Estudos Avançados
Print version ISSN 0103-4014On-line version ISSN 1806-9592
Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141995000100022
HISTÓRIA E LITERATURA
Duas vozes diferentes em Memórias do Cárcere?
Boris Schnaiderman
Fiquei muito sensibilizado com o convite, que me foi feito pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, para esta mesa-redonda sobre as Memórias do cárcere de Graciliano Ramos. Trata-se de um livro com o qual eu me liguei com muita força, como aliás acontece com a minha geração em geral.
Lembro-me do impacto que ele me causou. Depois, ocasionalmente, eu relia um e outro trecho, mas somente agora fiz uma releitura global.
Temos nele um destes livros básicos, cujo aparecimento faz com que se passe a encarar de outro modo o país, o povo, a cultura a que pertencemos, e depois dessa leitura já não somos os mesmos. Torna-se desnecessário, pois, dizer que, após tantos anos, o texto continua a causar impacto, e que se este não é o mesmo, temos de considerá-lo equivalente. Há nas memórias, escreveu Jacó Guinsburg (1989:9), "uma luz vigorosa de Nordeste, eliminando todo cromatismo impressionista".
Está claro que a leitura de hoje não pode ser a mesma de há quase quarenta anos. O próprio desenrolar da História traz outra visão para os fatos narrados. E isto se manifesta particularmente, segundo me parece, no modo pelo qual passamos a ver, no livro, a relação entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado.
O primeiro é o narrador-autor, biograficamente definido e cujo vulto já entrou em nosso imaginário. O mesmo que afirmaria, no Auto-retrato aos 56 anos (1), ser ateu, odiar a burguesia e adorar crianças, desejar a morte do capitalismo, gostar de palavrões escritos e falados, não dar preferência a nenhum de seus livros publicados e ter como leitura predileta a Biblia. Seria preciso acrescentar que era comunista de carteirinha fornecida em 1945, e que assumia publicamente a defesa de seu partido.
O sujeito do enunciado, isto é, o Graciliano da época em que a ação decorre, tem o mesmo ódio à burguesia, ao capitalismo e, ademais, está profundamente cônscio do peso que a condição de classe tem na mentalidade dos indivíduos (não fosse ele o autor de São Bernardo...). E alguém que assume uma "corajosa amargura" e que tem o "sentimento ateu do pecado", conforme se expressou Antonio Candido (1956:71-73) que viu também em Graciliano "uma espécie de anarquismo profundo que não raro se desenvolve nos homens de sensibilidade".
Mas, ao mesmo tempo, ele não assumia explicitamente a condição de comunista. Naquele período que se seguiu ao levante de 1935, bastava manifestar a mentalidade que Antonio Candido veria nele, para ser apontado como um réprobo, um traidor. Quantos não sofreram então este labéu de comunista, pelos motivos mais fúteis., desde não freqüentar a igreja até não mostrar entusiasmo por uma candidatura amparada pelo coronelismo? No livro, há um desmascaramento implacável do clima que então se criou, a tal ponto que o lugar mais apropriado para um leitor contumaz de Eça e Anatole France parecia ser realmente a cadeia. Bastaria uma pesquisa nos jornais da época para se perceber a abjeção a que se chegara. Não é por acaso que nas Memórias aparecem tantos presos que tinham ido parar ali estupidamente, como, aquele fanático religioso a ameaçar Graciliano de que, depois da revolução, iriam fuzilar "ateus como você".
O sujeito da enunciação procura dar voz ao outro sujeito, mas nem sempre a fusão se dá totalmente, percebe-se até certo distanciamento entre os dois. Se as referências carinhosas a Prestes (G.Ramos, I,1953:73), um momento de ternura no escritor áspero e amargo, podem corresponder realmente ao que o Graciliano I (o do enunciado) sentia. Outras passagens, muito poucas, é preciso reconhecer, revelam certa ingenuidade, que é mais lógico atribuir ao Graciliano II (o da enunciação).
Veja-se, por exemplo, a seguinte observação sobre Getúlio: "o presidente da república era um prisioneiro como nós; puxavam-lhe os cordões e ele se mexia, títere, paisano movido por generais" (G.Ramos, II, 1953:124). Não temos aí o escritor II atribuindo ao escritor I a visão abrandada e falsa da personalidade de Getúlio, muito difundida no PC depois da campanha de Constituinte com Getúlio, que foi apoiada pelos comunistas antes da deposição do ditador? Quem escreveu isto certamente já tinha passado pelo choque inicial de ver retratos de Prestes ao lado de Getúlio, que entregara a mulher dele à Gestapo: o primeiro passo em seu caminho para o forno crematório.
Graciliano II narra p episódio da retirada de Olga Benário Prestes da prisão, acompanhada de uma revolta dos presos, e acrescenta: "Sentado na cama, pensei com horror cm campos de concentração, fornos crematórios, câmaras de gases" (G.Ramos, IV, 1953:111). Ora, este pensamento seria impossível em 1936, quando se deu o episódio.
Está claro que se Graciliano tivesse preparado o livro para publicação, o acabamento final suprimiria tais incongruências. Mas, do jeito como está, o texto é muito significativo sobre a relação ali entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. Temos assim, no corpo do trabalho, um elemento que geralmente se consegue apenas quando é possível um cotejo de variantes.
É freqüente na crítica a estranheza com relação às posições políticas de Graciliano depois da prisão, o seu apoio à linha do Partido Comunista e à União Soviética (2). Realmente, datam dos primeiros anos do novo regime da Rússia as denúncias partidas não só dos que lutaram contra ele na guerra civil, mas também dos que a ele aderiram e logo ficaram chocados com a violência e opressão que viram instaurar-se na Rússia. A obra de escritores importantes ficou marcada por esta reação. No entanto, é preciso lembrar que autores como o romeno de língua francesa Panait Istrati eram pouco lidos no Brasil. O grego Kazantzakis tornar-se-ia conhecido pelos romances, sobretudo os aproveitados pelo cinema, e pouca gente leu suas impressões sobre a Rússia (Cristaldo, 1983:65). É verdade que os dois livros de André Gide que marcam o seu rompimento com os soviéticos tiveram ampla circulação depois de traduzidos. Mas, certamente, pouca gente conheceu a parte de seu diário que narra as suas buscas angustiadas, as suas dúvidas e vacilações, e que permitem melhor compreender o que havia de sério na atitude que tomou. (Qual teria sido a reação de Graciliano a esses textos?) E verdade que, sendo tradutor de Camus, ele deve ter conhecido os escritos em que este verberava o terror racional instaurado na Rússia. Certamente, também, não podia desconhecer fatos como a revolta da guarnição de Kronstadt, em 1921, quando os mesmos marinheiros que haviam feito a Revolução, ergueram-se em armas e foram esmagados.
Mas, por que nada disto, que se saiba, o fez vacilar?
Creio que um pequeno trecho de Viagem pode ajudar a compreender tal fato. Eis o que ele responde a uma pergunta, feita na Geórgia, sobre como se vivia no Brasil: "Caí num monólogo triste, falando interiormente às deliciosas vizinhas erguidas no fim da platéia. Isso mesmo. Entalam-nos o crânio, somos coagidos a não pensar direito; as nossas idéias se esfarelam, espalham-se em torno de pequenas misérias. E nem só os pensamentos se reduzem. Os corpos também se aniquilam, nas prisões e fora delas. Uma prensa invisível nos comprime. O ar em nossa terra é denso, pesado; às vezes necessitamos esforço para respirar. E até isso nos roubam, estragam-nos os pulmões: ao sair da cadeia, estamos tuberculosos. Como vivemos? Propriamente não vivemos, aquilo não é vida. Quando entramos na Colônia Correcionál, dizem-nos: "Não vêm corrigir-se, vêm morrer. E ninguém tem direitos. Nenhum direito". Espanta-nos a franqueza. Numa existência de animais, ficamos semanas em jejum completo. Descerram-se enfim as grades, vemos o sol. Não realizaram, pois, a ameaça? Não nos mataram? Em parte, realizaram: estamos na verdade quase mortos. Ganhamos cabelos brancos e rugas. Assim tão fracos, tão velhos, não conseguiremos trabalhar. Arrasaram-nos" (G.Ramos, 1954:98-99).
Este trecho, escrito evidentemente quando as Memórias do cárcere estavam em elaboração, no qual aparece alusão direta a algumas passagens destas, vale por si um livro.
A força com que trata de sua vivência no Brasil ofusca realmente a visão que poderia ter da realidade russa. Basta ler neste sentido o capítulo 9, em que fala de Stálin: "Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele - e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos".
Agora, lemos isto à distância e depois de tudo o que veio à tona com o devassar do sistema stalinista. Mas, como foi possível um escritor lúcido e mordaz como Graciliano chegar a tais extremos, mesmo levando-se em conta as suas marcas brasileiras de preso sem culpa formada? Realmente, no culto a Stálin havia um fervor coletivo que deixava contagiados mesmo os indivíduos mais sagazes. Como explicar isto? Como explicar, por exemplo (e este é apenas um dos numerosos exemplos que se poderia citar), que a poeta Olga Bergholtz, que abortara um filho devido aos maus tratos na prisão, tenha se tornado, depois de libertada, a grande voz no rádio de Leningrado assediada pelos alemães, e que nas suas transmissões radiofônicas invocasse a ideologia do sistema para estimular a resistência aos alemães? Isso ocorrendo, ao mesmo tempo em que presos políticos, seus ex-companheiros, continuavam apodrecendo nas prisões, agora simplesmente morrendo de fome, como o caso de Daniil Kharms, precursor russo da literatura do absurdo, e que só a partir da glasnost pôde ser editado extensamente.
Mas, a par de toda essa veneração por Stálin e pela Rússia soviética, havia um ponto sobre o qual Graciliano não transigia: o seu repúdio ao realismo socialista.
Veja-se, neste sentido, um trecho das Memórias: "Uma noite de calor, suando no chão duro, chateava-me a folhear um romance idiota. Alguém, na cama vizinha, interrompia-me afirmando com enorme certeza que aquilo era uma bíblia. Desenvolvia motivos, indicava passagens onde se arrumavam belezas imperceptíveis. Aborrecia-me:
- Está bem. Isso mesmo.
Impossível descobrir alguma vantagem no livro espesso, bem construído, científico em demasia. As personagens, terrivelmente sábias, expunham temas difíceis, causavam-me dor de cabeça. Os insensatos elogios irritavam-me:
- Isso mesmo. Sem duvida" (G.Ramos, IV, 1953:145).
A sua atitude torna-se ainda mais explícita com uma carta aos filhos, datada de Moscou, 1º de maio, 1952: "Kalúguin perguntou-me quais dos meus livros que deviam ser traduzidos em russo. Talvez nenhum, respondi. E expliquei a minha divergência com o pessoal daí" (3).
Com relação a esta divergência, espanta-me o seguinte: se é absoluto o seu repúdio aos frutos espúrios do jdanovismo, não se percebe em sua obra qualquer marca forte da literatura russa deste século, como se lá só existissem aqueles romances laudatórios e cacetes. Em livro sobre o pai, Clara Ramos também só nos conta o argumento ridículo de um romance que circulara na família. E isto era particularmente estranho num escritor em que é tão grande a impregnação pela literatura russa do século passado. Aliás, é ainda Clara Ramos quem escreve sobre o período de sua oposição ao realismo socialista: "ele aguarda novas e imprevisíveis manifestações da literatura russa. Está demorando? Está, mas a melhoria da qualidade da vida coletiva vale bem um declínio literário" (C.Ramos, 1979:224). Quantos equívocos terríveis! Pelo visto, ele só conhecia a literatura difundida em massa pelas editoras soviéticas naquele período.
Mas evidentemente as estranhezas não param aí. Sobretudo, são muito surpreendentes, lado a lado, a veneração pelo regime de Stálin e esse repúdio ao jdanovismo. Alguém poderia perguntar: e a dialética, onde fica? Aliás, não foram poucos os intelectuais que defendiam o sistema soviético e, ao mesmo tempo, viam naquele sistema coeso a mancha negra que não podiam aceitar. Mas, na realidade, o jdanovismo só pode ser considerado como a conseqüência natural do regime. Quando surgiu em 1946 o famoso relatório de Jdanov sobre duas revistas literárias de Leningrado, com ataques indecentes às grandes figuras de Ana Akhmátova e Mikhail Zóschenko, deu-se o primeiro passo para um endurecimento no regime e um retrocesso ao clima que se criara com os Processos de Moscou da década de 1930, uma repetição de todos aqueles horrores. No entanto, em Graciliano era viva demais a desconfiança em relação àquilo que era difundido pela imprensa burguesa, e ele mal poderia supor que esta desvendava apenas uma parte da realidade daquele mundo. Se em 1936 e 37 o terror vigente no Brasil tornava muito suspeitas as denúncias que se faziam do inferno em que a Rússia mergulhara, repetia-se na década 1940 um processo semelhante.
Ao mesmo tempo, fica difícil cobrar de Graciliano uma coerência que fez falta a tantos intelectuais da época. Se alguns se caracterizaram por mudanças freqüentes de posição, passando de uma atitude de denúncia à aceitação e vice-versa, como foi o caso de Sartre, se outros souberam partir de uma posição marxista e fazer a crítica da realidade soviética baseada nessa posição, como Isaac Deutscher, não foram poucos os que assumiram a defesa do sistema stalinista.
Como exigir uma atitude realmente dialética de um escritor que se dizia pouco versado em Hegel (G.Ramos, II, 1953:34)? Não adianta muito censurar as contradições não resolvidas que encontramos em Graciliano. E ao contrário, devemos ser-lhe gratos pela profundidade e veemência com que soube vivê-las.
Notas
1 Contracapa do livro de Graciliano Ramos, Cartas, 2. ed., Rio de Janeiro, Record, 1981.
2 Esse tema foi tratado, entre outros, por Janer Cristaldo: Graciliano Ramos e Joseph Vissarionovitch, 30 anos depois, em Travessia, n. 6, jul. 1983, p. 62-78.
3 Graciliano Ramos, Cartas, obra citada na nota l, p. 200. Realmente, houve resistências à publicação de traduções russas de seus livros. Segundo o Dicionário enciclopédico de literatura, (Litieratúrni entziklopiedídtcheski slovar), Moscou, Ed. Enciclopédia Soviética, 1987, só foram publicados em russo: Vidas secas (traduzido como Vidas ressecadas), 1961, e São Bernardo, 1976.
Referências bibliográficas
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro, José Olympic, 1956.
CRISTALDO, Janer. Graciliano Ramos e Joseph Vissarionovitch Djugatchivili, 30 anos depois. In: Travessia, n. 6, jul. 1983
GRINSBURG, J. Memórias do cárcere de Graciliano Ramos. In: Motivos, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1964. Primeira publicação: 1954.
RAMOS, Clara. Confirmação humana de uma obra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979. RAMOS, Graciliano. Cartas. 2. ed. Rio de Janeiro, Record, 1981.
__________. Memórias do cárcere, v. I, n e IV Rio de Janeiro, José Olympic, 1953.
__________. Viagem. Rio de Janeiro, José Olympio, 1954.
Boris Schnaiderman é professor titular (aposentado) do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tradutor e ensaísta, e membro do Comitê Editorial da Revista USP.
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