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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Entrevista ã Folha, quando ocorreu a escolha do Papa Francisco.

Folha de S.Paulo

Entrevista da Segunda Roberto Romano 

Francisco terá de enfrentar Cúria se quiser arejar igreja

Professor da Unicamp diz que Papa pode administrar Santa Sé junto com bispos; jesuítas, ordem do pontífice, são 'exército'
LAURA CAPRIGLIONE DE SÃO PAULO
 
Professor de ética e filosofia na Unicamp e doutor em filosofia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, Roberto Romano considera que Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, tem credenciais de sobra para enfrentar os dilemas da igreja num mundo multicultural, globalizado, acossado pelos avanços da ciência, cada vez mais dessacralizado.

Segundo Romano, a Companhia de Jesus, ordem fundada por Inácio de Loyola no século 16, de onde provém o atual papa, é a que mais dialoga com os desafios da modernidade. "Eles estudam, estudam, estudam, debatem com pesquisadores laicos do mundo todo para saber como reafirmar da melhor forma os princípios da igreja".

O filósofo foi, durante 12 anos, frade dominicano. O Brasil vivia sob a ditadura militar, fase em que o Convento dos Dominicanos de São Paulo converteu-se em base de apoio da luta armada e de seu líder principal líder, Carlos Marighella (1911-69).

O jovem Romano (o nome homenageia a igreja de Roma) chegou a amargar um período atrás das grades, no famoso presídio Tiradentes.

É com esse histórico que Romano avalia as denúncias de que Francisco teria delatado dois padres jesuítas para a ditadura argentina.

Segundo Romano, o pontífice está pagando pelos erros de toda a igreja naquele país, que colaborou ativamente com a repressão.
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Folha - Qual a importância de, pela primeira vez, o papa ser um jesuíta?

Roberto Romano - A Companhia de Jesus foi criada no século 16 como parte da Contrarreforma. As pessoas ligam a Contrarreforma apenas ao combate à Reforma Protestante. Mas, na verdade, tratou-se de uma estratégia definida em relação à Reforma e ao Renascimento.

Os desafios que eram apresentados à igreja na época vinham de um mundo que já era em boa parte laico e que estava produzindo uma série de saberes que ultrapassavam o quadro da metafísica tomista [de são Tomás de Aquino (1225-74)], adotado oficialmente pela igreja.

Os jesuítas foram produzidos como verdadeiros guerreiros em luta pela conquista da modernidade para a Igreja Católica e para combater o protestantismo.

Eles prepararam-se com todas as armas da cultura que era sua adversária.

E como essa cultura jesuíta pode ajudar nos dias de hoje o governo da igreja?

Não se pode pertencer a essa ordem sem um trabalho intelectual. É uma ordem que cultiva a ciência e a técnica.

O caso do papa Francisco ilustra bem esse fato: primeiro, ele se formou em química, então, sentindo essa adequação com a ordem jesuítica, foi ser um deles.

Muitos são médicos, físicos, matemáticos, teólogos, filósofos. Dedicam-se a um diálogo com o mundo científico, tecnológico e político.

Você tem há séculos jesuítas nos Estados Unidos, na Alemanha, em Israel, no Brasil etc. Eles detêm um saber antropológico e científico muito aprofundado e ramificado internacionalmente.

São uma ordem com capacidade intelectual e disciplina imensas. "Perinde ac cadaver" ou obedecer como um cadáver. Fazem tudo para a maior glória da igreja. 

Quem é a "turma" do papa no Brasil?

Hoje, no Brasil, os jesuítas têm centros de excelência, como a Unisinos, no Rio Grande do Sul. Os temas mais relevantes do debate ético e religioso mundial aparecem lá: homossexualidade, aborto, vida, eutanásia. 

Quem é a estrela jesuíta no Brasil?

É muito difícil encontrar um jesuíta estrela. Eles são avessos a esse brilhareco tão comum no meio acadêmico.

De vez em quando, aparece um. Curiosamente, não pelo que ele fazia ou dizia, mas porque a igreja colocou-se contra o que ele fazia.

Foi o caso de Teilhard de Chardin [1881-1995], jesuíta francês. A igreja proibiu-lhe que continuasse suas pesquisas sobre a evolução. Aí, contra a vontade dele, ele tornou-se famoso. 

A escolha de um jesuíta pode significar um arejamento da igreja?

Vai depender da capacidade de resistência da Cúria Romana a esse tipo de posição.

Houve um movimento de centralização terrível no período de Pio 12 (1939-58), que reprimiu o quanto pôde as divergências internas e legou um poder imenso à Cúria quando morreu.

João 23 foi um grande papa justamente por ter enfrentado a Cúria e convocado o Concílio Vaticano 2º. Isso permitiu que o papa Paulo 6º governasse em colegialidade.

Com João Paulo 2º, a Cúria voltou ao centro, com repressão, perseguição etc. Foi um dos papados mais repressivos da história da igreja. Eleito Ratzinger, o papa Bento 16, ele não conseguiu dominar a Cúria. Esse desafio o papa jesuíta terá de enfrentar.'

Como?

A igreja tem movimentos de sístole e diástole. Há os conciliaristas, que defendem o Concílio e o colégio dos bispos como autônomos em relação ao papa, e há os que defendem o poder absolutista do papa.

Conforme a crise, a igreja apela para a colegialidade ou para a hipercentralização do poder. O que Francisco pode fazer é, pouco a pouco, aumentar a colegialidade. 

Há alguma chance de o novo papa flexibilizar a imposição do celibato?

Eu acho muito difícil, mas será uma das questões a ser debatida nessa possível colegialidade.
O papa terá de estabelecer um diálogo com os bispos nacionais e colocar na pauta todos esses problemas, inclusive a questão do celibato.

Mas não sei se Francisco, pela idade, terá forças suficientes para tanto. 

Como o senhor avalia a denúncia sobre a suposta colaboração do novo papa com a ditadura argentina?

Se existe um problema gravíssimo é o fato de a igreja argentina ter colaborado ativamente com a repressão. Foi muito mais do que uma simples omissão.

A Argentina presenciou uma unidade da igreja com o regime ditatorial que é espelho do que já havia acontecido na Europa -na Espanha franquista, na Itália fascista, na Alemanha nazista.

Não é por acaso que, depois da ditadura, a igreja perdeu um número imenso de fiéis na Argentina.
Aliás, quem mais colaborou com a repressão ditatorial na Argentina não foram os jesuítas. Foram os dominicanos, a mesma ordem que, no Brasil, abrigou Carlos Marighella, o inimigo número um do regime militar. 

Como é possível?

Essas ordens têm várias tendências internas. No caso dos jesuítas, essas tendências são mais disciplinadas.

No caso dos dominicanos, as tendências transbordam em público porque a ordem tem origens históricas e ideológicas muito diferentes.

Quando os dominicanos quiseram trazer a ordem para o Brasil, dom Pedro 2º disse que jamais deixaria que inquisidores entrassem.

Mas aí contaram-lhe que eram os dominicanos franceses, de tendência socialista, e ele permitiu. Eram dominicanos diferentes dos que foram para a Argentina, herdeiros do ramo espanhol, ligados à tradição inquisitorial e, mais tarde, ao franquismo.

Para mim, o papa Francisco pode estar pagando pelos pecados da igreja argentina como um todo.
Até porque acho muito esquisito que um superior jesuíta colaborasse ou mesmo abandonasse à morte ou para a tortura dois "soldados" da sua própria ordem. Não se esqueça de que a Companhia tem a organização de um Exército.

É preciso investigar melhor. É contra o espírito de disciplina da ordem. 

Como o novo papa tende a se relacionar com a Renovação Carismática?

Ele pode aproveitar muito. Essa sabedoria antropológica que o jesuíta tem traduz-se justamente pela capacidade que eles têm de usar todos os movimentos que possam levar a uma expansão da fé.

É evidente que parece um pouco esquisito pensar em um padre intelectualizadíssimo como o jesuíta em um movimento como a Renovação Carismática. Mas é assim que eles atuam.

Na China do século 17, eles adotaram a língua, os costumes, os paramentos chineses, o culto aos ancestrais e fizeram de Confúcio a filosofia de base.

Contra os jesuítas, estavam os dominicanos que queriam impor o latim e que a filosofia de Confúcio fosse declarada demoníaca. Ganharam os dominicanos, e a igreja perdeu a China. 

 ENTREVISTA DA 2ª (18.MAR, PÁG. A15) Por equívoco da reportagem, o texto "Francisco terá de enfrentar Cúria se quiser arejar igreja" trouxe a informação incorreta de que o filósofo Teilhard de Chardin viveu entre 1881 e 1995. O correto é entre 1881 e 1955.


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