Já não se fazem mais autores como antigamente
Texto
Fotos
Edição de imagem
Lembro aqui que autor e autoridade são palavras com a mesma origem. Na época o desconforto que a questão suscitou foi aplacado pela lembrança de uma prática internalizada na comunidade científica a qual pertencia. Experimentos importantes são realizados por diferentes grupos utilizando amostras sofisticadas obtidas em poucos laboratórios. O uso dessas amostras configura um tipo de colaboração comum e os artigos resultantes dessas colaborações sempre têm o produtor das amostras como autor. Faz parte do paradigma da comunidade a percepção clara da função específica daquele autor na lista de autores. A autoridade dele é sobre a amostra e não sobre a pesquisa resultante em si. Então, inicialmente: o que é um autor? Olhando a ciência a partir das bases de dados, autor é todo aquele que assina um artigo indexado.
“O que é um autor?” é o nome de uma conferência de Michel Foucault de 1969, mas o filósofo francês não estava considerando a autoria científica, mas que nessas últimas décadas passou a ter relevância crescente. Um sintoma dessa relevância, além das perguntas que coloco acima, é o final do título do artigo de Osborne e Holland, que menciono acima: “um levantamento de orientações proeminentes para determinar a autoria em publicações científicas”. De um ponto de vista mais denso, recomendo o livro “Autoria científica – crédito e propriedade intelectual na ciência”, organizado por Mario Biagioli e Peter Galison [II]. O livro divide-se em três partes: a emergência da autoria, os limites da autoria e a fragmentação da autoria. Anuncia-se assim o que, pensando bem, não seria inesperado: se o artigo científico foi se modificando com o tempo, por que não o próprio significado de sua autoria? A emergência refere-se à delimitação ainda no período moderno de quem poderia ser considerado um autor científico, ou seja, um cientista. Os limites da autoria referem-se a questões mais contemporâneas como a relação do autor científico com outros atores não acadêmicos. O exemplo mais simples, ainda que não tão instigante, é o conflito entre o interesse do cientista em publicar e a exigência de sigilo por questões de propriedade intelectual de quem financia a pesquisa. Outro é a relação entre o cânone do conhecimento científico e conhecimentos nativos. A fragmentação da autoria é dedicada em grande parte à multiautoria, com a qual me ocupei no início dessa coluna. Um dos capítulos, de Peter Galison, é de acesso livre: “O autor coletivo” [III]. Esse autor coletivo é a “colaboração” em si, que envolve, por exemplo, os quase 3000 autores do trabalho mencionado por Osborne e Holland. Essa imensa lista de autores é como um abaixo-assinado que valida a reivindicação de conhecimento obtido pela “colaboração” declarada no artigo. É parte de uma institucionalização da ciência característica de um clube pequeno de instituições como o CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), cuja história fica para outra hora. Por agora interessam as questões levantadas por Galison na construção de seus argumentos e que se aplicam às multiautorias menos numerosas. Novamente: em uma multiautoria qual é a função de cada autor? Se cada autor tem uma função diferente, quem tem visão geral do trabalho e pode responder pela consistência do artigo e o conhecimento que este reivindica (como o meu antigo supervisor no exemplo mais acima)? Ou seja, de todos os autores que levam crédito igualmente nas citações registradas nas bases de dados, quem constrói de fato uma apercepção acerca do artigo que assina? A apercepção é um ingrediente fundamental na formação e na prática do cientista e não pode ser acelerada.
Última pergunta dado o andar da carruagem: que ciência estamos fazendo e que cientistas estamos formando?
[I] ‘What
is authorship, and what should it be? A survey of prominent guidelines
for determining authorship in scientific publications. Jason W. Osborne and Abigail Holland, Practical Assessment, Research & Evaluation, Vol 14, No 15
[II] Scientific Authorship: Credit and Intellectual Property in Science, editado por Mario Biagioli e Peter Galison. Routledge (Taylor and Francis Group), 2003[III] https://galison.scholar.harvard.edu/publications/collective-author
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.