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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Nada muda, tudo piora, enfim....



São Paulo, terça-feira, 22 de maio de 2001


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TENDÊNCIAS/DEBATES

Respeito, senhores do Parlamento! ROBERTO ROMANO

"As palavras são os rastros da razão." Este dito é de Francis Bacon, quando lutava pelo incremento do saber moderno.
Ele também gerou o célebre aforismo "knowledge and power meet in one", que entre nós se reduziu ao tolo "saber é poder". Não é isso o que pretende Bacon. Na sua idéia, os conhecimentos devem ser prestigiados pelos que mandam no Estado, para que a potência dessa instituição se amplie ao máximo. O fim da política é assegurado pela ciência, independentemente dos embustes parlamentares ou demagógicos.
Bacon iniciou, com essa premissa, a rigorosa tradição de análise lógica em falas ou escritos. Esse procedimento seguiu do século 16 à nossa época, corrigindo a distorção das palavras, o seu emprego ambíguo na retórica. Hobbes, com o cauteloso exame dos termos que denotam a paixão na política, no início do "Leviatã", seguiu a via baconiana, dando-lhe maior aprumo.
Lembranças assim atingem a nossa alma quando ouvimos políticos brasileiros torturando vocábulos técnicos da filosofia política ("razão de Estado" ,"ética da responsabilidade" e outros), dando à erística o dom de ludibriar os ignaros, envaidecendo quem julga possuir usucapião do poder e da verdade.
No Parlamento federal, lugar onde seria preciso falar em nome dos povos, verbo e decoro são frágeis. Certa feita escrevi, nesta Folha, um artigo intitulado "O prostíbulo risonho" (6/9/93). Nele eu não me referia apenas aos atos sem pudor impostos à nação, mas também às palavras, monstros sonoros emitidos na tribuna. Se, para Francis Bacon, os vocábulos marcam a razão, os impropérios de nossos parlamentares indicam descontrole grave e falta de domínio emocional.
Eles choram e insultam numa sincronia espantosa. Sua ira, para repetir o dito sábio, surge qual breve insânia. Em seus discursos, "a frase é entrecortada, as palavras são emitidas sem distinção, como se fossem lamentos ou mugidos". Esse diagnóstico vem de Sêneca ("De Ira").
Ouvindo muitas arengas no Congresso Nacional, temos a desagradável impressão, errônea talvez, de que o partido de Incitatus possui maioria parlamentar. Exemplo? Comentando a gravíssima denúncia, feita pelos mais reconhecidos juristas de nossa terra, apresentada do modo previsto na lei ao Parlamento, o líder Arthur Virgílio (PSDB-AM) criticou aquela ação e afirmou que o PT está envolvido na iniciativa.
"Eu não posso dizer que seja um partido criativo"; e conclui o "raciocínio": "De tanta ação na Justiça, eles vão acabar virando o partido "data venia'". ("Consultor Jurídico", 20/5/2001).
Peço "data venia" para a única apreciação devida desta e de outras falas: é pura grosseria mencionar assim algumas das pessoas a quem devemos boa parte das nossas conquistas democráticas; é desacato à dignidade popular. Os deputados apenas representam o cidadão e têm o dever de respeitá-lo.



Se os vocábulos marcam a razão, os impropérios de nossos parlamentares indicam falta de domínio emocional
Nomes como Gofredo da Silva Telles, impolutos, inteligentes, corajosos, sérios, recebem um mandato moral da sociedade civil, a base dos poderes políticos. No Brasil de hoje, senadores e deputados zombam das leis, debocham dos cidadãos, aceitam calados o esbulho de direitos constitucionais, sacralizam confiscos.
Dos planos econômicos aos acréscimos de taxação, como a CPMF, cujos recursos deveriam ser para a saúde pública, e a violência das punições no uso da energia, covardemente aplicadas sobre os particulares, tudo é aceito pelos representantes que não representam, mas apenas barganham com o Executivo. E mais: violam painéis de votação, difamam uma colega senadora, jogam lama na República. E ainda exigem o título de "excelência"!
Esquecem que este é apenas um empréstimo temporário; "excelente" é o povo soberano, a base única de todo o poder.
Norberto Bobbio, comentando a situação política de sua terra em 1984, dizia melancólico: "Confesso que nunca imaginei a vida italiana inquinada até este ponto, em que não sabemos se o certo é nos indignarmos pela baixa qualidade da intriga ou do grande número de pessoas que a integram, pelo despudor de quem dirige o jogo ou insensibilidade dos que o aceitaram, dentre os quais muitos são chamados, na retórica oficial, servidores do Estado ("Il potere in maschera")".
Com Berlusconi, tal fala seria ainda mais negra. No Brasil, tenho certeza, ele se calaria, pois não existem frases eloquentes o bastante para expressar a infâmia que reina no Parlamento e no Executivo. Só existe um Estado, terminava Bobbio, o da Constituição republicana. "Fora dela, só existe o anti-Estado que deve ser destruído, começando do teto e chegando, se isso é possível, aos fundamentos".
Nas próximas eleições,a cidadania brasileira lembrará a lição do grande jurista.


Roberto Romano, 55, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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