual ele combate de todas as formas possíveis, porque ela ao mesmo tempo acompanha uma autodegradação, autodiminuição da pessoa humana. Também Dionísio é o deus do sofrimento, porém o qual, na construção de Nietzsche (trata-se de um deus fictício), diferentemente do deus cristão luterano, afirma positivamente o mundo e não degrada as pessoas a miseráveis pecadores.

IHU On-Line - Em que medida a formação luterana de Nietzsche é um aspecto importante a ser analisado em sua crítica a essa religião?
Andreas Urs Sommer - Com certeza a socialização luterana de Nietzsche desempenha certo papel ao se tentar reconstruir a imagem que ele faz de Lutero. Além de se ter criado numa casa pastoral luterana, se fosse pelo desejo da família, ele próprio também deveria ter-se tornado pastor luterano, tendo inclusive iniciado o estudo de teologia. Lutero, de certo modo, fazia parte do DNA social e mental de Nietzsche. Mas o que chama a atenção é que ele nunca estudou Lutero a fundo, com exceção da tradução da Bíblia, mas obteve suas informações exclusivamente de segunda mão. Ele sempre adaptava seu Lutero às demandas filosóficas e polêmicas do momento.

IHU On-Line - Qual foi a recepção e repercussão da crítica nietzschiana em seu tempo?
Depois, quem simpatizou com a crítica de Nietzsche a Lutero foram principalmente autores católicos, que pretendiam destacar quão prejudicial Lutero teria sido; para tanto inesperadamente encontraram em Nietzsche uma testemunha a calhar.
Andreas Urs Sommer - Inicialmente a repercussão da crítica fundamental de Nietzsche a Lutero foi bastante reservada. Posteriormente foram principalmente teólogos protestantes que se esforçaram em processá-la, na tentativa de demonstrar o quanto Nietzsche teria mal-entendido Lutero, ou que Lutero e Nietzsche em suas críticas na verdade estariam muito mais de acordo entre si do que o próprio Nietzsche pensava. Depois, quem simpatizou com a crítica de Nietzsche a Lutero foram principalmente autores católicos, que pretendiam destacar quão prejudicial Lutero teria sido; para tanto inesperadamente encontraram em Nietzsche uma testemunha a calhar.

IHU On-Line - Qual é o sentido da Reforma no contexto da filosofia da cultura, empreendida pelo filósofo?
Andreas Urs Sommer - Na filosofia mais abrangente da cultura de Nietzsche, Lutero e a Reforma são peças de um jogo que, dependendo da necessidade do momento, podem ser utilizadas de diversas maneiras. A crítica de Nietzsche à Reforma tem um elemento eminentemente provocador, uma vez que boa parte dos leitores de Nietzsche prezava muito a Reforma, de modo que acabaram se sentindo contrariados por ele. O desprezo pela Reforma também mostra o quanto Nietzsche rejeita uma historiografia do progresso: a história não é algo que simplesmente vai evoluindo para melhor, uma evolução na qual a Reforma até pudesse ser um marco.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Andreas Urs Sommer - Sem dúvida a crítica de Nietzsche a Lutero e à Reforma é de considerável interesse para a historiografia do espírito humano. Porém é legítimo perguntar também até que ponto ela ainda se justifica na atualidade. Na Alemanha reina uma euforia luterana instaurada pela igreja e pelo estado, que encontra pouco respaldo na realidade histórica. Dizem que Lutero preparou o caminho para o Iluminismo esclarecedor, em vez de enxergar nele justamente o inimigo declarado da autodeterminação humana individual. Neste ponto Nietzsche pode nos ajudar a obter uma visão bem mais sóbria, mesmo que ele próprio também não tenha argumentado como historiador bem informado e sereno, e sim como polemista das ideias políticas.

Notas:
[1] Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do martelo e do crepúsculo. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com Danilo Bilate. Na edição 513, de 16-10-2017, leia a entrevista Uma política de vida ao invés de uma política sobre a vida. A biopolítica afirmativa de Nietzsche. (Nota da IHU On-Line)
[2] Martinho Lutero (1483-1546): teólogo alemão, considerado o pai espiritual da Reforma Protestante. Foi o autor da primeira tradução da Bíblia para o alemão. Além da qualidade da tradução, foi amplamente divulgada em decorrência da sua difusão por meio da imprensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. (Nota da IHU On-Line)
[3] Richard Wagner (1813-1883): compositor alemão, considerado amplamente como um dos expoentes do romantismo na música. Como compositor de óperas, criou um novo estilo, grandioso, cuja influência sobre a música foi forte a ponto de os músicos de seu tempo e posteriores serem classificados como wagnerianos ou não-wagnerianos. (Nota da IHU On-Line)
[4] Reforma Protestante: movimento reformista cristão liderado por Martinho Lutero, autor das 95 teses pregadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro de 1517, propondo uma reforma na doutrina do catolicismo romano. Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus. Em resposta, a Igreja Católica Romana implementou a Contrarreforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio de Trento. Em decorrência destes fatos, ocorreu a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os protestantes. Confira a edição 280 da IHU On-Line, de 3-11-2008, intitulada Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e criador da língua alemã. (Nota da IHU On-Line)
[5] Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cristãos como o mais importante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais importante no desenvolvimento do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia a Damasco, teve uma visão de Jesus envolto numa grande luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias por Ananias, que o batizou como cristão. A partir deste encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é considerado uma das principais fontes da doutrina da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verdadeiramente transformou o Cristianismo em uma nova religião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, assim como a edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevância atual Também são dedicadas ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de realidade, e a edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã no século I. (Nota da IHU On-Line)

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