Publicamos
a primeira parte de um artigo de Roberto Romano, que cita o Padre
Laberthonière para discorrer sobre tribunais de exceção
Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Meditação sobre os juízes (1)
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“Eu
não julgo a vítima, mas apenas os juízes”. A frase tremenda foi
enunciada por alguém que não era socialista nem de esquerda. Falo do
Padre Laberthonière, que recusa a pretensa soberania da lei e denuncia
os tribunais de exceção. Atrás da lei, disse o sacerdote, surgem pessoas
que a usam como instrumento de domínio. No recurso de Luiz Inácio da
Silva, discutido em Porto Alegre, juízes exibiram seu poder. Jornalistas
e universitários discutiram o fato. A maioria deles estranhou a tese
segundo a qual a sentença aumentaria o fascínio do político junto aos
pobres e setores da classe média. “Mas e a unanimidade assumida pelos
juízes?” A pergunta tem réplica: unanimidade não significa posse do
verdadeiro. A gente pobre sabe o desprezo que muito magistrado nutre por
suas causas e pessoas. A elite jurídica imagina a si mesma acima do
povo, do Estado, das leis.
Quando a Constituição completou vinte anos, fui convidado pela
Unafisco – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita
Federal, Ajufe – Associação dos Juízes Federais do Brasil, Sinal
–Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central e ANPR –
Associação Nacional dos Procuradores da República, para um seminário em
Porto Alegre. A Lava Jato inexistia, mas seus vagidos já eram ouvidos em
ações vetadas pelo STF.
Não levei boas notícias às togas e não fui por elas festejado.
Aqueles numes tiveram razões ponderáveis de irritação após minha
análise. Passados dez anos sintetizo aqui o que lhes disse face a face:
sua ingerência política prejudica a sociedade e o Estado. Em São Paulo,
pouco antes, certo Desembargador falou sobre três jovens presos por
crime não cometido por eles. Ao defender o arbítrio, foi aplaudido pelo
promotor: “todo preso diz ser torturado”. Os meninos deixaram a
Detenção após sevícias e dois anos em cela superlotada, suspeitos de
estupro e assasinato. Foram soltos porque o “maníaco de Guarulhos”
confessou. A ONU alerta contra a persistência no Brasil “de tortura para
obter confissões, execução extrajudiciária de suspeitos". Rara lucidez
social surge no Judiciário, como a do juiz Nivaldo Mulatinho Filho. Ele
puniu algozes de uma criança de Recife, jogada em tina de ácido a ponto
de sua pele, na fala dos próprios policiais, parecer “papel amassado”.
Ela roubou goiabas na vizinhança de uma oficina que pintava automóveis. O
vigia chamou a patrulha. A defesa dos agressores alegou que a vítima
“não tinha credibilidade”. Como se a película corporal destruída não
fosse crível o bastante. Na toga brasileira poucos ostentam o senso de
justiça do juiz recifense. [1]
Juízes surdos (bom padre Laberthonière!) não existem apenas no
Brasil. O velho Israel e a antiga vida grega tiveram magistrados
parciais. "Havia numa cidade certo juiz que nem a Deus temia, nem
respeitava o homem. Havia também na mesma cidade uma viúva, que ia ter
com ele, dizendo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário’. Ele por
algum tempo não quis atendê-la; mas depois disse consigo: ‘Ainda que não
tema a Deus, nem respeite os homens, todavia, como esta viúva me
molesta, hei de fazer-lhe justiça, para que enfim não volte e me
importune muito’". (Lucas, 18, 4- 8). No Brasil, grande parte dos
tribunais pouco escuta e nada responde. Notícia de última hora:
“Laurita Vaz, primeira mulher a presidir o STJ, negou – durante o
recesso do Judiciário – pedido para que uma lactante respondesse a
processo em casa. A mulher, cujo filho mais novo tem um mês de idade, é
ré primária e foi presa por portar 8,5 gramas de maconha. Na decisão,
Vaz disse que a mãe não conseguiu comprovar ser imprescindível para
seus… cinco filhos. A decisão judicial causou indignação entre
defensores visto que Vaz concedeu prisão domiciliar a Roger Abdelmassih
em julho” (O Estado de São Paulo, 02/02/2018). Talvez a magistrada precise consultar um otorrino, já que a consciência está amortecida.
“Se um magistrado decide algo injusto e causa danos ao litigante, sua
pena face à vítima deverá ser o dobro do valor reclamado. E todo aquele
que desejar poderá ir às cortes comuns contra os magistrados, por causa
de decisões injustas”. (Platão, Leis, 846 b) E mais: “Nenhum juiz ou governante deve ser isento de responsabilidade pelo que faz como juiz ou governante”. [2] É platônica a noção de checks and balances. O filósofo, diz G. Morrow, quer evitar práticas como as da Star Chamber, usadas pelos soberanos para governar contra as práticas judiciais comuns. [3]
Cautela deve ser assumida diante do juiz. Ele vincula a lei e os
cidadãos. M. Stolleis tece considerações relevantes sobre os
magistrados. Depois da Grécia, em vez do povo soberano, o juiz "julga em
nome de um outro e maior poder. (...) Desde que Bodin apresentou a
soberania como o poder do seu possuidor de dar ordens a cada indivíduo e
a todos, legislando, o Estado moderno tornou-se um Estado de
legislação".
Dos Levellers aos democratas franceses temos a Nação uniforme, não
três corpos sociais como a nobreza, o clero e o terceiro estado. A graça
divina é afastada pela soberania do povo, as leges fundamentales dão passo à Constituição. A mudança exigiu sangue dos que fugiam da Justiça absolutista. [4]
E o juiz? Ele, adianta Stolleis, é unido à lei que “não mais é ordem de
um soberano onipotente, mas compromisso entre o parlamento e o
governo”. Os jurados indicam que a justiça foi transferida do monarca
para o povo.
O Estado constitucional usa o juiz para domesticação, uma tragédia
política. A globalização mina os Estados fracos e, diz Stolleis, um
brinquedo chinês, importado e revendido, pode conter integrantes
perigosos. Qual a situação, em termos legais, se o dano ainda não foi
detectado? Ou a manteiga dinamarquesa subsidiada pela Bélgica e trazida
para a Argélia via Bavária e Itália para ser reimportada na Europa como
óleo? Trata-se de fraude, mas sob qual lei? O juiz deve ser ao mesmo
tempo especializado e generalista, o que traz incertezas. [5]
O togado que alega neutralidade e proclama nunca "fazer juízo de valor"
só triunfaria em países que negam a publicidade e a prestação de contas
ao povo. Mas nos tribunais norte-americanos, quantos juízes recusaram a
Lei Patriótica? Os processos contra torturadores brasileiros mostram o
peso do tema. A lei de Anistia deu salvo conduto aos que usaram
torpemente a força do Estado.
Nas formas judiciais burocráticas existe a perpetuidade do cargo. O
que não significa a posse do mesmo cargo. “Quando garantias são dadas
aos juízes contra destituições ou remoção arbitrárias, tais medidas
procuram oferecer ´segurança´ no cumprimento objetivo e isento de
consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo
correspondente. (…) O funcionário administrativo, em todos os casos,
pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ‘independente’”
(Max Weber).
A burocracia afasta a subjetividade, das partes à defesa, desta à
promotoria e ao juiz. “O juiz moderno”, diz Weber, não mais depende de
um soberano (rei, papa, aristocracia ou povo), mas a sua independência
diante de pessoas é paga pela inserção na máquina que o controla.
Alguém que deve decidir com raciocínio se reduz a um "autômato de
parágrafos” legais (Ein Paragraphen-Automat) cujo funcionamento é calculável. [6] Não há juízo, só mecanização, pesadelo dos gregos ao romantismo. [7]
Nele, Joseph K. se move sem saber os motivos do processo. E nem o
julgador conhece o que o leva a condenar indivíduos. Ele é prisioneiro
da máquina. Vale retomar as reflexões de Jan kott em Shakespeare nosso contemporâneo, sobre as engrenagens do poder. [8]
Pensadores do século 17, quando se firma a razão de Estado, notaram o
advento da armadilha mecânica que devora quem se julga superior aos
humanos, do rei aos juízes. Trata-se da sociedade automática descrita na
Lógica de Port Royal. O poderoso almeja ser obedecido como se as
pessoas fossem ferramentas, “entièrement privées de raison et de
pensée”. Ao mesmo tempo ele deseja “mandar em homens, não em autômatos
pois seu prazer consiste na visão dos movimentos gerados pelo medo,
estima, admiração que eles geram nos outros”. O paradoxo é vivido no
governo, quartéis e tribunais. É delírio e sonho impossível. Mas nele se
define o poder moderno. [9]
Cito Eric Voegelin e o julgamento de Hans Hefelman. O réu afirma que
"os procuradores de justiça chefes e presidentes das Cortes de Apelação
tinham declarado apoio à eutanásia. O acusado de cumplicidade na morte
de 73 mil supostos doentes mentais, disse que o secretário de Estado do
Ministério da Justiça, doutor Franz Schlegelberger (....) fez uma
preleção na conferência em que declarou que a ação ´T 4´ era legal.
Nenhum dos cem membros antigos, entre os quais estava o presidente da
Suprema Corte, Erwin Bumke, objetou". O fundamento "legal" era um
decreto sigiloso de Hitler. Brasileiros sabem o que significa decreto
secreto. Na época, quantos juízes aqui se levantaram? Voegelin: "Temos
documentos do encontro. Esses advogados, entre eles o presidente da
Suprema Corte, Bumke, sabiam que a campanha fora planejada, de fato, sem
base legal, com fundamento no decreto secreto do Füher (...)
Testemunhas da cena descrevem como os presidentes da Corte de Apelação
olharam para Bumke – o que dirá Bumke? – e Bumke nada disse!”. [10]. A máquina de moer consciências estava em plena opetração, no judiciário.
As cortes especiais de justiça, instaladas em Vichy, marcaram presença na Alemanha. Entre elas, a Volksgerichtshof
(Corte do Povo) oficializada em 1934 para processar “traidores”.
Naqueles tribunais tudo foi rápido e seguiu para a humilhação do
acusado, exibido com algemas. A defesa era simbólica, o juiz e o
promotor se uniam nas invectivas contra o preso. Apelos proibidos, o réu
eliminado em poucas horas. [11]
Notas
[1] R. Romano, “Como papel amassado” in Lima JCF, Neves LMW, (org): Ed. Fiocruz; 2006 : Fundamentos da Educação Escolar no Brasil Contemporâneo, www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/CAPITULO_4.pdf[2] Platão. Comentários de G. R. Morrow, que cito sem modificações notáveis.
[3] G. R. Morrow “Plato and the Rule of Law” in G. Vlastos (ed.) : Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion, T. II (University of Notre Dame Press, 1978), pp. 144 e ss. O ensaio de Morrow é de 1946. “I confess to a secret fondness for Plato´s proposal, because it strikes at a defect in the administration of justice to which our Anglo-Saxon lawyers seem to be congenitaly blind, viz. the abuse of judicial power. For the rule of law, as it worked out in our legal institutions, means the rule of judges, and this kind of rule, like any other, can become tyranny unless properly safeguarded.” Op. cit. p. 157.
[5] Cf. Stolleis, M/: A History of Public Law in Germany, 1914-1945 (Oxford, University Press, 2004).
[6] M. Weber, “Parlament und Regierung im neugeordneten Deutschland”. Gesammelte Politische Schriften, J.C. Mohr, 1971, p. 523.
[7] A., Droz: Les automates, figures artificielles d’hommes et d’animaux, Histoire et Technique, Ed. Du Griffon, 1949.
[8] Logique de Port- Royal, introdução e notas de Ch. Jourdan, Hachette, 1854, p. 65
[9] J. kott, Shakespeare nosso contemporâneo, SP, Cosac Naif para a edição brasileira.
[10] E. Voegelin, Hitler e os Alemães (São Paulo, É Realizações, 2008), pp. 92-93, Por volta de mil juristas alemães colaboraram com o nazismo. Cf. H. Camarade: “Le passé national-socialiste dans la société ouest-allemande entre 1958 et 1968. Modalités d’un changement de paradigme mémoriel” in Vingtième Siècle. Revue d'histoire, 2011/2 (n° 110), pp. 83-95.
[11] J. Snowden, “The Nazi Judiciary” in http://www.spiegel.de/international/germany/from-dictatorship-to-democracy-the-role-ex-nazis-played-in-early-west-germany-a-810207-4.html
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