Para quem deseja estudar a questão laica no Brasil, segue um trecho de minhas memorias.
A visita de Sua Santidade (Bento XVi) pode ser a ocasião para se pensar um pouco
sobre o papel dos intelectuais na vida pública. Em 1980, a Teologia da
Libertação e a Igreja Católica eram unanimidade nas esquerdas
nacionais. Oportunistas de todos os partidos cortejavam as batinas e as
sacristias, vendo nelas um caminho para chegar às massas que,
dirigidas por “tema errados” (religiosos) poderiam ser aproveitadas
para a revolução socialista. “Esquecendo” que a instituição
eclesiástica exigira e apoiara o Golpe de 1964, e depois também jogara
agua benta sobre o Ato Institucional número 5, militantes e acadêmicos
estranhos ao catolicismo, além de comungar para enganar os padres (eram
ateus, mas a Revolução, para eles, bons seguidores de Henrique 4,
valeria uma missa) eles redigiram calhamaços expondo uma suposta
colusão entre teologia e marxismo. E a “teoria”, ou “mediação
sócio-analítica” bateu firme nos cérebros, definindo inclusive empregos
na universidade pública. Na lua de mel entre católicos e marxistas de
várias seitas, pobre de quem ousasse negar as verdades estabelecidas
pelas direções partidárias !
Tive a infelicidade de escrever uma tese de doutoramento, em Paris, sob o clima dogmático e ideológico mencionado. Já na elaboração do texto, meu orientador, Dr. Claude Lefort, procurou me decidir a retirar dois capítulos, um sobre a reforma agrária defendida pela Igreja e outro sobre as Comunidades Eclesiais de Base. Com a minha recusa, deixei naturalmente de ser chamado como “tu” e fui posto no tratamento reservado ao “vós”. O professor Lefort ressaltou a excelente qualidade dos demais capítulos, mas disse-me que os dois referidos eram, além de excessivos, óbvios em demasia, visto que eu desejava provar algo muito conhecido, a saber, que a Igreja não era socialista ou revolucionária. Não valeria a pena gastar tempo do leitor, e da banca, como algo assim. Minha briga com o orientador foi mantida até as vésperas da defesa. Na noite anterior da defesa, telefonei para ele tendo em vista saber o seu juízo sobre o todo do trabalho. Ouço novamente que os demais capítulos eram excelentes, mas que eu teria problemas com os dois que ela indicara para serem cortados. No dia seguinte, compareci ao exame mais tenso do que o costume. O leitor que deseja ter uma idéia da situação, faça a experiência de recusar a orientação de cortes em seu trabalho de doutoramento, estando no exterior.
Na França, nos atos de defesa fala primeiro o candidato, depois o orientador, depois a banca. Apresentei o trabalho no seu todo, mostrando as suas articulações teóricas. Na sua vez, o orientador retomou a idéia de que os demais capítulos eram excelentes, mas que os dois referidos —reforma agrária e comunidades de base— eram demais na economia do texto, além do fato de que eu, neles, mobilizava demasiada erudição para demonstrar algo “evidente para todo mundo, ou seja, que a Igreja não era socialista e revolucionária”. Na réplica, só disse que ele pensava daquele modo, eu pensava de outro e que, no meu entender, o estatuto de revolucionária ou socialista, longe de ser negado por todos os analistas e militantes brasileiros, era uma certeza na mesma esquerda e na escrita da maioria dos intelectuais empenhados. A palavra foi dada à Professora Dra. Maria Isaura Pereira de Queiroz, a qual, em termos de Brasil, “fait autorité”, como afirmou várias vezes o professor Lefort. Em uma argüição primorosa, na qual construiu todo um quadro com a estrutura inteira da tese, a professora Queiroz disse à Banca, dirigindo-se em especial ao Dr. Lefort, que a minha análise era a mais correta, que a maioria dos comentadores via na Igreja uma força revolucionária no Brasil. E que o meu trabalho traria muitos debates, justamente porque navegava em sentido contrário à corrente dominante. Ela salientou ainda o rigor lógico e a quantidade de elementos empíricos, sobretudo documentos originais, agenciados por mim.
O examinador seguinte foi o Dr. Alain Touraine, que fez questão de me parabenizar porque era a primeira vez, foram estas as suas palavras, que ele teve diante dos olhos um doutoramento que unia com perfeição o lado teórico e o campo social. Ele também discordou do Prof. Lefort, em relação aos dois capítulos indigitados. Terminada a sua fala, e após minhas respostas, eu estava tão tenso que agradeci à banca, como se o exame estivesse no fim. Neste momento toma a palavra….o presidente da banca, Dr. François Bourricaud, que me disse, em tom risonho, que eu não tinha direito de lhe retirar a palavra, só porque ele presidia o exame. Ele também elogiou o trabalho inteiro, apenas reclamando do meu excesso de cautela lógica, e dizendo que eu abusava às vezes da maestria lógica, com a minha navalha de Ockham. Mas disse que aprovava a tese com muito prazer. Após sua fala, e minha resposta, o Dr. Lefort disse que revia sua opinião inicial, dadas as exposições dos colegas. Que de fato a sua atitude tinha sido dura em excesso. Novamente repito que ele tinha direito à sua posição e eu, à minha. Tudo termina bem, segundo o dito francês : “tout est bien, qui finit bien”.
“Tout est bien?”…doce ilusão ! Ao regressar da Europa, fui cassado na USP pela esquerda católica e marxista, com base na tese referida. Aqueles docentes que viveram a juventude na JEC e na JUC, imaginavam que a revolução passara pelo quintal de sua casa. E que minha heresia, se não estava mais em voga a fogueira física, merecia a fogueira moral. Assim, fui jogado para longe da USP, com a desculpas contraditórias entre si de que eu seria “marxista enragé”, ou “reacionário”. Preso por ter cão, preso por não ter cão…Mas quem espera coerência lógica de repressores ? Como não tinha nenhuma clique ou seita, ou partido para me proteger (o que agradeço aos deuses, pois me levou ainda mais à independência intelectual e moral diante da máquina de dobrar espinhas chamada Partido) a minha cassação ficou sem registro. Os inquisidores da USP fizeram o “sale boulot” para a esquerda e a Igreja “progressista”, livrando-se ao mesmo tempo de uma pessoa que não servia para os propósitos uspianos de espalhar a lisonja entre pares da USP e das suas hordas próximas. Acho hilariante o barulho feito pela mesma gente quando, pouco tempo depois, a PUC mandou embora professores ligados à constelação progressista. Mesmo assim, assinei manifestos, escrevi artigos contra a posição intolerante da cúpula da PUC… Achei ainda mais ridícula a reação indignada aos processos vaticanos contra Leonardo Boff. Quando se tratou de me cassar, todas a bençãos foram dadas. No caso da pimenta em seus olhos, a santa maravilha revolucionária achou ruim. Ocorre que, justamente, o livro indigitado prevenia a exatíssima e mesma esquerda católica e laica, sobre o que estava ocorrendo na ordem burocrático-política eclesiástica. Mas o dogma falou mais alto, o dogma ideológico, diga-se. E como diz uma pessoa mais do que intima em minha vida, “ideologia emburrece”. E como!
O texto andou por Seca e Meca, sem encontrar editor disposto ao perigo do desafio. Ele foi publicado pela Editora Kayrós, que pertencia à uma corrente trotskysta que discordava do coro geral. Sem poder impedir a edição do volume, a tática da esquerda para a censura não foi original. Ela combinou as calúnias e difamações e o silêncio. Calúnias e difamações : em jornal ligado de esquerda o editor, que estivera comigo na prisão, pediu uma resenha a jovem professora universitária. O texto da análise era muito crítico em relação às minhas teses, mas perfeitamente acadêmico. Antes da publicação do artigo, a referida professora procurou-me, em minha casa, trazendo as provas da edição onde seu trabalho seria estampado. Nervosa, ela fez questão de me indicar as passagens de sua autoria, e outras, “inseridas” pelo editor, de modo autoritário, no escrito. Nas frases impostas pelo ghostwriter ditatorial, lia-se que eu era um padre revoltado, que deixara a batina e que, cego pela raiva, agora criticava a pobre Igreja socialista sem quartel. Título da matéria: “Ex-frade dominicano, preso em 69, faz duras críticas à Igreja”. O procedimento é muito comum no mundo da militância, como todo estudioso do marxismo apologético pode constatar. Abaixo, copio um outro artigo com alvo idêntico, o de desmoralizar a pessoa de quem criticava a santa aliança entre esquerda marxista e clero. Mas adianto o outro ponto, a outra técnica de repressão: o silêncio. Como perceberam os aliados que a calúnia, a difamação, a mentira não tinham eficácia, seguiram a via mais conhecida pela Igreja romana e pela igreja marxista, a proibição de citar o livro. Mesmo hoje o volume, incluído nas bibliografias internacionais sobre o tema Igreja e Estado no Brasil, desaparece das bibliografias brasileiras. Recebi em data recente, para dar um parecer de edição, uma tese de doutorado. Segundo o autor, o livro que publiquei nunca existiu. Em todos os assuntos nos quais eu inclusive fui pioneiro e durante muitos anos o único (como as reuniões secretas entre Hierarquia e generais), o autor encontra um modo de citar o livro norte-americano (Diálogo na sombra, de Kenneth P. Serbin) que cita o meu trabalho…no final de seu volume. A cortina de silêncio é mais eficaz do que a calúnia e mentira diretas.
A virulência da patrulha foi tamanha que o Professor Gérard Lebrun, percebendo que a ela se devia minha perda de emprego e outras perseguições, publicou longa resenha no Jornal da Tarde, depois incorparada em seu livro Passeios ao Léu. Colegas da USP o cercaram no corredor do Departamento de Filosofia, cobrando-lhe o texto. Um docente chegou a perguntar, em tom irônico: “Lebrun, você acha mesmo bom o livro?”. Indignado, o professor replicou: “Você pensa que eu sou mentiroso?”. A patrulha calou-se, mas continua agindo. Também em data recente recebi um parecer anônimo e covarde sobre o pedido de bolsa de um aluno, que desejava trabalhar com tema próximo ao do meu indigitado livro. Em 2007 ainda o parecerista insinua, sem dizer claramente, que não tenho credenciais para o assunto… Enfim, eles cortam e silenciam, no Brasil e nos países da “América Latina”. Não conseguem o mesmo em plano cosmopolita. Daí o seu ódio aumenta, e como aumenta! Nada mais cômico do que o ódio mascarado de amor. Na Igreja existem muitas dessas máscaras.
Aliás, uma das técnicas usadas para me tornar odiado nos setores católicos e adjacências, foi espalhar a meia voz, como é habitual entre os piores católicos, que eu era um “revoltado” contra a Igreja. Não é verdade. Sou gratíssimo à Ordem dos Pregadores por tudo o que nela recebi, do plano especulativo ao prático, do respeito e culto ao sagrado às intervenções na vida pública. Guardarei sempre na memória e no coração os instantes de silêncio, estudo, culto e lazer com pessoas do mais elevado espírito como é o caso de Frei Guilherme Nery Pinto, um sábio na pessoa de quem recolho todos os frades que me deram alento e apoio. E também, se me mantenho entre os membros da Igreja, como leigo, é porque tenho nela uma fonte de vida e de esperança. Mas nunca deixei que esta adesão de fé obnubilasse o meu juízo crítico. E não confundo a Igreja com determinados setores seus, mesmo os hegemônicos que determinam a sua política mundana. Estes, por sua vez, apresentam matizes diversos que vão da direita à esquerda social e política. E não aceito que tentem impôr como norma de fé as suas opções ideológicas. Assumo o enunciado de Agostinho, que manda seguir o verdadeiro em todos os momentos: “Deus não precisa da minha mentira”. A chantagem que usa frases melífluas para passar mandamentos humanos e não divinos, não teve e nem terá sucesso comigo. Quando uma pessoa como Paulo Evaristo fala, eu penso e obedeço. Quando um notório politico hierárquico se recusa a testemunhar as dores de torturados, eu o denuncio. Entre o Grande Inquisidor e o Cristo, minha opção imperativa é pelo segundo, contra o primeiro.
Tive a infelicidade de escrever uma tese de doutoramento, em Paris, sob o clima dogmático e ideológico mencionado. Já na elaboração do texto, meu orientador, Dr. Claude Lefort, procurou me decidir a retirar dois capítulos, um sobre a reforma agrária defendida pela Igreja e outro sobre as Comunidades Eclesiais de Base. Com a minha recusa, deixei naturalmente de ser chamado como “tu” e fui posto no tratamento reservado ao “vós”. O professor Lefort ressaltou a excelente qualidade dos demais capítulos, mas disse-me que os dois referidos eram, além de excessivos, óbvios em demasia, visto que eu desejava provar algo muito conhecido, a saber, que a Igreja não era socialista ou revolucionária. Não valeria a pena gastar tempo do leitor, e da banca, como algo assim. Minha briga com o orientador foi mantida até as vésperas da defesa. Na noite anterior da defesa, telefonei para ele tendo em vista saber o seu juízo sobre o todo do trabalho. Ouço novamente que os demais capítulos eram excelentes, mas que eu teria problemas com os dois que ela indicara para serem cortados. No dia seguinte, compareci ao exame mais tenso do que o costume. O leitor que deseja ter uma idéia da situação, faça a experiência de recusar a orientação de cortes em seu trabalho de doutoramento, estando no exterior.
Na França, nos atos de defesa fala primeiro o candidato, depois o orientador, depois a banca. Apresentei o trabalho no seu todo, mostrando as suas articulações teóricas. Na sua vez, o orientador retomou a idéia de que os demais capítulos eram excelentes, mas que os dois referidos —reforma agrária e comunidades de base— eram demais na economia do texto, além do fato de que eu, neles, mobilizava demasiada erudição para demonstrar algo “evidente para todo mundo, ou seja, que a Igreja não era socialista e revolucionária”. Na réplica, só disse que ele pensava daquele modo, eu pensava de outro e que, no meu entender, o estatuto de revolucionária ou socialista, longe de ser negado por todos os analistas e militantes brasileiros, era uma certeza na mesma esquerda e na escrita da maioria dos intelectuais empenhados. A palavra foi dada à Professora Dra. Maria Isaura Pereira de Queiroz, a qual, em termos de Brasil, “fait autorité”, como afirmou várias vezes o professor Lefort. Em uma argüição primorosa, na qual construiu todo um quadro com a estrutura inteira da tese, a professora Queiroz disse à Banca, dirigindo-se em especial ao Dr. Lefort, que a minha análise era a mais correta, que a maioria dos comentadores via na Igreja uma força revolucionária no Brasil. E que o meu trabalho traria muitos debates, justamente porque navegava em sentido contrário à corrente dominante. Ela salientou ainda o rigor lógico e a quantidade de elementos empíricos, sobretudo documentos originais, agenciados por mim.
O examinador seguinte foi o Dr. Alain Touraine, que fez questão de me parabenizar porque era a primeira vez, foram estas as suas palavras, que ele teve diante dos olhos um doutoramento que unia com perfeição o lado teórico e o campo social. Ele também discordou do Prof. Lefort, em relação aos dois capítulos indigitados. Terminada a sua fala, e após minhas respostas, eu estava tão tenso que agradeci à banca, como se o exame estivesse no fim. Neste momento toma a palavra….o presidente da banca, Dr. François Bourricaud, que me disse, em tom risonho, que eu não tinha direito de lhe retirar a palavra, só porque ele presidia o exame. Ele também elogiou o trabalho inteiro, apenas reclamando do meu excesso de cautela lógica, e dizendo que eu abusava às vezes da maestria lógica, com a minha navalha de Ockham. Mas disse que aprovava a tese com muito prazer. Após sua fala, e minha resposta, o Dr. Lefort disse que revia sua opinião inicial, dadas as exposições dos colegas. Que de fato a sua atitude tinha sido dura em excesso. Novamente repito que ele tinha direito à sua posição e eu, à minha. Tudo termina bem, segundo o dito francês : “tout est bien, qui finit bien”.
“Tout est bien?”…doce ilusão ! Ao regressar da Europa, fui cassado na USP pela esquerda católica e marxista, com base na tese referida. Aqueles docentes que viveram a juventude na JEC e na JUC, imaginavam que a revolução passara pelo quintal de sua casa. E que minha heresia, se não estava mais em voga a fogueira física, merecia a fogueira moral. Assim, fui jogado para longe da USP, com a desculpas contraditórias entre si de que eu seria “marxista enragé”, ou “reacionário”. Preso por ter cão, preso por não ter cão…Mas quem espera coerência lógica de repressores ? Como não tinha nenhuma clique ou seita, ou partido para me proteger (o que agradeço aos deuses, pois me levou ainda mais à independência intelectual e moral diante da máquina de dobrar espinhas chamada Partido) a minha cassação ficou sem registro. Os inquisidores da USP fizeram o “sale boulot” para a esquerda e a Igreja “progressista”, livrando-se ao mesmo tempo de uma pessoa que não servia para os propósitos uspianos de espalhar a lisonja entre pares da USP e das suas hordas próximas. Acho hilariante o barulho feito pela mesma gente quando, pouco tempo depois, a PUC mandou embora professores ligados à constelação progressista. Mesmo assim, assinei manifestos, escrevi artigos contra a posição intolerante da cúpula da PUC… Achei ainda mais ridícula a reação indignada aos processos vaticanos contra Leonardo Boff. Quando se tratou de me cassar, todas a bençãos foram dadas. No caso da pimenta em seus olhos, a santa maravilha revolucionária achou ruim. Ocorre que, justamente, o livro indigitado prevenia a exatíssima e mesma esquerda católica e laica, sobre o que estava ocorrendo na ordem burocrático-política eclesiástica. Mas o dogma falou mais alto, o dogma ideológico, diga-se. E como diz uma pessoa mais do que intima em minha vida, “ideologia emburrece”. E como!
O texto andou por Seca e Meca, sem encontrar editor disposto ao perigo do desafio. Ele foi publicado pela Editora Kayrós, que pertencia à uma corrente trotskysta que discordava do coro geral. Sem poder impedir a edição do volume, a tática da esquerda para a censura não foi original. Ela combinou as calúnias e difamações e o silêncio. Calúnias e difamações : em jornal ligado de esquerda o editor, que estivera comigo na prisão, pediu uma resenha a jovem professora universitária. O texto da análise era muito crítico em relação às minhas teses, mas perfeitamente acadêmico. Antes da publicação do artigo, a referida professora procurou-me, em minha casa, trazendo as provas da edição onde seu trabalho seria estampado. Nervosa, ela fez questão de me indicar as passagens de sua autoria, e outras, “inseridas” pelo editor, de modo autoritário, no escrito. Nas frases impostas pelo ghostwriter ditatorial, lia-se que eu era um padre revoltado, que deixara a batina e que, cego pela raiva, agora criticava a pobre Igreja socialista sem quartel. Título da matéria: “Ex-frade dominicano, preso em 69, faz duras críticas à Igreja”. O procedimento é muito comum no mundo da militância, como todo estudioso do marxismo apologético pode constatar. Abaixo, copio um outro artigo com alvo idêntico, o de desmoralizar a pessoa de quem criticava a santa aliança entre esquerda marxista e clero. Mas adianto o outro ponto, a outra técnica de repressão: o silêncio. Como perceberam os aliados que a calúnia, a difamação, a mentira não tinham eficácia, seguiram a via mais conhecida pela Igreja romana e pela igreja marxista, a proibição de citar o livro. Mesmo hoje o volume, incluído nas bibliografias internacionais sobre o tema Igreja e Estado no Brasil, desaparece das bibliografias brasileiras. Recebi em data recente, para dar um parecer de edição, uma tese de doutorado. Segundo o autor, o livro que publiquei nunca existiu. Em todos os assuntos nos quais eu inclusive fui pioneiro e durante muitos anos o único (como as reuniões secretas entre Hierarquia e generais), o autor encontra um modo de citar o livro norte-americano (Diálogo na sombra, de Kenneth P. Serbin) que cita o meu trabalho…no final de seu volume. A cortina de silêncio é mais eficaz do que a calúnia e mentira diretas.
A virulência da patrulha foi tamanha que o Professor Gérard Lebrun, percebendo que a ela se devia minha perda de emprego e outras perseguições, publicou longa resenha no Jornal da Tarde, depois incorparada em seu livro Passeios ao Léu. Colegas da USP o cercaram no corredor do Departamento de Filosofia, cobrando-lhe o texto. Um docente chegou a perguntar, em tom irônico: “Lebrun, você acha mesmo bom o livro?”. Indignado, o professor replicou: “Você pensa que eu sou mentiroso?”. A patrulha calou-se, mas continua agindo. Também em data recente recebi um parecer anônimo e covarde sobre o pedido de bolsa de um aluno, que desejava trabalhar com tema próximo ao do meu indigitado livro. Em 2007 ainda o parecerista insinua, sem dizer claramente, que não tenho credenciais para o assunto… Enfim, eles cortam e silenciam, no Brasil e nos países da “América Latina”. Não conseguem o mesmo em plano cosmopolita. Daí o seu ódio aumenta, e como aumenta! Nada mais cômico do que o ódio mascarado de amor. Na Igreja existem muitas dessas máscaras.
Aliás, uma das técnicas usadas para me tornar odiado nos setores católicos e adjacências, foi espalhar a meia voz, como é habitual entre os piores católicos, que eu era um “revoltado” contra a Igreja. Não é verdade. Sou gratíssimo à Ordem dos Pregadores por tudo o que nela recebi, do plano especulativo ao prático, do respeito e culto ao sagrado às intervenções na vida pública. Guardarei sempre na memória e no coração os instantes de silêncio, estudo, culto e lazer com pessoas do mais elevado espírito como é o caso de Frei Guilherme Nery Pinto, um sábio na pessoa de quem recolho todos os frades que me deram alento e apoio. E também, se me mantenho entre os membros da Igreja, como leigo, é porque tenho nela uma fonte de vida e de esperança. Mas nunca deixei que esta adesão de fé obnubilasse o meu juízo crítico. E não confundo a Igreja com determinados setores seus, mesmo os hegemônicos que determinam a sua política mundana. Estes, por sua vez, apresentam matizes diversos que vão da direita à esquerda social e política. E não aceito que tentem impôr como norma de fé as suas opções ideológicas. Assumo o enunciado de Agostinho, que manda seguir o verdadeiro em todos os momentos: “Deus não precisa da minha mentira”. A chantagem que usa frases melífluas para passar mandamentos humanos e não divinos, não teve e nem terá sucesso comigo. Quando uma pessoa como Paulo Evaristo fala, eu penso e obedeço. Quando um notório politico hierárquico se recusa a testemunhar as dores de torturados, eu o denuncio. Entre o Grande Inquisidor e o Cristo, minha opção imperativa é pelo segundo, contra o primeiro.
Republico agora, anos depois, a resenha de Brasil, Igreja contra Estado feita por Clodovis
Boff, irmão menos talentoso e prudente do famoso teólogo. Na época, o
dito irmão de Boff pregava a utilização, pela teologia, da “mediação
sócio-analítica” marxista. Entre os dogmas proclamados por ele, estava o
que afirmava na Igreja uma instituição grávida de socialismo. A mostra
do primitivismo do mencionado intelectual é grave, porque no mesmo
instante em que tentava me desmoralizar pessoalmente pelas críticas à
Igreja, esta última, sob João Paulo 2, iniciava o Termidor que faria de
Leonardo Boff e de outros as novas vítimas da Santa Inquisição, agora
sob outro nome. Um detalhe: para me atacar, de modo pérfido, o autor
teve duas páginas plenas da Revista Leia Livros, então editada em São
Paulo. Exigi direito de resposta (não mencionei a Lei de Imprensa,
porque sempre fui democrata). Os editores da revista negaram o mesmo
espaço usado e abusado por Clodovis Boff. Após muitos aborrecimentos,
semblantes fechados e ameaçadores, foi publicada a minha réplica, com o
mesmo número de carateres da resenha acusatória, na seção “Cartas do
Leitor”, em caracteres quase invisíveis. Se eu conseguir digitar de
modo a repetir a forma da resposta, tal como publicada, o leitor terá
idéia da violência cometida pelos editores, que também julgavam (e me
disseram na face) que as críticas à Igreja não eram bem vindas, “devido
à importância no Brasil”. Santas Alianças. Boff, contente com o seu
trabalho apologético, achou natural a censura, não se pronunciou
contrário a ela. A repressão (prevista por mim no livro atacado por ele)
do Vaticano ainda estava para cair, com todo o seu peso, sobre o mundo
“progressista” da Igreja. O fato é que na esquerda de 1980, além das
críticas à URSS e ao santo partido serem proibidas (entenda-se que o
santo partido poderia ter sua sede no Kremlin, em Pekin ou na “pequenina
e gloriosa Albânia”) também proibidas, por extensão, as críticas “à
nossa maior aliada”, a Santa Madre e seus fiéis, sobretudo e
especialmente, dada uma opção preferencial, das esquerdas…
Segue, pois o texto de Clodovis Boff, depois a minha resposta. Aconselho usar aqueles saquinhos de vômito, disttribuídos pelas companhias aéreas, quando se trata de viagens que revoltam o estômago.
A IGREJA DA ESPERANÇA
A performance de Roberto Romano não deixa de ser prestigiosa. Na verdade, é luz que brilha mais que ilumina. Esta obra em debate exprime de maneira particularmente elegante uma posição já bem conhecida e que circula nas rodas da esquerda intelectual.
Quanto ao método :
Romano centra sia atenção no discurso eclesiástico, procurando apreender sua lógica própria, que seria no fundo a lógica do poder. É bem verdade que uma análise assim é necessária, e Max Weber mostra-se aqui um exemplo, ao contrário de muitos analistas tacanhos que não dão a esse nível maior atenção do que a “epifenômenos” ou “reflexos ideológicos”. Mas é possível contentar-se com isso? Como entender adequadamente a prática social de uma instituição fixando-se principalmente e por vezes na sua autocompreensãom embora usando com relação ao seu discurso a estratégia da suspeição sistemática?
Ademais, o autor trata o discurso da Igreja como se fosse todo ele um discurso teológico. Ora, os textos que ele utiliza são prevalentemente textos pastorais, mesmo aqueles elaborados por teólogos. Ora, uma coisa é o discurso teológico da Igreja e outro o seu discurso pastoral. E não se pode julgar a este com os critérios daquele. Com efeito, o discurso pastoral, como todo discurso da prática, sofre as limitações externas das condições sociais e sobretudo políticas de sua produção. Quer dizer: os bispos não podem dizer o que querem, mas o que lhes é possível e permitido. Extrair o discurso pastoral de seu contexto essencial de referência e tratá-lo como um discurso teológico é fazer uma análise abstrata e enviesada. Isso vale para todos os discursos pastorais que o autor examina: o documento “Eu ouvi os clamores do meu povo”, as Notas de J. Comblin em vista de Medellin, os relatórios e estudos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), etc.
Quanto aos discursos propriamente teológicos, Romano fala deles de modo apenas alusivo, comprazendo-se em críticas genéricas e desdenhosas. O autor que ele cita neste campo é E. Dussel, que não é teólogo e sim historiador e filósofo e cujas aventuras idealistas em teologia só podem encontrar ressonância em espíritos talhados pela mesma idiossincrasia. Da atual produção propriamente teológica, Romano se contenta com acenos, ou pouco mais que nada.
Quanto à teoria de fundo:
Romano percebe corretamente que a Igreja tem um discurso próprio, que esse discurso fornece as motivações secretas de sua intervenção na sociedade e que dá a essa intervenção um caráter de unidade. Mas a questão é mais complexa que o autor dá a entender. Efetivamente, diz ele que a Igreja tem um discurso próprio sobre a sociedade, um discurso teológico-político. Acha ele que esse é o discurso-base, o discurso justificador das posições sempre cambiantes que a Igreja tem que adotar na sociedade. Romano tenta reconstruir tal discursos (SIC) fundamental ao redor das noções-chave de pessoa, bem comum, participação, justiça, etc. Ora, aí fica obliterado o caráter processual e portanto extremamente relativo desse discurso. Ele é, com efeito, resultado de toda uma evolução histórica. Não se pode fixá-lo assim uma vez por todas como um código fechado. Seria cair na fetichização, o que para fins de análise é cômodo. Embora o discurso teológico-político, mais concretamente sob a forma de “doutrina social” da Igreja, se imponha pela força de sua tradição e pela autoridade que veicula, ele mesmo não é imutável. Evolui, e sua evoluções são mais que aparências, e variações do mesmo discurso de fundo.
Na verdade, se há um discurso próprio da Igreja no sentido de ser o discurso mais originário e por isso mesmo o mais permanente é o Evangelho e mais largamente as Sagradas Escrituras. O Evangelho é com efeito o discurso constitutivo da Igreja, sua mensagem fundadora. Não é pois um discurso teológico-político o que a Igreja tem de mais próprio, mais (SIC) um discurso de fé. E é sobre esse nível mais originário que a posição da Igreja na sociedade se articula de modo ao mesmo tempo regrado e livre. O discurso teológico-político que a Igreja elabora possui mais um caráter de discurso apropriado que de discurso próprio. O discurso original da Igreja é o discurso originário. É verdade o discurso da tradição pode pesar na Igreja de forma decisiva, mas nem sempre. De outro lado, como explicar corretamente a própria constituição deste discurso e também as mudanças recentes da Igreja —como ainda veremos?
O autor se recusa a entender a Igreja como “aparelho ideológico de Estado”, um “instrumento neutro”, passível de todas as utilizações políticas (p. 14, 61, 173), uma espécie de instituição ventríloqua. Mas o oposto é igualmente falso: que a Igreja seja uma instituição que se recorta perfeitamente dentro da sociedade, podendo se confrontar com o Estado, a Burguesia, a Massa e sendo detentora de um projeto político definido, com estratégias dterminadas. Se assim fosse, seria preciso explitá-lo; o livro tenta fazê-lo mas não chega àquilo.
Centrando sua análise no discurso político-teológico da Igreja, o autor percebe, e de certa forma funda, a unidade interna da Igrejam que aparece então como uma entidade social homgênea. Se muda não é dentro, mas for a. Ela teria uma unidade de projeto histórico (a hierocracia) mas diversidade de estratégias. E é só nesse nível que teria havido mudanças. O autor não pensa as contradições internas da Igreja e pensa menos ainda o modo como elas se articulam sobre a unidade teológica de fundo. Sua teoria é muito pobre para apreender e refletir tal problemática. Ora, se a unidade da Igreja e de seu discurso na história se enraiza mais fundo do que na sua doutrina social é possível estender que a Igreja possa mudar de projeto histórico sem mudar de identidade e sem fraturar sua unidade teológica interna. A mudança de projeto histórico não se faria então às custas de sua unidade de fé. Ao contrário: é essa unidade que garantiria a continuidade histórica e a unidade social da Igreja dentro da sociedade. É só assim que é possível pensar a “virada” de uma Igreja de cristandade para uma Igreja “popular” e a unidade pastoral e social que a Igreja do Brasil realiza hoje em torno da chamada “opção pelos pobres”. Não que a unidade da Igreja em termos políticos seja inteiriça, mas o projeto social expresso naqueles termos (para ela uma estratégia pastoral de um projeto mais alto; a salvação) constitui justamente hoje o aspecto principal de sua unidade contraditória no seio da sociedade.
Da análise dos discursos da Igreja no Brasil contemporâneo, Romano conclui que a mudança do projeto histórico por parte da Igreja não se deu e nem podia se dar. Ora, colocando-se ainda na mesma perspectiva que ele, há que dizer o contrário. E ao contrário do que afirma claramente o autor (p. 234), é preciso reconhecer que a teologia e a pastoral da Igreja já articulam um discurso que superou o projeto de cristandade e que produziu uma concepção cristã da secularização, do mundo, da política. É precisamente a articulação: Igreja, Mundo e Reino que, entendendo o Mundo, e não só a Igreja, como o espaço do Reino, permitiu superar uma visão eclesiocêntrica da eclesiologia. Romano percebe tal articulação, mas não entende como ela opera e quais podem ser seus efeitos teológicos e pastorais (p. 23, 39, 128-129, 146, 248-249). Confunde uma interpretação teológica dos fatos históricos e seculares (“Sinais dos Tempos”) com uma sacralização e eclesialização desses fatos. Ela não vê o que é uma evidência para qualquer militante cristão de hoje: que a fé não esgota sua significação no campo religioso ou eclesial, mas compreende uma dimensão secular e política, onde atua, já não mais na forma da confissão mas de inspiração ou mística (entendida como sistema de motivações). Nesse sentido, as questões que o autor levanta, a partir de Fichte, sobre a natureza “imaginária” do discurso religioso, que hoje na Igreja se anexaria desencontradamente um discurso científico e técnico sobre a sociedade, obscurecem mais que esclarecem a problemática (p. 41, 44, 246, etc.). Além de esquecer a longa tradição de confronto entre razão e fé na história da Igreja, ele mostra ignorar isso: que a teologia atual já tirou suficientemente a limpo a questão epistemológica de sua relação coma ratio política. E declina, agradecida, a oferta comovedora de Romano que quer-lhe dar os idealistas alemães por padrinhos (p. 172-176, 195, 206).
Quanto à concepção privatista que teria a Igreja com respeito à consciência dos oprimidos. Não é possível aqui discutir questões de detalhe. Mas há no livro uma tese, sobre a qual o autor volta diversas vezes, que sintezamos acima e que a aqui precisamos discutir.
De fato, a concepção referida existiu e ainda existe. A questão é examinar se não houve evolução e em que proporções se encontra ainda dentro da Igreja. Afirmá-la como permanente e geral parece-nos irreal. O autor percebe a presença dessa concepção provatista da consciência popular pela Igreja no documento “Eu ouvi…”. É necessário contudo levar em conta o contexto histórico e social daquele documento para não se cair em análises abstratas. Ora, aquele documento se situa dentro de uma trajetória de Igreja. Ele exprime uma tomada de posição pública da Igreja ao lado dos oprimidos justamente num momento em que uma ditadura feroz mantinha o povo amordaçado. A Igreja, que podia ainda falar, quer fazê-lo em favor do povo. Esse é o significado essencial do documento. E o Poder não se enganou: censurou-o como pôde (apreendendo o número 27 dos Cadernos do CEAS que o publicava). Também não foi por nada que tal documento não traz a assinatura de todos os bispos de (SIC) Nordeste mas só de alguns —“detalhe” que escapou a Romano. É, pois, este contexto fechado, em que a influência da Igreja estava sendo desafiada, que explica porque a posição dos bispos aparece com um caráter um tanto messiânico e porque a força do povo não é evidenciada. Esta contudo não é totalmente denegada, como ofaz entender Romano. Assim, na “conclusão” do referido documento os bispos não só vêem a relação dominantes/dominados de modo dialético e conflitivo, isto é, EM TERMOS DE “CONFRONTO DAS CLASSES” [A CAIXA ALTA É MINHA, ROBERTO ROMANO], como também afirmam claramente : “As massas oprimidas dos operários, camponeses e numerosos subempregados dele (do confronto das classes) tomam conhecimento e assumem progressivamente uma nova consciência libertadora”.
Segue, pois o texto de Clodovis Boff, depois a minha resposta. Aconselho usar aqueles saquinhos de vômito, disttribuídos pelas companhias aéreas, quando se trata de viagens que revoltam o estômago.
A IGREJA DA ESPERANÇA
A performance de Roberto Romano não deixa de ser prestigiosa. Na verdade, é luz que brilha mais que ilumina. Esta obra em debate exprime de maneira particularmente elegante uma posição já bem conhecida e que circula nas rodas da esquerda intelectual.
Quanto ao método :
Romano centra sia atenção no discurso eclesiástico, procurando apreender sua lógica própria, que seria no fundo a lógica do poder. É bem verdade que uma análise assim é necessária, e Max Weber mostra-se aqui um exemplo, ao contrário de muitos analistas tacanhos que não dão a esse nível maior atenção do que a “epifenômenos” ou “reflexos ideológicos”. Mas é possível contentar-se com isso? Como entender adequadamente a prática social de uma instituição fixando-se principalmente e por vezes na sua autocompreensãom embora usando com relação ao seu discurso a estratégia da suspeição sistemática?
Ademais, o autor trata o discurso da Igreja como se fosse todo ele um discurso teológico. Ora, os textos que ele utiliza são prevalentemente textos pastorais, mesmo aqueles elaborados por teólogos. Ora, uma coisa é o discurso teológico da Igreja e outro o seu discurso pastoral. E não se pode julgar a este com os critérios daquele. Com efeito, o discurso pastoral, como todo discurso da prática, sofre as limitações externas das condições sociais e sobretudo políticas de sua produção. Quer dizer: os bispos não podem dizer o que querem, mas o que lhes é possível e permitido. Extrair o discurso pastoral de seu contexto essencial de referência e tratá-lo como um discurso teológico é fazer uma análise abstrata e enviesada. Isso vale para todos os discursos pastorais que o autor examina: o documento “Eu ouvi os clamores do meu povo”, as Notas de J. Comblin em vista de Medellin, os relatórios e estudos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), etc.
Quanto aos discursos propriamente teológicos, Romano fala deles de modo apenas alusivo, comprazendo-se em críticas genéricas e desdenhosas. O autor que ele cita neste campo é E. Dussel, que não é teólogo e sim historiador e filósofo e cujas aventuras idealistas em teologia só podem encontrar ressonância em espíritos talhados pela mesma idiossincrasia. Da atual produção propriamente teológica, Romano se contenta com acenos, ou pouco mais que nada.
Quanto à teoria de fundo:
Romano percebe corretamente que a Igreja tem um discurso próprio, que esse discurso fornece as motivações secretas de sua intervenção na sociedade e que dá a essa intervenção um caráter de unidade. Mas a questão é mais complexa que o autor dá a entender. Efetivamente, diz ele que a Igreja tem um discurso próprio sobre a sociedade, um discurso teológico-político. Acha ele que esse é o discurso-base, o discurso justificador das posições sempre cambiantes que a Igreja tem que adotar na sociedade. Romano tenta reconstruir tal discursos (SIC) fundamental ao redor das noções-chave de pessoa, bem comum, participação, justiça, etc. Ora, aí fica obliterado o caráter processual e portanto extremamente relativo desse discurso. Ele é, com efeito, resultado de toda uma evolução histórica. Não se pode fixá-lo assim uma vez por todas como um código fechado. Seria cair na fetichização, o que para fins de análise é cômodo. Embora o discurso teológico-político, mais concretamente sob a forma de “doutrina social” da Igreja, se imponha pela força de sua tradição e pela autoridade que veicula, ele mesmo não é imutável. Evolui, e sua evoluções são mais que aparências, e variações do mesmo discurso de fundo.
Na verdade, se há um discurso próprio da Igreja no sentido de ser o discurso mais originário e por isso mesmo o mais permanente é o Evangelho e mais largamente as Sagradas Escrituras. O Evangelho é com efeito o discurso constitutivo da Igreja, sua mensagem fundadora. Não é pois um discurso teológico-político o que a Igreja tem de mais próprio, mais (SIC) um discurso de fé. E é sobre esse nível mais originário que a posição da Igreja na sociedade se articula de modo ao mesmo tempo regrado e livre. O discurso teológico-político que a Igreja elabora possui mais um caráter de discurso apropriado que de discurso próprio. O discurso original da Igreja é o discurso originário. É verdade o discurso da tradição pode pesar na Igreja de forma decisiva, mas nem sempre. De outro lado, como explicar corretamente a própria constituição deste discurso e também as mudanças recentes da Igreja —como ainda veremos?
O autor se recusa a entender a Igreja como “aparelho ideológico de Estado”, um “instrumento neutro”, passível de todas as utilizações políticas (p. 14, 61, 173), uma espécie de instituição ventríloqua. Mas o oposto é igualmente falso: que a Igreja seja uma instituição que se recorta perfeitamente dentro da sociedade, podendo se confrontar com o Estado, a Burguesia, a Massa e sendo detentora de um projeto político definido, com estratégias dterminadas. Se assim fosse, seria preciso explitá-lo; o livro tenta fazê-lo mas não chega àquilo.
Centrando sua análise no discurso político-teológico da Igreja, o autor percebe, e de certa forma funda, a unidade interna da Igrejam que aparece então como uma entidade social homgênea. Se muda não é dentro, mas for a. Ela teria uma unidade de projeto histórico (a hierocracia) mas diversidade de estratégias. E é só nesse nível que teria havido mudanças. O autor não pensa as contradições internas da Igreja e pensa menos ainda o modo como elas se articulam sobre a unidade teológica de fundo. Sua teoria é muito pobre para apreender e refletir tal problemática. Ora, se a unidade da Igreja e de seu discurso na história se enraiza mais fundo do que na sua doutrina social é possível estender que a Igreja possa mudar de projeto histórico sem mudar de identidade e sem fraturar sua unidade teológica interna. A mudança de projeto histórico não se faria então às custas de sua unidade de fé. Ao contrário: é essa unidade que garantiria a continuidade histórica e a unidade social da Igreja dentro da sociedade. É só assim que é possível pensar a “virada” de uma Igreja de cristandade para uma Igreja “popular” e a unidade pastoral e social que a Igreja do Brasil realiza hoje em torno da chamada “opção pelos pobres”. Não que a unidade da Igreja em termos políticos seja inteiriça, mas o projeto social expresso naqueles termos (para ela uma estratégia pastoral de um projeto mais alto; a salvação) constitui justamente hoje o aspecto principal de sua unidade contraditória no seio da sociedade.
Da análise dos discursos da Igreja no Brasil contemporâneo, Romano conclui que a mudança do projeto histórico por parte da Igreja não se deu e nem podia se dar. Ora, colocando-se ainda na mesma perspectiva que ele, há que dizer o contrário. E ao contrário do que afirma claramente o autor (p. 234), é preciso reconhecer que a teologia e a pastoral da Igreja já articulam um discurso que superou o projeto de cristandade e que produziu uma concepção cristã da secularização, do mundo, da política. É precisamente a articulação: Igreja, Mundo e Reino que, entendendo o Mundo, e não só a Igreja, como o espaço do Reino, permitiu superar uma visão eclesiocêntrica da eclesiologia. Romano percebe tal articulação, mas não entende como ela opera e quais podem ser seus efeitos teológicos e pastorais (p. 23, 39, 128-129, 146, 248-249). Confunde uma interpretação teológica dos fatos históricos e seculares (“Sinais dos Tempos”) com uma sacralização e eclesialização desses fatos. Ela não vê o que é uma evidência para qualquer militante cristão de hoje: que a fé não esgota sua significação no campo religioso ou eclesial, mas compreende uma dimensão secular e política, onde atua, já não mais na forma da confissão mas de inspiração ou mística (entendida como sistema de motivações). Nesse sentido, as questões que o autor levanta, a partir de Fichte, sobre a natureza “imaginária” do discurso religioso, que hoje na Igreja se anexaria desencontradamente um discurso científico e técnico sobre a sociedade, obscurecem mais que esclarecem a problemática (p. 41, 44, 246, etc.). Além de esquecer a longa tradição de confronto entre razão e fé na história da Igreja, ele mostra ignorar isso: que a teologia atual já tirou suficientemente a limpo a questão epistemológica de sua relação coma ratio política. E declina, agradecida, a oferta comovedora de Romano que quer-lhe dar os idealistas alemães por padrinhos (p. 172-176, 195, 206).
Quanto à concepção privatista que teria a Igreja com respeito à consciência dos oprimidos. Não é possível aqui discutir questões de detalhe. Mas há no livro uma tese, sobre a qual o autor volta diversas vezes, que sintezamos acima e que a aqui precisamos discutir.
De fato, a concepção referida existiu e ainda existe. A questão é examinar se não houve evolução e em que proporções se encontra ainda dentro da Igreja. Afirmá-la como permanente e geral parece-nos irreal. O autor percebe a presença dessa concepção provatista da consciência popular pela Igreja no documento “Eu ouvi…”. É necessário contudo levar em conta o contexto histórico e social daquele documento para não se cair em análises abstratas. Ora, aquele documento se situa dentro de uma trajetória de Igreja. Ele exprime uma tomada de posição pública da Igreja ao lado dos oprimidos justamente num momento em que uma ditadura feroz mantinha o povo amordaçado. A Igreja, que podia ainda falar, quer fazê-lo em favor do povo. Esse é o significado essencial do documento. E o Poder não se enganou: censurou-o como pôde (apreendendo o número 27 dos Cadernos do CEAS que o publicava). Também não foi por nada que tal documento não traz a assinatura de todos os bispos de (SIC) Nordeste mas só de alguns —“detalhe” que escapou a Romano. É, pois, este contexto fechado, em que a influência da Igreja estava sendo desafiada, que explica porque a posição dos bispos aparece com um caráter um tanto messiânico e porque a força do povo não é evidenciada. Esta contudo não é totalmente denegada, como ofaz entender Romano. Assim, na “conclusão” do referido documento os bispos não só vêem a relação dominantes/dominados de modo dialético e conflitivo, isto é, EM TERMOS DE “CONFRONTO DAS CLASSES” [A CAIXA ALTA É MINHA, ROBERTO ROMANO], como também afirmam claramente : “As massas oprimidas dos operários, camponeses e numerosos subempregados dele (do confronto das classes) tomam conhecimento e assumem progressivamente uma nova consciência libertadora”.
Romano vê a mesma concepção privatista atual na pastoral da Igreja junto às CEB´s. E sintomáticamente nesse campo que ele volta com mais insistência sobre o caráter manipulador da ação da Igreja. Não há dúvida: a Igreja intervem na consciência da massa, influi sobre ela. E não pode ser diferente. Toda questão é se tal intervenção sujeita ou liberta, se limita a liberdade ou a suscita. E disso o autor não cuida. Ela dá a entender que a Igreja domina porque intervém, sem precisamente demonstrar que a Igreja intervém para dominar. Ademais, na questão das CEBs, o autor vê a ação (invariavelmente dominadora) da Igreja com respeito aos setores populares. Não vê a ação inversa. Para ele, esta nova estratégia de domesticação das consciências pela Igreja conseguiu seus resultados, que é essa imensa rede de CEBs espalhadas pelo país. Ora, isso é atribuir muito, excessivo poder à Igreja. Mais: isso é supor contraditoriamente que os setores populares tenham permanecido passivos e carentes de toda reação. Romano não vê que muito do que está se passando na Igreja, sobretudo em termos de CEBs, de deve também e talvez prevalentemente às classes populares em questão. Elas significam a emergência dessas mesmas classes no seio da Igreja —como interpretam este fenômeno analistas da seriedade de um Luiz Gonzaga de Souza Lima e Luis alberto Gómez de Souza.
Quanto ao “quiproquó” da “propriedade social dos meios de produção” dos bispos entendida como “socialização dos meios de produção”. Esta é uma segunda tese particular que precisamos discutir devido a sua importância intrínseca e à que lhe dá o autor. Aqui novamente é o contexto que decide da interpretação correta. Ora, pode-se perceber na “conclusão” do já citado documento: “Eu ouvi…” que a posição que os bispos tomam pela “propriedade social dos meios de produção” vem depois de ter sido feita uma crítica radical das “relações capitalistas de produção”. E é como alternativa histórica a este “sistema de opressão” que é colocada a “propriedade social”. Afirma os prelados que esta será conseguida na base do “confronto das classes” e que se trata aí de uma “longa e difícil caminhada”m de um “gigantesco projeto histórico”, de “uma transformação global”, de uma “sociedade nova”. COMO NEGAR QUE TUDO ISSO NÃO VALHA “SOCIALISMO”, EMBORA A PALAVRA AÍ NÃO ESTEJA DITA? [A caixa alta é minha, Roberto Romano]. E só mesmo uma teoria tipo “leito de Procusto” que poderia interpretar tais expressões como variações modernas de um tema antigo. Naturalmente, do momento em que se decidiu que a Igreja tem um discurso social próprio (e não simplesmente apropriado, como dissemos), é claro que o discurso socialista nunca pode ser o dela.
Além do contexto textual, pode-se ainda acrescentar o contexto circunstancial que cercou a elaboração e a publicação daquele documento. Neste sentido pode-se perguntar: Porque nem todos os bispos o assinaram? Por que o Governo o censurou? Por que saiu na mesmíssima data de um outro: “Marginalização de um povo”, por bispos (alguns, aqui também) do Centro-oeste, onde, na parte final, se fala igualmente que “é preciso que a propriedade dos meios de produção (…) seja superada”, que o “ideal de um mundo novo” é “tornar tudo de todos e para todos, ´socializar´ (sic)”? E no contexto mundial, como explicar UMA INEGÁVEL TENDÊNCIA DA IGREJA NA DIREÇÃO DO PROJETO SOCIALISTA COMO O VERIFICOU O INSUSPEITO HISTORIADOR DA IGREJA, R. AUBERT E OUTROS ANALISTAS SÉRIOS (CF. CONCILIUM, NÚMERO 125, 1977)? [Caixa alta é minha, Roberto Romano]. Do que se pode concluir que o mencionado “quiproquó” SÓ EXISTE NA CABEÇA DO SEU INVENTOR. [Caixa alta minha, Roberto Romano].
Finalmente, este discurso —como se vê— passa ao lado das verdadeiras questões. Ele não percebe nem de longe que as mudanças da Igreja, puramente interesseiras segundo ele, foram pagas a preço de suor e sangue e que a apropriação da Igreja pelas classes populares está representando para elas uma força poderosa de esperança e luta. Ora, não ver isso é não ver nada. Assim, este discurso altivo e coquete dá mostras de estar completamente por fora da questão real. Ele não se engata na caminhada dos oprimidos. A quem poderá interessar? Na verdade, os oprimidos —os verdadeiros interessados— sabem bem o que significa para eles as mudanças da Igreja. E naturalmente também os opressores.
O autor termina seu livro com a pergunta: “Quando finalmente se poderá ouvir a voz dos próprios dominados?”. Ao que podemos retrucar: E quando finalmente os dominados terão quem realmente os escute?
Segue a minha réplica, espremida num espaço dez vezes menor do que o concedido a Boff. A “carta” foi publicada, como disse, só após violentas diatribes minhas junto aos editores da revista Leia Livros, em setembro de 1980.
A Igreja Triunfante
(Roberto Romano responde às críticas de clodovis Boff)
Sr. Redator.
“O mais fraco conhecimento, como o mais aprofundado, implica uma distância em relação à verdade; é por isto que todo apologeta é mentiroso”. (Th. Adorno, A Dialética do Iluminismo). Em artigo publicado no número 27 de Leia, “A Igreja da Esperança”m C. Boff julga-se em plena posse da verdade. Satisfeito por já ver tudo solucionado no plano político, o autor distribui, ex-cathedra, sentenças sobre o “acerto” ou “erro” de quem ousa criticar os libertadores profissionais.
O autor está contente porque a teologia “já resolveu o problema epistemológico de suas relações com a ratio política”. Como diria Niezsche, entretanto, “Unser Glück ist kein Argument für und wider”…[Mantenho a digitação original; a frase de Nietzsche, em português eu acrescento agora, pois na época não havia espaço: “Nossa felicidade não é nenhum argumento pró ou contra”, a frase é retirada do texto Morgenröte RR] Compreende-se o estilo do articulista: como racionalizador da prática católica, foi cultivado para exercer a função de pensar para as ovelhas do rebanho. Assumindo o destino do intelectual orgânico, representa a sociedade mediante critérios dogmáticos e imagina a si mesmo como intermediário privilegiado entre a fala humana e a divindade.
A fé, fundamento originário de seu discurso, é posta como canon mesmo para a produção cultural laica. Como a fé não se efetiva na Igreja sem a autoridade (Ego Evangelio non crederem nisi me Ecclesiae compelleret auctoritas já anunciava Santo Agostinho)[A frase inteira de Agostinho: Ego vero Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas. Eu mesmo, verdadeiramente, não acreditaria no Evangelho se não fosse movido pela autoridade da Igreja Católica, Contra ep. Man. 5, 6. Para ganhar espaço, o minifundio a mim reservado pelos editores, cortei o “catholicae” e o “vero” da frase agostiniana, sem que ela perdesse algo no contexto em debate. A enunciação de Agostinho encontrou severas reservas em escritores como Ockham, nos Dialogus, 1: “Sed quantum ad ea quae sunt fidei magis credendum est canonistarum scientiae quam theologiae, quia magis credendum est ecclesiae, per quam edita est canonistarum scientia, quam evangelio, teste Augustino, qui videtur asserere maiorem esse auctoritatem ecclesiae quam evangelii, quia nec evangelio inquit crederem nisi auctoritas ecclesiae compulisset”. Haveria bem mais a dizer sobre as bases dogmáticas e autoritárias, em termos de catolicismo, em C. Boff, mas faltou-me espaço, RR] este teólogo exprime-se de modo oracular e categórico, permitindo-se inclusive, non sine ictu, invectivas insidiosas sobre os motivos de quem escreve. Boff não assevera que meu texto serve aos dominantes: apenas insinua. Regra do Manual do Inquisidor: nada afirmar, não se comprometer, somente sugerir.
Em seu artigo é nuclear a distinção entre o discurso teológico e o pastoral, acentuando os limites deste último. “Os bispos não podem dizer o que querem mas o que lhes é possível ou permitido”, ele, pretendendo assim distinguir a radicalidade das intenções escondidas da pastoral e suas manifestações públicas. Das duas uma: ou a palavra dos bispos é veraz ou falsa. As outras hipóteses possíveis são insultuosas: ou a fala dos dirigentes eclesiásticos situa-se for a de toda compreensão racional, ou é intencionalmente equívoca. Tal divisão só pode reforçar as suspeitas sobre atividades conspiratórias da Igreja. A levá-lo a sério, só nos restaria dizer com Voltaire: Êcrasez l ´Infâme!
Neste mesmo contexto, Boff, ao tratar de questões de método, liquida de uma só tacada toda historiografia possível. Invalida o documento pastoral como fonte de investigação, como se um trabalho secular de crítica não abrisse vários caminhos —discutíveis, mas não sumáriamente descartáveis— para a interpretação dos discursos políticos. Além disto, ignora que o “homem faz sua própria história em condições dadas”. São exatamente os limites postos e a liberdade determinada a partir deles e contra eles que constituem a política e fundam a reflexão sobre ela. A defesa de Boff só pode voltar-se contra a instituição a que pretende servir: esta, nos seus termos, ou é hipócrita ou inconsciente.
O resultado indesejável (para os católicos em especial) é que ninguém poderia compreender o discurso dos bispos, salvo os partícipes de seus desígnios, inefáveis como os da Providência. Só poderiam criticá-los os integrantes do circuito silencioso de sua prática. Péssimo modo de traduzir para o ideário cristão o enunciado marxista: “Eles fazem, mas não sabem”. Ou manter, burocráticamente, o segredo (e o poder) do cargo (Weber).
Passemos à divisão operada entre meu pretenso método e teoria de fundo. Nenhuma ciência ou teoria procede deste modo bárbaro, como se houvesse métodos prontos, APLICÁVEIS a conteúdos e deles distintos. Este princípio abstrato orienta a exegese bíblica feita à moda das “leituras materialistas” do Evangelho, correntes entre a esquerda católica semi-culta.
Como desligar o modo pelo qual um conceito foi produzido, deste mesmo conceito? Método marxista sem pressuposições alheias aos princípios católicos da fé é tão absurdo quanto a LÓGICA sem a Idéia Absoluta em Hegel, quanto a ÉTICA sem a causa imanente em Espinosa, quanto a METAFÍSICA sem o primeiro motor entre os tomistas. Aceitar método separado do objeto e da teoria é proceder como o alquimista néscio de que fala Leibniz: Sume quod debes et operare quod debes et habebis quod optas.
O texto de Boff reproduz a naturalização da cultura, tal como “os teólogos que estabelecem dois tipos de religião: toda religião que não é a deles, é uma invenção dos homens, enquanto a sua é uma Revolução (SIC, o manuscrito enviado à revista grafava Revelação, RR) (Marx, Das Kapital, ed. Shurkamp, p. 96).[O texto citado é o seguinte : “Die Ökonomen verfahren auf eine sonderbare Art. Es gibt für sie nur zwei Arten von Institutionen, künstliche und natürliche. Die Institutionen des Feudalismus sind künstliche Institutionen, die der Bourgeoisie natürliche. Sie gleichen darin den Theologen, die auch zwei Arten von Religionen unterscheiden. Jede Religion, die nicht die ihre ist, ist eine Erfindung der Menschen, während ihre eigene Religion eine Offenbarung Gottes ist. - Somit hat es eine Geschichte gegeben, aber es gibt keine mehr." (Karl Marx, "Misère de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la Misère de M. Proudhon", 1847, p. 113. O trecho mencionado encontra-se no primeiro capítulo de O Capital : “Die Ware”. O próprio Marx cita o seu texto anterior, sobre Proudhon. Para quem se arvorava na época, apresentando-se como grande conhecedor do “método” marxista, e o indicava como “mediação sócio-analítica”, seria obrigação conhecer o que o próprio autor da referida “mediação” pensou sobre o elemento religioso. Mas o apologeta não procura respeitar o pensamento alheio: dele se apropria nas partes que interessam à sua apologética, o resto é “esquecido”. Os “aliados” marxistas daquela hora também teriam necessidade de conhecer os textos de seu suposto mestre. Mas a sua “mediação sócio-analítica” encontra-se nos escritos publicados sob o nome de Stalin. De Marx mesmo, poucos leram algumas páginas. Como diria Millor Fernandes: “ah, esta falsa cultura!”…] Para ele, é tão natural a fé (com o fetichismo próprio ao dogmático), que supõe transparente sua legitimidade como força instauradora da política. Para os não católicos é questionábel a proibição do aborto, do divórcio, do controle da natalidade, a aceitação da pequena propriedade, a negação da luta de classes, a apologia do anticapitalismo romântico e comunitário. Para os que pensam e agem na sociedade sem as certezas religiosas não é evidente, como o seria para “qualquer militante católico”, a justeza destes alvos. SI NON CREDO, NULLIS HUMANIS RATIONIBUS PERSUADEBITUR (Erasmo).
Segundo Boff, a Igreja superou o “projeto de cristandade e produziu uma concepção cristã da secularização, do mundo, da política”. Como suporte, invoca o parecer de “analistas sérios” (todos católicos). Concepção CRISTÃ de secularização e cristandade é o mesmo que blanc bonnet et bonnet blanc [branco boné e boné branco]. Menos injusto para com os militantes católicos, examinei uma concepção dominante na Igreja que a põe como autocentrada (cfr., p. 46, 47, 146); não afirmei que todas as reflexões teológicas sejam apologéticas. Note-se as referências respeitosas a De Lubac, Congar, Gutierrez, etc. A salada indigesta que se prepara entre nós está aquém dos grandes pensadores eclesiásticos. Um Congar jamais justaporia, como o faz Boff, o círculo dos círculos de Hegel com…as comunidades eclesiais de base. Nem juntaria o profeta Jeremias e Hegel, com uma pitada de Peguy para papagaiar sobre as belles âmes…(cf. Boff, C. Comunidade Eclesial, Comunidade Política, p. 52, 55, 102, 177-178). Isto basta para indicar, usando este exemplo lastimável, o disparate de dispensar, com agradecimentos, a presença dos idealistas alemães na teologia atual. Alguns pilham sua reflexão, sem reconhecê-lo publicamente; outros os tomam como referência da rediscussão dos fundamentos da teologia.
Escrevi, com todas as letras, que a “identidade ou recobrimento entre o discurso marxista e as posições episcopais é problemática” (p. 48). O artigo de Boff afirma ser inegável que o discurso dos bispos “valha como socialismo, embora a palavra aí não esteja dita”. Dizer abstratamente que alguns bispos são SOCIALISTAS é deixar intocada a questão. SOCIALISMO é por excelência um termo equívoco, indo desde o anticapitalismo mais reacionário até os movimentos marxistas mais radicais.
O autor do CAPITAL, criticando os fundamentos do modo de produção capitalista, indicou a possibilidade de sua superação ao serem suprimidas a propriedade privada e o Estado. O discurso dos bispos, sobretudo os ligados à questão da terra, tem um sentido diametralmente oposto: trata-se de impedir a luta de classes e assegurar a pequena propriedade mediante a colaboração com o Estado. Se existem bispos tão conservadores que não subscrevem sequer este programa reformista, isto não implica, lógica ou práticamente, que as posições progressistas de alguns se identifiquem com o marxismo. Referir-se às minhas críticas às comunidades de base, omitindo o capítulo sobre a reforma agrária, é método de quem abusa da leitura “sintomal”.
Ao contrário de C. Boff, que afirma estarem superadas “pela evolução histórica”, as noções de Bem Comum, pessoa, participação, justiça, L. Boff as retoma ao destacar os dez pontos POSITIVOS nas alocuções pontifícias feitas no Brasil. Sustenta, como faziam os ultramontanos, o caráter essencial da religião para a sociedade (“a religião é fundamental para o homem”; “a religião está na raiz de nossa cultura”), dizendo “não à violência e à luta de classes” (cf. L. Boff, “O saldo da visita”, Folha de São Paulo, 5-8-80, p. 3).
Leonardo Boff vai mesmo adiante: “A Igreja não combate o poder mas cobra-lhe o serviço do Bem Comum”. Pede aos ricos que assumam “sem reservas e sem retornos a causa dos pobres”, estes, por sua vez devem “ser os autores da própria promoção humana”. Imagine-se o Sr. de Nigris [dirigente da FIESP na época, RR] de mãos dadas com os metalúrgicos do ABC; teremos aí a Esperança de que fala C. Boff. Será este o otimismo de Marx? [Bem, o governo Lula realizou a dita esperança; na época, a esquerda inteira clamava pelo líder carismático do operariado, que seria “o novo” na política; hoje, bem, hoje a Fiesp dá as mãos à ex-querda instalada no Planalto, ambos felizes e contentes com o que fazem. “Unser Glück ist kein Argument für und wider”…RR]
Em sua apologética, o articulista não deixa sequer os mortos em paz. Gostaria de lembrar-lhe que a repressão não atingiu apenas católicos, mas marxistas, agnósticos, judeus, etc. igualmente fiéis a seus princípios. “Sofri ( e no caso de Boff, “sofreram”), logo tenho razão”, é paralogismo teórico, não entra na ordem das DEMONSTRAÇÕES políticas, mas tem sido argumento vantajoso no plano prátic. A esperança e a libertação preconizadas por Boff passam pela chantagem e por sua gênese, o ressentimento?
Roberto Romano/S. Paulo-SP.
Na época, surgiram matérias sobre meu livro e sobre os debates acerca da Igreja. Guardei alguns deles:
1) Paulo Sérgio Pinheiro: “A disputa pelo domínio popular”, revista República dos Livros, 04/01/ 80, p. 11.
2) Revista Isto É, “Igreja x Estado. E o povo?”, com intervenção minha e de J. Comblin, e de outros analistas. 07/02/1979, pp. 24-25. Naqueles dias, eu ainda não era persona non grata na Isto É, e a Isto É era respeitada por mim.
3) Antônio Luiz Paixão e Antonio Octávio Cintra : “CEBs, um movimento religioso ou político?” Jornal da Tarde, 31/07/82, p. 6.
Resenhas foram escritas por outras pessoas, como o prof. Francisco Benjamin de Souza Neto, sobre o livro. Mas infelizmente não as guardei em minha pasta implacável.
Publico todo este material no Blog, para que os interessados possam ler, pesar os argumentos, decidir. No momento em que as relações entre Igreja e Estado no Brasil são debatidas, inclusive no plano de uma Concordata entre o Brasil e o Vaticano, vale a pena seguir estes ângulos escondidos da memória.
Roberto Romano
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