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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Elogiando quem merece, Roberto Romano Folha


São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004


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Contra os poderes ocultos do Estado ROBERTO ROMANO
Bobbio é um pensador que prolonga, em nosso tempo, as Luzes democráticas e laicas. Ele nunca aceitou o domínio das seitas ideológicas ou religiosas.
Ainda em 2000, quando a Igreja Católica proclamou o "Jubileu dos Políticos" e deu-lhes Thomas Morus como patrono, o mestre escreveu, com a elegância de sempre, mas com estilete afiado, contra o sumo pontífice. Acusou o vencedor da União Soviética de ser apenas "um perfeito papa da Contra-reforma". A escolha do mártir inglês foi macabra, disse Bobbio, augurando dias péssimos para a república. A flecha atingiu o alvo certo, visto que entre João Paulo 2º e o séquito de Silvio Berlusconi existem muitas afinidades eletivas.
Adversário de todos os lavadores de cérebros, da esquerda ou direita, o filósofo estabeleceu profícuos diálogos com pensadores que recusaram a via da "popularidade". Hans Kelsen, no seu rol de autores prediletos, não afasta Thomas Hobbes, Max Weber, Croce, Hegel, ao lado de clássicos, como Bodin e Maquiavel.
Bobbio nunca recusou o debate com pessoas de todas as doutrinas políticas. Assim, manteve correspondência com rígidos stalinistas e com o sumo sacerdote do pensamento jurídico antiliberal, Carl Schmitt.
Respeitado em todos os meios que frequentou pela sua permanente atitude ética, o sábio leitor de Platão e de Aristóteles indicou, como poucos, as fraquezas do regime democrático. No vigoroso estudo sobre "O Futuro da Democracia", ele mostra que, em tal regime, grupos organizados açambarcam recursos públicos e prejudicam a vida coletiva, o que é possível constatar em todos os Estados democráticos de hoje.
Mais importante ainda: neles, o poder real se esconde na invisibilidade e usa o segredo para reprimir e controlar a cidadania. Defensor da imprensa livre, o jurista sempre denunciou as artimanhas dos que odeiam a vida pública e se escondem nos palácios. Finalmente, salienta Bobbio o império dos técnicos e burocratas que travam as políticas públicas (saúde, educação), as quais beneficiariam as populações.
Bobbio não se elevou contra o patrocínio de são Thomas Morus por acaso. Homem reto, ele não admitia a política como paraíso angélico, pois conheceu a fraqueza dos seres finitos em sua própria carne. Embora tenha lutado com a resistência, confessou seu encanto juvenil diante do fascismo. No escândalo programado pela mídia sobre aquele fato, surgiu a carta que ele enviou a Mussolini, em que afirma devoção pela causa autoritária. Humilhado, o pensador não perdeu sua estatura, pois não procurou disfarçar o erro ou justificá-lo.
Liberal, Bobbio nunca se deixou embair pela cantilena que preconiza a nocividade do Estado. Analista da corrupção política, ele aponta a instituição como "um navio onde as águas surgem em todos os cantos". Mas o barco "deve ser renovado na sua integridade". Os poderes ocultos (policiais, religiosos, econômicos, ideológicos), conclui, "devem ser expulsos de seus ninhos. Não é possível que existam dois Estados. O Estado é um só, o da Constituição republicana. Fora dele, existe apenas o anti-Estado que deve ser abatido, começando do teto e atingindo, se possível, os fundamentos".
No Brasil, percebemos a importância dessas palavras, quando vemos políticos que devoram a riqueza pública, juízes que mancham suas togas, quadrilhas que ousam exercer o controle de corpos e almas.
No mundo e aqui, Bobbio será uma ausência dolorida, ele que pensou ensinando uma única certeza: a dúvida.


Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.

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