Entenda como a corrupção arruinou o estado do Rio de Janeiro
Após a polêmica levantada pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, sobre possíveis relações da polícia carioca com o crime organizado, Michel Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, colocaram panos quentes na situação
postado em 03/11/2017 08:00
O
Rio de Janeiro está em decomposição. E as ruínas desse esfacelamento
chegam a Brasília. O estado fluminense é simbólico na crise que vive o
país. Dos conflitos éticos aos econômicos, da insegurança à calamidade
na saúde. Das cifras astronômicas gastas com as Olimpíadas de 2016 à
falta de merenda nas escolas. Os problemas do Rio vão muito além das
críticas do ministro da Justiça, Torquato Jardim, à polícia carioca.
Eles sintetizam a deterioração de um país mergulhado em escândalos de
corrupção. De uma rica nação, que tenta se reerguer após a mais longa
recessão. Para superar os obstáculos e evitar maiores desgastes entre as
esferas do poder, será necessário um esforço conjunto entre os governos
federal e estadual. E o primeiro passo começou ontem, com o presidente
da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), admitindo que o auxiliar
do presidente da República, Michel Temer, tenha dito verdades por
linhas tortas.
Durante
viagem oficial à Itália, Maia, em tom mais ponderado, avaliou que as
declarações de Torquato são pertinentes, mas questionou a maneira usada
pelo colega. “Acho que ele falou muita verdade ali, só que não sei se
foi da forma adequada. Eu acho que, talvez, aquela entrevista valesse
depois de uma ação da polícia, com meses de investigação, pegando
aqueles que estão boicotando as ações de segurança no Rio”, disse o
presidente da Câmara ao jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira, Maia
classificou as palavras do ministro como “infantis” e “irresponsáveis”.
O
recuo do democrata, pré-candidato à reeleição, foi vista, nos
bastidores, como uma reconexão com a maioria da sociedade carioca, que
concorda com a afirmação de Torquato. À imprensa, o ministro afirmou que
há uma associação de policiais do Rio em cargos de comando com o crime
organizado. Agora, não somente Maia, como também Temer procuram colocar
panos quentes sobre a polêmica. Pessoas próximas do peemedebista
garantem que ele pediu ao auxiliar que evite dar novas declarações sobre
o assunto. O Palácio do Planalto quer evitar atritos com o presidente
da Câmara, pensando nas agendas econômicas que devem entrar em breve em
votação.
Rodrigo Maia, por sua vez, tenta
evitar desgaste com Temer. A fatura pela permanência do peemedebista na
Presidência ainda está sendo paga, como a Medida Provisória que prevê a
permissão para que o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) tenha
acesso aos fundos regionais de desenvolvimento. O chefe do Executivo
Federal também assinou um contrato de R$ 652 milhões para obras no Rio.
Os esforços entre Câmara e Planalto, no entanto, estão concentrados na
reforma da Previdência. Maia não esconde o desejo de aprovar o texto,
que dependerá de uma ampla articulação entre os dois Poderes.
A
agenda das reformas, no entanto, é apenas o começo para um longo
processo de recuperação da crise moral, ética e econômica do Rio.
Afinal, a Cidade Maravilhosa precisa enfrentar notórios percalços, como a
crise entre os representantes políticos e a escalada da violência
pública. Nada menos do que dois ex-governadores cariocas, Anthony
Garotinho e Sérgio Cabral Filho, estão presos. O atual, Luiz Fernando
Pezão, é acusado de receber via caixa dois dinheiro de propina nas
eleições de 2014. Cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio, que
deveriam zelar pela aprovação das contas, são investigados por
corrupção.
São exemplos de nomes fortes que
surgiram na política da capital fluminense, ganharam projeção nacional
e, hoje, não representam nada além de um estado em frangalhos. Doutor em
filosofia e professor de Ética Política da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Roberto Romano avalia que a decadência do Rio de
Janeiro não é nova, tendo surgido com a migração da capital do Brasil do
Rio para Brasília. “Essa mudança criou um vácuo de poder e de
capacidade, inclusive, de manusear recursos. Assim, os cariocas,
acostumados a ter dinheiro e poder, perderam os dois. Essa lacuna
precisou ser preenchida”, avaliou, justificando a origem das relações
entre bandidos e autoridades locais.
A simbiose
entre autoridades públicas e os grandes nomes do jogo do bicho, do
tráfico é algo antigo, ressalta Romano. “Sempre foi comum ver os donos
de negócios escusos nos palanques tentando eleger candidatos. Aí entra a
velha tradição brasileira de trocar favor. Como eu, você e todos os
brasileiros vimos ultimamente, essa tradição continua funcionando com
força total”, acrescentou.
No meio do embate
sobre a eficácia da polícia carioca, um triste incidente aconteceu
ontem: o menino de 3 anos que foi atingido, na última quarta-feira, por
uma bala perdida enquanto brincava no sofá de casa teve a morte cerebral
declarada. Um dia antes, o policial Rafael Santa Ana Corrêa foi
assassinato em uma drogaria. O cabo foi o 114º integrante da Polícia do
Rio de Janeiro morto em 2017.
Silêncio
O
poder carioca resolveu contra-atacar e processará o ministro da
Justiça, Torquato Jardim. Do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão aos
comandantes da Polícia Militar, todos questionam as declarações dadas
por Torquato de que a cúpula da PM está controlada pelo crime
organizado. Questionado, o presidente Michel Temer preferiu não se
envolver na polêmica para não dar mais espaço à crise.
O
silêncio que permeia o Planalto também chegou ao Supremo Tribunal
Federal (STF), que deve julgar a interpelação proposta por Pezão. Para o
ministro Marco Aurélio Mello, é necessário aguardar os desdobramentos
antes de qualquer declaração. “Não posso comentar esse caso porque um de
nós (ministros) pode acabar sendo relator”, disse. O Correio também
entrou em contato com Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que
preferiram não se manifestar sobre o assunto.
O
senador Lindbergh Farias (PT-RJ), no entanto, rompeu a falta de
expressividade dos poderosos e disse que “todo mundo que mora no Rio de
Janeiro sabe que as palavras do ministro são verdade”. Outros
integrantes do parlamento que concordam com Torquato dizem que, embora
ele esteja certo, foi imprudente e exagerado.
Estado em deterioração
Entre
as unidades da federação, o Rio de Janeiro é, talvez, a que mais
personifica a escancarada crise ética, moral e econômica que assola o
país. Entenda os principais atores e fatos que o levaram à atual
situação:
Corrupção
Desvio
de recursos públicos, recebimento de propina, lavagem de dinheiro e
participação em organização criminosa são alguns dos delitos pelos quais
representantes públicos do Rio foram condenados ou acusados.
» Anthony Garotinho:
o ex-governador foi condenado a 9 anos e 11 meses de prisão por
corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de documento
público e coação. A avaliação da Justiça é de que ele comprou votos para
a mulher, Rosinha Garotinha, ser reeleita à prefeitura fluminense, em
2016. Ele chegou a ser detido, mas, por decisão do STJ, aguarda
julgamento de recurso em liberdade.
» Sérgio Cabral Filho: o ex-governador foi condenado a 45 anos e 2 meses de prisão, considerado como o “grande líder da organização
criminosa” que possibilitou o desvio de milhões dos cofres públicos do
estado. Cabral está preso desde novembro do ano passado no complexo
penitenciário de Gericinó, em Bangu. Ex-diretores da construtora
Odebrecht apontam pagamentos de R$ 94 milhões a ele, que também é
suspeito de ter recebido propina durante as Olimpíadas e de ter comprado
votos para escolher o Rio como a sede do evento. Uma família ligada a
ele foi presa por desvio de recursos da merenda escolar.
» Eduardo Cunha: o ex-presidente da Câmara dos Deputados e um dos mais influentes políticos
do
Rio de Janeiro foi condenado a 15 anos e 4 meses de prisão por
corrupção passiva devido a solicitação e recebimento de vantagem
indevida no contrato de exploração de petróleo em Benin, na África.
Cunha está detido em Curitiba desde outubro do ano passado.
» Luiz Fernando Pezão:
o atual governador do Rio é acusado de recebimento de propina da
Odebrecht nas eleições de 2014. Ex-presidente da construtora Odebrecht
afirma que teria pagado, via caixa 2, R$ 20,3 milhões na campanha
eleitoral.
» Jorge Picciani e conselheiros do TCE:
cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro foram presos
por suspeita de recebimento de propina de 1% sobre valores de contratos
de empreiteiras. As investigações apontam que eles recebiam dinheiro
para fazer vista grossa e aprovar obras, como a do Maracanã e a da linha
4 do metrô. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge
Picciani, foi alvo de condução coercitiva para prestar depoimento após
ter o nome citado em acordo de delação por um ex-conselheiro.
Economia
A
crise que estourou em 2015 só escancarou o desequilíbrio das contas
públicas do Rio. Antes disso, o governo já vinha elevando muito os
gastos públicos, inclusive com servidores, ancorado na valorização do
barril de petróleo no mercado externo. Uma lei de 2003 previa o
pagamento de aposentadorias com uso dos royalties, mas o arrefecimento
da atividade econômica e a queda do preço do barril provocaram queda nas
receitas, enquanto os gastos se mantiveram em crescimento,
principalmente o da Previdência.
Segurança pública, saúde, educação
O
orçamento comprometido pela crise econômica provocou um efeito cascata
altamente danoso e negativo sobre os serviços públicos. Policiais
passaram a ter menos incentivos, o sistema de saúde entrou em colapso,
com deficit de médicos, insumos, medicamentos e atrasos em atendimentos.
A educação seguiu o mesmo caminho: organizações não governamentais
acusam a secretaria estadual de fechar turmas.
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