“Minha morte foi decretada no dia de minha prisão”, escreveu
o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, no bilhete que
deixou ao se suicidar nesta segunda-feira, 2/10, em Florianópolis.
Não foi um suicídio discreto. Cancellier, morto aos 60 anos,
deixou à vista de todas e todos o seu corpo inerte no meio do vão
central às 10h30, no mais tradicional shopping da capital catarinense, o
Beiramar.
Trata-se de suicídio que cobre de vergonha todo o país, que
consagrou como métodos de investigação a deduragem, a humilhação pública
e a prisão estrepitosa, sob os holofotes de uma mídia linchadora e
vulgar.
Reconhecido como intelectual e jurista comprometido com os
Direitos Humanos e a diversidade, Cancellier militou no movimento
estudantil durante a resistência à Ditadura Militar (1964-1985), tendo
participado ativamente das campanhas pela anistia, pelas diretas-já e
pela Constituinte.
Nada dessa trajetória, entretanto, foi capaz de frear o
ânimo da delegada Erika Mialik Marena, da Polícia Federal, que pediu e
conseguiu da Justiça a decretação da prisão temporária do reitor
Cancellier por supostas irregularidades cometidas com relação às
prestações de contas dos contratos do Ensino à Distância (EaD)
oferecidos pela instituição entre 2008 e 2014.
Ressalte-se que Cancellier tornou-se reitor da UFSC apenas
em maio de 2016. A mesma delegada pediu e obteve a decretação do
“AFASTAMENTO CAUTELAR DO EXERCÍCIO DO CARGO/FUNÇÃO PÚBLICA de todos os
servidores públicos abaixo relacionados [inclusive o reitor], com
proibição de que exerçam cargo público de qualquer natureza, de que
entrem na UFSC e de que tenham acesso a qualquer material da UFSC…”
Como sempre tem ocorrido, foi uma delação que serviu de
gatilho às investigações –“ao que tudo indica feita por um professor do
Curso de Física e dirigida ao MPF/SC”.
Na edição de 14 de setembro, o “Bom Dia Brasil” abriu com
informações sobre a operação da Polícia Federal desencadeada naquele
mesmo momento em Santa Catarina e Brasília contra “fraudes no ensino à
Distância”. A apresentadora Ana Paula Araújo assim comentou a notícia:
“É roubalheira para tudo que é lado! O reitor da Universidade de Santa
Catarina foi preso!”
Em artigo publicado no jornal “O Globo”, apenas quatro dias
antes do suicídio, o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo relatou o
sofrimento moral que lhe foi imposto:
“A HUMILHAÇÃO E O VEXAME A QUE FOMOS SUBMETIDOS — EU E
OUTROS COLEGAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA (UFSC) — HÁ UMA
SEMANA NÃO TEM PRECEDENTES NA HISTÓRIA DA INSTITUIÇÃO. NO MESMO PERÍODO
EM QUE FOMOS PRESOS, LEVADOS AO COMPLEXO PENITENCIÁRIO, DESPIDOS DE
NOSSAS VESTES E ENCARCERADOS, PARADOXALMENTE A UNIVERSIDADE QUE COMANDO
DESDE MAIO DE 2016 FOI RECONHECIDA COMO A SEXTA MELHOR INSTITUIÇÃO
FEDERAL DE ENSINO SUPERIOR BRASILEIRA; AVALIADA COM VÁRIOS CURSOS DE
EXCELÊNCIA EM PÓS-GRADUAÇÃO PELA CAPES E HOMENAGEADA PELA ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DE SANTA CATARINA. NOS ÚLTIMOS DIAS TIVEMOS NOSSAS VIDAS
DEVASSADAS E NOSSA HONRA ASSOCIADA A UMA “QUADRILHA”, ACUSADA DE DESVIAR
R$ 80 MILHÕES. E IMPEDIDOS, MESMO APÓS LIBERTADOS, DE ENTRAR NA
UNIVERSIDADE.”
Em entrevista à jornalista livre Raquel Wandelli, Júlio
Cancellier, irmão do reitor morto, disse Luiz Carlos “deu todos os
sinais em público de que estava fortemente deprimido e se sentindo
exilado, mas não pôde receber o apoio dos amigos porque a juíza
responsável pela primeira ordem de prisão mantinha-o incomunicável. Essa
foi a grande mágoa dele: estava se sentindo humilhado e vexado e ainda
privado do convívio com as pessoas”.
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes), emitiu uma nota pública em que
expressa o pesar pela morte prematura de Cancellier ao mesmo tempo em
afirma a “absoluta indignação e inconformismo com o modo como foi
tratado por autoridades públicas o Reitor, ante um processo de apuração
de atos administrativos, ainda em andamento e sem juízo formado.”
“É INADMISSÍVEL QUE O PAÍS CONTINUE TOLERANDO PRÁTICAS DE UM
ESTADO POLICIAL, EM QUE OS DIREITOS MAIS FUNDAMENTAIS DOS CIDADÃOS SÃO
POSTOS DE LADO EM NOME DE UM MORALISMO ESPETACULAR. É IGUALMENTE
INTOLERÁVEL A CAMPANHA QUE OS ADVERSÁRIOS DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS
BRASILEIRAS HOJE TRAVAM, DESQUALIFICANDO SUAS REALIZAÇÕES E SEUS
GESTORES, COMO JUSTIFICATIVA PARA SUPRIMIR O DIREITO DOS CIDADÃOS À
EDUCAÇÃO PÚBLICA E GRATUITA.”
Só para lembrar, a narrativa inspiradora do juiz Sergio Moro
é a Operação Mãos Limpas, levada a cabo durante os anos 1990 na Itália.
Também baseada em delações, vazamentos seletivos, prisões e humilhações
públicas, a Mãos Limpas teve relação causal direta com 11 suicídios em
1992, 10 em 1993 e outros 10 em 1994, que foram os anos em que as
fogueiras estiveram mais acesas.
Quantos mais aceitaremos que morram, literalmente “de
vergonha”, até que paremos com a máquina de moer gente que está
instalada no Judiciário brasileiro?
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