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sábado, 18 de novembro de 2017

O papel das universidades públicas em tempos de crise: resistência e democracia

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O papel das universidades públicas em tempos de crise: resistência e democracia


Os cortes de recursos para ciência e pesquisa no Brasil, a importância das universidades como espaços de resistência em tempos de ataques à democracia e o papel destas instituições de ensino e pesquisa para a formação política, principalmente em uma conjuntura de crise, foram temas que marcaram os debates promovidos pelo Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA), realizado entre 16 e 18 de outubro, em Salvador. O evento reuniu apresentações de quase 4 mil trabalhos científicos, culturais e artísticos por estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade e, em paralelo, cerca de 60 mesas debateram temas relacionados à defesa e desenvolvimento da universidade pública brasileira, além de reflexões sobre a atual situação do país.

Durante o congresso, reitores/as de diversas universidades federais brasileiras estiveram reunidos/as para participar da reunião ordinária do pleno da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – Andifes e do seminário “Estado policial ou estado democrático de direito: que Brasil estamos construindo?” . A escolha do tema foi motivada pela trágica morte do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, no último dia 2 de outubro, que além de ter provocado tristeza e revolta pelo país, também expôs a urgência do debate sobre a atuação das universidades públicas em um cenário de crise socioeconômica e democrática, e também de mobilização de seus/suas defensores/as contra as ameaças ao exercício da autonomia universitária.

A morte de Cancellier – acusado pela Polícia Federal de tentar obstruir as investigações da Operação Ouvidos Moucos, preso sem ter sido intimado a depor, privado de visitas, apoio espiritual e do convívio na universidade – causou comoção entre representações de trabalhadores/as, estudantes, pesquisadores/as, profissionais da imprensa, universidades e instituições públicas de todo o país. Parte destas manifestações pode ser lida aqui. Em nota, o Conselho Federal da OAB e o Colégio de Presidentes de Seccionais da entidade manifestaram preocupação com a “espetacularização” do processo penal – “não nos peçam o linchamento. Queremos a apuração de todos os fatos e de todas as acusações. Mas conclamamos a todos a dizer não ao culto ao autoritarismo e ao processo penal como instrumento de vingança”.

No artigo “Suicídio do reitor ou da universidade livre?”, publicado no Jornal da Unicamp, Roberto Romano da Silva, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, compara o processo que antecedeu a morte do reitor a acontecimentos da época da ditadura militar, quando a delação de concorrentes e adversários políticos ou ideológicos se tornou comum em uma conjuntura marcada pela “aniquilação” de direitos. “A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. […] É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos”, diz.

Cultura de ódio e saúde
 
Ao abordar os acontecimentos que sucederam a morte do reitor e o atual quadro político e social do país, a Ensp – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca afirma que “a cultura do ódio é também problema de saúde pública”. No documento “Vivemos tempos terríveis: carta à comunidade da Saúde Coletiva”, a Ensp ressalta que o sofrimento por eventos estressantes é comum, mas o acúmulo de eventos gera um quadro clínico com manifestações graves: “É isso que estamos vivendo na sociedade brasileira atual. Quantos de nós já não desistimos de conviver com grupos, de manifestar opiniões francas, simplesmente porque não aguentamos mais o nível da agressividade da resposta? Quando qualquer afirmativa que não seja chancelada pelas autoridades de plantão leva a agressões verbais desmedidas. […] Estamos a caminho de uma sociedade doente, não somente como metáfora, mas como uma avaliação objetiva das condições de vida e saúde da população brasileira”.
Além de destacar o impacto do “clima de ódio” sobre a saúde da população brasileira, indicando efeitos do estresse que podem levar a doenças cardiovasculares e sofrimento psíquico, incluindo suicídio, a carta comenta a recente demissão do docente Naomar de Almeida Filho da reitoria da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), mais um episódio no qual a democracia está “travestida, com ‘mera aparência de legalidade’”. O sanitarista, reitor pro tempore da UFSB, criada há quatro anos, pediu exoneração do cargo no final do mês de setembro, dias antes da morte de Cancellier. Em carta aberta à comunidade da UFSB, Naomar explica os motivos que o fizeram pedir a exoneração, relatando que “atos de hostilidade e agressão, inicialmente concentrados num pequeno grupo, começaram a aparecer em nosso cotidiano, replicando a deterioração do ambiente político nacional. Ações de evidente sabotagem, inclusive de dentro da equipe de gestão, criaram obstáculos à nossa agenda de integração social”.
 
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco divulgou carta em apoio ao ex-reitor e ao projeto original da UFSB, na qual afirma que a criação da instituição abriu novas possibilidades de desenvolvimento de um projeto pedagógico na região do extremo sul baiano com potencial para revolucionar a formação profissional ancorada em valores éticos e humanistas. “Assistimos estarrecidos a uma avalanche de notícias sobre episódios de violência e obscurantismo em diversos espaços da vida social, mas nos preocupa quando a névoa da raiva e do preconceito penetra no ambiente da universidade, espaço onde deveria se celebrar o livre pensar”, diz a carta.

Resistência em tempos de crise
 
Reportagem publicada pela Folha de S. Paulo traz um panorama da situação das universidades públicas brasileiras, que inclui cortes de verbas em pesquisas, bolsas, transportes e alimentação; prejuízos para as atividades de ensino e pesquisa; paralisação de obras de expansão; dificuldades para contratação de docentes e funcionários, além de dispensa de terceirizados; obstáculos na compra de equipamentos e livros; e redução de contratos de limpeza e segurança. A matéria aponta que o volume de investimentos orçado para 2017 – R$ 1,5 bilhão – já era um terço inferior ao de 2016; e, mesmo assim, somente 60% foram liberados. Já para os recursos de custeio, utilizados para manutenção das universidades, a previsão era de estagnação e somente 85% do total foi liberado. O Ministério da Educação, por sua vez, nega que haja falta de verbas ou descumprimento do cronograma de repasses.

Para sensibilizar a população, pressionar o governo federal e expor a dimensão da perda de financiamento federal para as universidades públicas e para a área de ciência e tecnologia, a campanha “Conhecimento sem cortes”, promovida por um grupo de docentes e pesquisadores/as, tem destacado o papel do ensino superior e da pesquisa científica na busca de soluções para o combate à pobreza, violência, melhora da saúde e educação, diminuição das desigualdades e aumento da eficiência e sustentabilidade socioambiental nos projetos voltados para o crescimento do país. O movimento tem realizado atos e inaugurado “tesourômetros”, painel eletrônico que mostra em tempo real os cortes feitos desde 2015, tomando como base o orçamento federal aprovado naquele ano. A abertura do Congresso da UFBA contou com a ativação do Tesourômetro da Ciência na Bahia, em frente à reitoria da universidade.

Uma petição, com 82.563 mil assinaturas, foi entregue pelo movimento ao Senado e à Câmara dos Deputados no dia 10 de outubro durante a realização de manifestações promovidas por cerca de 70 entidades acadêmicas e científicas brasileiras no Congresso Nacional. No mesmo dia uma carta foi entregue aos parlamentares pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) ressaltando o panorama “ainda mais catastrófico” para 2018.

No atual cenário, professores/as, funcionários/as, estudantes e pesquisadores/as se veem diante de um duplo desafio – manter o desenvolvimento das atividades de ensino/pesquisa, a produção de conhecimentos críticos e a proposição de soluções para enfrentamento das crises política e socioeconômica, apesar do contingenciamento de recursos; ao mesmo tempo em que se mobilizam para articular estratégias de combate aos ataques à democracia e à pressão dos interesses de mercado e agentes externos ao ambiente acadêmico.

Fonte: Observatório de Análise Política em Saúde

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