O papel das universidades públicas em tempos de crise: resistência e democracia
27 de outubro de 2017
Os cortes de recursos para ciência e pesquisa no Brasil, a
importância das universidades como espaços de resistência em tempos de
ataques à democracia e o papel destas instituições de ensino e pesquisa
para a formação política, principalmente em uma conjuntura de crise,
foram temas que marcaram os debates promovidos pelo Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), realizado entre 16 e 18 de outubro, em Salvador. O evento
reuniu apresentações de quase 4 mil trabalhos científicos, culturais e
artísticos por estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade
e, em paralelo, cerca de 60 mesas debateram temas relacionados à defesa e
desenvolvimento da universidade pública brasileira, além de reflexões
sobre a atual situação do país.
Durante o congresso, reitores/as de diversas universidades federais
brasileiras estiveram reunidos/as para participar da reunião ordinária
do pleno da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais
de Ensino Superior – Andifes e do seminário “Estado policial ou estado democrático de direito: que Brasil estamos construindo?”
. A escolha do tema foi motivada pela trágica morte do ex-reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier,
no último dia 2 de outubro, que além de ter provocado tristeza e revolta
pelo país, também expôs a urgência do debate sobre a atuação das
universidades públicas em um cenário de crise socioeconômica e
democrática, e também de mobilização de seus/suas defensores/as contra
as ameaças ao exercício da autonomia universitária.
A morte de Cancellier – acusado pela Polícia Federal de tentar obstruir as investigações da Operação Ouvidos Moucos,
preso sem ter sido intimado a depor, privado de visitas, apoio
espiritual e do convívio na universidade – causou comoção entre
representações de trabalhadores/as, estudantes, pesquisadores/as,
profissionais da imprensa, universidades e instituições públicas de todo
o país. Parte destas manifestações pode ser lida aqui. Em nota,
o Conselho Federal da OAB e o Colégio de Presidentes de Seccionais da
entidade manifestaram preocupação com a “espetacularização” do processo
penal – “não nos peçam o linchamento. Queremos a apuração de todos os
fatos e de todas as acusações. Mas conclamamos a todos a dizer não ao
culto ao autoritarismo e ao processo penal como instrumento de
vingança”.
No artigo “Suicídio do reitor ou da universidade livre?”,
publicado no Jornal da Unicamp, Roberto Romano da Silva, professor do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, compara o
processo que antecedeu a morte do reitor a acontecimentos da época da
ditadura militar, quando a delação de concorrentes e adversários
políticos ou ideológicos se tornou comum em uma conjuntura marcada pela
“aniquilação” de direitos. “A tragédia evidencia problemas éticos,
científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento
em nossa terra. […] É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes
que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de
defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores
anônimos”, diz.
Cultura de ódio e saúde
Ao abordar os acontecimentos que sucederam a morte do reitor e o atual quadro político e social do país, a Ensp – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca afirma que “a cultura do ódio é também problema de saúde pública”. No documento “Vivemos tempos terríveis: carta à comunidade da Saúde Coletiva”, a Ensp ressalta que o sofrimento por eventos estressantes é comum, mas o acúmulo de eventos gera um quadro clínico com manifestações graves: “É isso que estamos vivendo na sociedade brasileira atual. Quantos de nós já não desistimos de conviver com grupos, de manifestar opiniões francas, simplesmente porque não aguentamos mais o nível da agressividade da resposta? Quando qualquer afirmativa que não seja chancelada pelas autoridades de plantão leva a agressões verbais desmedidas. […] Estamos a caminho de uma sociedade doente, não somente como metáfora, mas como uma avaliação objetiva das condições de vida e saúde da população brasileira”.
Além de destacar o impacto do “clima de ódio” sobre a saúde da
população brasileira, indicando efeitos do estresse que podem levar a
doenças cardiovasculares e sofrimento psíquico, incluindo suicídio, a
carta comenta a recente demissão do docente Naomar de Almeida Filho da
reitoria da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), mais um
episódio no qual a democracia está “travestida, com ‘mera aparência de
legalidade’”. O sanitarista, reitor pro tempore da UFSB, criada há
quatro anos, pediu exoneração do cargo no final do mês de setembro, dias
antes da morte de Cancellier. Em carta aberta à comunidade da UFSB,
Naomar explica os motivos que o fizeram pedir a exoneração, relatando
que “atos de hostilidade e agressão, inicialmente concentrados num
pequeno grupo, começaram a aparecer em nosso cotidiano, replicando a
deterioração do ambiente político nacional. Ações de evidente sabotagem,
inclusive de dentro da equipe de gestão, criaram obstáculos à nossa
agenda de integração social”.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco divulgou carta
em apoio ao ex-reitor e ao projeto original da UFSB, na qual afirma que
a criação da instituição abriu novas possibilidades de desenvolvimento
de um projeto pedagógico na região do extremo sul baiano com potencial
para revolucionar a formação profissional ancorada em valores éticos e
humanistas. “Assistimos estarrecidos a uma avalanche de notícias sobre
episódios de violência e obscurantismo em diversos espaços da vida
social, mas nos preocupa quando a névoa da raiva e do preconceito
penetra no ambiente da universidade, espaço onde deveria se celebrar o
livre pensar”, diz a carta.
Resistência em tempos de crise
Reportagem publicada pela Folha de S. Paulo traz um panorama da situação das universidades públicas brasileiras, que inclui cortes de verbas em pesquisas, bolsas, transportes e alimentação; prejuízos para as atividades de ensino e pesquisa; paralisação de obras de expansão; dificuldades para contratação de docentes e funcionários, além de dispensa de terceirizados; obstáculos na compra de equipamentos e livros; e redução de contratos de limpeza e segurança. A matéria aponta que o volume de investimentos orçado para 2017 – R$ 1,5 bilhão – já era um terço inferior ao de 2016; e, mesmo assim, somente 60% foram liberados. Já para os recursos de custeio, utilizados para manutenção das universidades, a previsão era de estagnação e somente 85% do total foi liberado. O Ministério da Educação, por sua vez, nega que haja falta de verbas ou descumprimento do cronograma de repasses.
Para sensibilizar a população, pressionar o governo federal e expor a
dimensão da perda de financiamento federal para as universidades
públicas e para a área de ciência e tecnologia, a campanha “Conhecimento sem cortes”,
promovida por um grupo de docentes e pesquisadores/as, tem destacado o
papel do ensino superior e da pesquisa científica na busca de soluções
para o combate à pobreza, violência, melhora da saúde e educação,
diminuição das desigualdades e aumento da eficiência e sustentabilidade
socioambiental nos projetos voltados para o crescimento do país. O
movimento tem realizado atos e inaugurado “tesourômetros”, painel
eletrônico que mostra em tempo real os cortes feitos desde 2015, tomando
como base o orçamento federal aprovado naquele ano. A abertura do
Congresso da UFBA contou com a ativação do Tesourômetro da Ciência na
Bahia, em frente à reitoria da universidade.
Uma petição,
com 82.563 mil assinaturas, foi entregue pelo movimento ao Senado e à
Câmara dos Deputados no dia 10 de outubro durante a realização de manifestações promovidas por cerca de 70 entidades acadêmicas e científicas brasileiras no Congresso Nacional. No mesmo dia uma carta
foi entregue aos parlamentares pela Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) ressaltando o panorama “ainda mais
catastrófico” para 2018.
No atual cenário, professores/as, funcionários/as, estudantes e
pesquisadores/as se veem diante de um duplo desafio – manter o
desenvolvimento das atividades de ensino/pesquisa, a produção de
conhecimentos críticos e a proposição de soluções para enfrentamento das
crises política e socioeconômica, apesar do contingenciamento de
recursos; ao mesmo tempo em que se mobilizam para articular estratégias
de combate aos ataques à democracia e à pressão dos interesses de
mercado e agentes externos ao ambiente acadêmico.
Fonte: Observatório de Análise Política em Saúde
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