Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes
é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência
Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros
mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados
Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos
Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da
Unesp.
Da merenda escolar ao composto para astronautas
Edição de imagem
Em 1729, Jonathan Swift publicava sua Modesta Proposta Para Evitar Que As Crianças Da Irlanda Sejam Um Fardo Para Os Seus Pais Ou Para Seu País.
Faz alguns anos, a Editora Unesp me convidou a escrever um prefácio à
edição brasileira do livrinho, uma peça imperdível do escritor irlandês.
A “solução” de Swift é conhecida, um humor
macabro, agressivo. A ideia de transformar as crianças pobres em
alimento é de chocar as boas almas. Parafraseando a frase de Marx sobre a
religião, é um grito do espírito em um mundo sem espírito.
Volta e meia nos damos conta de que nos
faltam alguns Swifts. Ou, então, que nem mesmo com milhares de Switfs
conseguiríamos dar conta do que nos oferecem as propostas nada fictícias
geradas por mentes criativas como a do alcaide paulistano. A última
invenção do jovem sexagenário é a comida de astronauta produzida a
partir de alimentos em vésperas de virar lixo. Sim, a ideia é “agregar”
alimentos de supermercados, com data de validade em cima da risca. E
desse agregado produzir pacotes de granulados a servir como ração para
os famintos da grande cidade, incluindo os estudantes, com merenda
escolar “reforçada” pelo preparado. Os protótipos de alimento foram
fornecidos para teste por uma empresa um tanto estranha, que não tem
fábrica nem parece ter condições de ter – ela própria “agrega” serviços
de outros fabricantes. Uma outra invenção, quem sabe candidata à
inserção no cadastro de fornecedores da prefeitura. Analisada a forma de
implementação da política, chega-se à conclusão de que será, de fato,
um grande negócio. Os fornecedores dos alimentos “quase invendíveis”
deixariam de perder esse saldo. E, mais ainda, teriam incentivos
fiscais. Ganham em dobro. Um achado.
A ideia parece original – talvez seja. Não
quer dizer que mereça um prêmio por isso. Mas devemos reconhecer que é
criativa. Não me refiro à criatividade dos tecnólogos que inventaram o
produto e o processo, a tal farinata. Talvez sejam, mesmo, engenhosos.
Talvez alguns deles tenham a melhor das intenções. Sempre existe a
tentação de utilizar a ciência e a tecnologia como um atalho ou
alternativa ao enfrentamento de problemas sociais que buscamos abafar. E
aí os inventos excêntricos se multiplicam. Às vezes de modo sofisticado
e “sério”, claro.
O
que a proposta evidencia, de modo bem criativo, é um modo de encarar a
existência dos “carentes” aos quais se destinaria o engenho. Eles não
comem, eles são supridos de fontes energéticas. Melhor isso do que nada,
diz o secretário do prefeito, com certa lógica. Mais clara ainda foi a
frase do próprio alcaide: “Você acha que gente humilde, pobre, miserável vai ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, tem que dizer graças a Deus”.
Essa lógica – um modo peculiar de olhar o
andar de baixo da sociedade – tem história, tem seus momentos. Vejamos
alguns, apenas alguns exemplos, que recolhi de minha apresentação ao
texto de Swift.
No século XIX, diante da polêmica sobre o trabalho
infantil, as chamadas classes proprietárias alardeavam, alegando base
científica, que a eliminação dessa prática destruiria a economia
inglesa, física e moralmente. Na mesma época, no Brasil, os donos de
escravos previam o caos se e quando a abolição “rompesse os contratos” e
agredisse seus “direitos adquiridos” quanto a negros, negras e
respectivas proles, atuais ou em gestação. No sul dos Estados Unidos,
fazendas negreiras eram montadas, para reproduzir esse insumo
fundamental. Um pouco mais tarde, no esplendor do Terceiro Reich, o
Vorstand (Conselho de Administração) da IG Faberben e as SS discutiam
seriamente como liquidar judeus e eslavos com o menor custo e “esgotar”
os trabalhadores em ritmos adequados à produção.
Será que as mentes criativas não conseguem produzir
solução melhor para a fome? Alguma que, por exemplo, não agrida a
autoestima do chamado público-alvo? Que não reduza a alegria de viver (e
de comer!) à ingestão de energéticos consumidos “até por astronautas”,
como diz o elegante prefeito em sua turnê romana.
De fato, numerosos estudos, em diferentes campos da
ciência, garantem, sim, que as crianças que não recebem calorias e
proteínas necessárias, durante as últimas semanas intra-uterinas e os
primeiros meses após o nascimento, ficarão mentalmente prejudicadas de
forma duradoura: as “pilhas” do cérebro não irão manter o “setup” da
memória e da inteligência. Elas tendem a se transformar em adultos
apáticos. A degradação trará alguma perda para o mundo produtivo –
aceitável desde que sejam peças sobrantes. Mas, por outro lado, talvez
os apáticos um dia esperneiem. Keynes certa vez fez uma profecia
terrível em seu Consequências Econômicas da Paz (1919):.
"A privação econômica avança por fases lentas
e, enquanto os homens a suportam pacientemente, o mundo exterior pouco
se importa. A eficiência física e a resistência à doença diminuem
vagarosamente, mas, de alguma forma, a vida continua até o limite da
resistência humana, até que os conselhos do desespero e da loucura
afastem as vítimas da letargia que precede as crises. Então, o homem se
abala e afrouxam‑se as relações estabelecidas. O poder das ideias
torna‑se soberano e os homens passam a dar ouvidos a quaisquer promessas
transmitidas pelo ar (...)
"nem sempre os homens morrerão em silêncio.
Isto porque, se a fome leva alguns à letargia e ao desânimo
irremediável, ela conduz outros temperamentos à nervosa instabilidade da
histeria e a um louco desespero. Em seu sofrimento, estes podem
derrubar o que resta de organização, e afogar a civilização em suas
desesperadas tentativas de satisfazer as prementes necessidades
individuais."
Nosso poeta João Cabral, descrevia de outro modo o
homem reduzido e abreviado produzido pela fome: ele “está aquém do
homem, ao menos capaz de roer os ossos do ofício; capaz de sangrar na
praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço, capaz de ter a
vida mastigada e não apenas dissolvida”.
Não é dessa escola que vêm os pensamentos do alcaide. Bons cabritos: não berram – parece ser esse o lema ou expectativa da “farinata” engendrada nos misteriosos laboratórios da empresa.
Recentemente tivemos um caso doloroso e ainda
abafado, o desvio de recursos da merenda infantil. Agora, a cozinha dos
pobres é revisitada por mãos estranhas e ágeis. Já se assemelha a um
padrão, quase um fetiche.
Um dos males deste nosso mundo é que nos
acostumamos rapidamente a um “novo normal” que até ontem era impensável.
Precisamos, de vez em quando, de alguns choques, para pensar pelo
avesso, já que o mundo está direitinho demais para estar certo.
Direitinho como um suéter rosa, jogado sobre os ombros com estudada
indiferença.
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