Flores

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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Hoje, em evento na Câmara de Vereadores de São Paulo, será comemorado o Ano 500 da Reforma Luterana. No mesmo ato será lançado um número especial da revista patrocinada pelo Concepab (Conselho de Pastores), na qual há uma entrevista comigo, que reproduzo abixo. RR


 A revista produzida pela Concepab recupera essa história e traz a análise de especialistas sobre a importância da religião para a construção dos valores de uma sociedade. Entre outros, colaboraram com o trabalho o professor titular de Filosofia da Unicamp Roberto Romano e o chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Davi Gomes.

 
1- Qual a importância histórica da Reforma Protestante, considerando sua relação com outros movimentos da cultura ocidental, como o Renascimento e o Iluminismo? Qual balanço se pode fazer desses 500 anos de Reforma?


Primeiro, tomemos a Reforma luterana na sua relação com o pensamento filosófico e jurídico. Lutero, como pensador, abriu o caminho para a experiência pessoal, íntima, do ser humano. Após milênios em que a subjetividade foi dominada pelos coletivos (a polis grega, Roma, a igreja medieval), ele retomou a trilha aberta em Atenas por Sócrates: a consciência da pessoa está acima das práticas, ou éticas, da instituição de Estado ou religiosas. Em prefácio que escrevi à edição brasileira do magnífico texto luterano, “Da liberdade do cristão”(1520), tive a oportunidade de salientar semelhante ponto: em Lutero, “cada indivíduo realiza, em si mesmo, as núpcias entre o infinito e a finitude”. Conclui um comentador (Marcos Montero Grillo) : com a idéia do sacerdócio universal do fiel, “Lutero deu à luz a subjetividade moderna”.  Assim, podemos adiantar que o pensamento luterano é um poderoso antídoto contra todos os autoritarismos, do passado e modernos. O cristão que aceita as formas doutrinárias luteranas não tem licença para culpar a igreja, o Estado, o coletivo, pelos crimes cometidos na vida social. Deus fala na sua consciência. Lutero levou à máxima potência o ensino de Paulo apóstolo sobre a percepção de si, a syneidesis. Assim, ele abriu caminho para as mais importantes doutrinas filosóficas sobre a moral, como a kantiana e a existencialista. Uma contradição, portanto, habitou a mente dos luteranos que, na Alemanhã nazista, aceitaram um poder tirânico alheio e oposto à consciência, como bem o prova Eric Voegelin no seu tremendo livro “Hitler e os Alemães”. Nenhum seguidor de Lutero pode aceitar a hegemonia absoluta do coletivo sobre a própria consciência; políticas que não falem no seu íntimo;  palavra de ordem que viole o respeito ao próximo ensinado pelos Evangelhos.

Mas o pensamento de Lutero não ficou restrito ao elogio simples da consciência pessoal. Na sua tradução da Biblia, ao grafar o termo latino “vanitas” com o alemão “Eitel”, ele mostrou pleno saber do outro lado, o sombrio, das subjetividades. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, diz o Eclesiastes. Ecoa Lutero : “Es ist alles ganz eitel” (Lutherbibel, Stuttgart). O grego da Septuaginta grafa o termo “vanitas” como “mataiotes”, ou seja, a delirante tolice humana no seu apogeu. Deus fala na consciência individual, mas o demônio nela também se apresenta. Aí temos o ensinamento mais trágico do luteranismo, herança clara de Agostinho, o combativo doutor eclesiástico que apresentou objeções gravíssimas contra a tese do livre arbítrio humano.É de Agostinho a frase que explica toda revolta protestante, ontem e hoje : “Deus não precisa da nossa mentira” (“Deus mendacio non eget”). O mistério do trato da criatura com a sua fonte última é restabelecido nos textos do ex-monge agostiniano que se levanta contra a estrita racionalidade jurídica e canônica do catolicismo. Razão perfeita e demoníaca, não raro andam juntas. Os experimentos “científicos”dos médicos nazistas, mas também dos que, em democracias, usam os corpos humanos como simples matéria de experimentação,  são a prova. Leiamos o tremendo livro de Jonathan Moreno sobre os testes de irradiação atômica nos olhos de cobaias do exército norte-americano e uso de fármacos letais sem conhecimento prévio das vítimas (Undue Risk, secret State Experiments on Humans). 

Deixando o aspecto filosófico, passemos ao político e jurídico. A ruptura de Lutero com a autoridade da igreja, o translado da fé da comunhão visível eclesiástica para a invisibilidade da consciência individual trouxe sérias consequências políticas. A relação horizontal dos fiéis, ligados uns aos outros e não submetidos verticalmente a bispos e papas, acendeu já nos primeiros tempos da Reforma aspirações democráticas no plano estatal. Alguns analistas, como Ernst Bloch, chegam a falar em aspirações comunistas erguidas pelo luteranismo. É o caso dos camponeses, operários urbanos e outros liderados por Tomás Munzer. A revolta assim ocorrida foi esmagada pelos príncipes, com apoio de Lutero, assustado com os efeitos políticos de sua proposta religiosa. Mas foram os calvinistas que se encarregaram, no bojo da luta contra o mando católico, de apresentar as propostas democratizantes mais radicalizadas, algo que definiu a moderna democracia. Dada a intolerância dos monarcas franceses ligados à Sé de Roma, guerras de religião tomaram conta de toda a Europa, particularmente na França. O massacre da Noite de São Bartolomeu gerou uma série de livros críticos da política católica e do absolutismo real. Os assim chamados monarcômacos redigiram textos com propostas de organização do poder civil com base na teoria da representação e da soberania popular. Escritos importantes, em tal sentido: O Direito dos Magistrados, de Th. de Bèze, FrancoGallia, de Hoffmann, Vindiciae contra Tyrannos, de Mornay. As Vindiciae foram publicadas recentemente em nossa língua, no Brasil, sob os cuidados de Frank Viana Carvalho. Tais escritores aplicam, para a ordem social e política, os ensinamentos de Lutero contrários à verticalidade do poder religioso hierárquico   praticado desde a idade Média (quando a igreja era pensada como respublica christiana, única e universal) até o século 17. Os calvinistas ingleses ampliaram as bases lógicas da Reforma iniciada por Lutero. Eles exigiram a liberdade de expressão e de imprensa, a responsabilidade (accountability) dos governantes diante do povo soberano, a instrução pública praticada por Lutero na Alemanha. Como o rei inglês recusou   aqueles pontos, foi condenado e morto na assim conhecida Revolução Puritana. Embora de vida curta, a república puritana    gerou as bases práticas e teóricas das revoluções norte-americana e francesa. As teses essenciais da revolução puritana foram assumidas pelos iluministas franceses (Diderot, sobretudo) e alemães, o que ajudou a modificar radicalmente a visão jurídica e política das sociedades e Estados modernos. Não por acaso, os autores reacionários do século 19 (De Maistre, De Bonald, Donoso Cortés), inimigos das Luzes e da democracia, viram em Lutero o genitor do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Um discípulo daqueles teóricos reacionários foi o jurista Carl Schmitt, cuja obra capital chama-se justamente Catolicismo Político e Forma Política. Naquele documento ele elogia a antiga forma de representação católica (o Papa representa Jesus Cristo em pessoa) contra as maneiras protestantes e democráticas de representação em parlamentos. Em seu livro A Crise da Democracia Parlamentar, ele tira as consequências do abandono moderno da antiga forma de representação católica. No seu entender, o sistema de representação moderno, cuja origem foi o protestantismo e sua valorização da liberdade individual, estava em crise absoluta. Daí sua adesão ao totalitarismo nazista no qual o Líder representa, como no antigo catolicismo, o corpo do Estado. Tal doutrina –em sua essência– nega tudo o que a Reforma e as Luzes trouxeram ao mundo a partir de Lutero. A leitura, ainda e sobretudo hoje, de textos luteranos como De captivitate babylonica ecclesiae (1520), inspiram a luta contra a tirania religiosa, política, política.


2- Observamos, no Brasil, o crescimento do número de adeptos de denominações religiosas pentecostais e neopentecostais, enquanto que a adesão ao catolicismo permanece estagnada (ou decrescente). A que se deve esse fenômeno? Isso também ocorre em outros países?

Sejamos claros: há uma enorme descontinuidade entre as chamadas igrejas evangélicas, de origem protestante, e a vida e obra de Lutero. Em primeiro lugar, lembremos que o reformador era um acadêmico erudito e refinado. Muito de seu trabalho de tradução e hermenêutica se deve aos grandes escritores do Renascimento, sobretudo Lorenzo Valla. Um companheiro provisório de viagem, para Lutero, foi Erasmo de Rotterdam, outro tradutor dos textos sagrados e da cultura grega e latina, além de crítico dos desmandos católicos. Um vezo dos padres, combatido por Lutero e Erasmo, residia na multiplicação de milagres rendosos, o que expandia a superstição e o charlatanismo. Erasmo e Lutero verberaram os que se aproveitavam da fé popular para encher os cofres dos templos e conventos. Não por acaso, uma das primeiras lutas de Lutero foi contra o dominicano Tetzel, o vendilhão das indulgências tendo em vista edificar em Roma o templo de São Pedro. Lutero dirigiu suas lições contra os que vendiam, como Tetzel, a salvação em troca de moeda. O dominicano, na sua faina embusteira apoiada pelo papa, criou mesmo um versinho, de bom marketing :  "Sobald das Geld im Kasten Klingt/Die Seele aus dem Fegfeuer springt!: ``Toda vez que a moedinha no cofre ressoar/A alma do purgatório vai pular!''). Isso custou à igreja metade de suas almas.

Se voltasse à terra, sobretudo nos EUA e no Brasil, Lutero com certeza não reconheceria a sua descendência em muitas igrejas protestantes. A compra e venda de milagres, os charlatanismos explícitos (em certa igreja foi vendida uma chave de apartamento no céu, ao lado do apartamento de Jesus...) levantariam a sua indignação. Lutero veria em bispos e pastores ditos evangélicos sequazes de Tetzel, não seus. Boa parte da culpa de tal situação se deve à igreja católica. Em primeiro lugar porque nela também são usados, séculos após a Reforma, milagres que alimentam a superstição, dando lucro aos templos. Em segundo, porque após o Concilio Vaticano 2 houve uma reforma litúrgica que banalizou o culto, não o distinguindo dos ofícios protestantes. O racionalismo dos padres e da instituição católica, por sua vez, não permitiu alimentar os fiéis com a espiritualidade mais forte. A própria estrutura do catolicismo, burocrática e sem democracia interna, afasta os seguidores. Uma observação: certa feita visitei uma cidade do interior paulista. Na praça da matriz, para chegar até as portas da igreja católica,    era preciso subir muitos degraus de escada. Nas portas fechadas, avisos definiam horários em que os escritórios da paróquia funcionavam. Dei a volta à igreja e, nas suas costas, havia um pequeno templo pentecostal. As portas estavam abertas, não existia escada alguma para o acesso e dois integrantes do culto convidavam os passantes para a entrada. Seria   preciso dizer mais sobre as causas do avanço pentecostal e a diminuição dos fiéis católicos? 


3 - As teses divulgadas por Lutero, que iniciaram a Reforma, ainda são pertinentes na atualidade?

Enquanto existir uma noção – religiosa, política, jurídica, ideológica– dos homens como inferiores uns, superiores outros, enquanto não existir na religião o sacerdócio comum dos fiéis e na política a soberania popular, as questões postas por Lutero, Calvino, Erasmo, são urgentes. Para nossa tristeza o mundo ainda e mais do que nunca é o plano da desigualdade, da servidão, da ausência de pensamento autônomo e livre. Precisamos de muitos Luteros para atingir o plano de seres plenamente livres e iguais diante de Deus e dos nossos próximos.





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