Brasil registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas
Levantamento do Ministério dos Direitos Humanos vai de janeiro de 2015 ao primeiro semestre deste ano; Estados de São Paulo, Rio e Minas Gerais lideram casos. Dados, porém, são subnotificados porque muitas vítimas ainda têm medo de denunciar
Felipe Resk, José Maria
Tomazela e Jonathas Cotrim,
O Estado
de S.Paulo
12 Novembro 2017 | 03h00
12 Novembro 2017 | 03h00
SÃO PAULO - Templos são invadidos e profanados. Em outros casos, há
agressões verbais, destruição de imagens sacras e até ataques
incendiários ou tentativas de homicídio. O cenário preocupa adeptos de
diversas religiões e, em pelo menos oito Estados, o Ministério Público
investiga ocorrências recentes de intolerância. Entre janeiro de 2015 e o
primeiro semestre deste ano, o Brasil registrou uma denúncia a cada 15
horas, mostram dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH).
Segundo
levantamento da pasta, o Disque 100, canal que reúne denúncias, recebeu
1.486 relatos de discriminação religiosa no período, de xingamentos a
medidas de órgãos públicos que violam a liberdade religiosa. “E sempre
há mais casos do que os relatados”, explica Fabiano de Souza Lima,
coordenador-geral do Disque 100. “A subnotificação é alta, considerando o
cenário nacional”, diz. “Algumas pessoas não querem se envolver e
preferem permanecer no anonimato a denunciar.”
Só
neste ano foram registrados 169 casos: 35 em São Paulo, 33 no Rio e 14
em Minas, Estados com maior número de ocorrências informadas. Comparado
ao mesmo período de 2016, haveria recuo de 55%, mas Lima explica que a
oscilação de denúncias não reflete a realidade.
“Quando você vir um número maior em um ano, é certo que houve
divulgação do problema, por meio de campanhas.” Um exemplo, diz, é que
em 2016, ano da campanha nacional Filhos do Brasil, houve registro
recorde de 759 casos.
Aumento. Em agosto, a Paróquia Nossa Senhora do Bom Parto, em
Santo André, no ABC paulista, foi invadida. Os suspeitos arrombaram o
sacrário, furtaram a âmbula e atiraram hóstias no chão. “Para nós, a
eucaristia é o mais sagrado: o corpo de Cristo. Houve profanação”, diz o
padre Renato Fernandez. Para ele, a sensação é de aumento das
ocorrências. “No passado, havia um respeito pelos templos e pela
Igreja”, afirma. “Deixar a eucaristia jogada diz que, para eles, não
significa nada.”
A análise de 2017 aponta que a maioria das vítimas de
intolerância é de religiões de origem africana, com 39% das denúncias.
Lideram o ranking umbanda (26 casos), candomblé (22) e as chamadas
matrizes africanas (18). Depois, vêm a católica (17) e a evangélica
(14).
Recentemente, um templo de candomblé foi incendiado em Jundiaí,
na Grande São Paulo. O ataque destruiu 80% da casa, além de equipamentos
e instrumentos musicais, mas não impediu a mãe de santo Rosana dos
Santos, a Iya Abayomi Rosana, de continuar o ofício religioso. “Agora,
coloco uma mesa embaixo de uma árvore, ao lado dos escombros, e atendo
lá”, afirma. “A fé cabe em qualquer lugar, pois Deus e os orixás estão
em toda parte.”
O templo funcionava havia dez anos e nunca havia registrado
ameaça. “Não foi nada pessoal, foi contra nossa religião, de matriz
africana”, diz ela, que trabalha para reconstruir o lugar. “Era solo
sagrado, existiu muito amor lá.”
Líder do Brasil Contra a Intolerância Religiosa, Diego Montone
critica a ausência de legislação específica. “Temos de nos basear
criminalmente e até civilmente em outros crimes.”
Cláudio Bertolli Filho, antropólogo da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), diz que a intolerância é resultado da “dificuldade de
conviver com a diversidade”. “A forma viável de as religiões conviverem
pacificamente é todas elas assumirem que não existe religião verdadeira
ou religião falsa.”
Para o antropólogo João Baptista, professor emérito da
Universidade de São Paulo (USP), uma religião “pode ser intolerante
porque quer dominar ou porque é vítima da intolerância”. Ela se torna
intolerante, segundo ele, “porque se fecha sobre si mesma”.
Entre os suspeitos identificados pelo MDH em 2017, a maioria é
mulher. Um caso recente foi o da pastora Zélia Ribeiro, da igreja
evangélica Razão do Viver, de Botucatu, flagrada destruindo imagens de
Nossa Senhora Aparecida a marteladas. “Já pedi desculpas. Também fui
vítima da intolerância, postaram muita coisa na internet, chegaram a
dizer que eu tinha morrido.”
Investigações. Levantamento do Estado mostra que
ao menos oito Ministérios Públicos Estaduais investigam intolerância.
Em São Paulo, foram 123 procedimentos em dois anos – um a cada 10 dias.
Em um dos mais graves, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, um
vizinho esfaqueou quatro pessoas em um terreiro.
Na Bahia, são 132 procedimentos entre 2014 e 2017. No Paraná, são
seis inquéritos neste ano. Um deles é de um babalorixá que se negou a
retirar uma oferenda de uma esquina e cerca de 30 pessoas, com paus e
pedras, quebraram seu carro e agrediram filhos de santo.
Também há casos apurados por Rio, Goiás, Mato Grosso do Sul,
Piauí e Distrito Federal. Os outros Estados não responderam ou
informaram não haver denúncias. O Estado não conseguiu contato com
Roraima.
Juristas planejam processar País em corte internacional
Juristas vão protocolar uma petição no próximo dia 20 para
processar o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por
crimes contra religiões de origem africana. “A intolerância está virando
epidêmica”, diz o advogado Hédio Silva Júnior, membro do grupo. “Do
início do ano para cá, houve um mudança do tipo de ataque, com
agravamento para agressões físicas e casos de tortura.”
Uma eventual condenação do País também permitiria que a vítima de
intolerância fosse indenizada pela União. Para Silva Júnior, porém,
isso “é secundário”. “O aspecto central é enfrentar a omissão do Estado e
reconhecer que se trata de um problema. É preciso aprimorar o aparato
normativo do Brasil e implementar políticas públicas de educação.”
Na petição, o grupo escreve que a “história da humanidade é repleta de tragédias decorrentes do fanatismo religioso”
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