“O costume viciado das delações, jungido aos interesses
múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É
tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a
recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa.
É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos.
Se tal coisa não for efetivada, logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais,
quando os sicofantas eram acarinhados pelo regime político, assumiam
cargos que não mereciam, destruíam os vínculos de confiança e
companheirismo que devem imperar na vida intelectual”, escreve Roberto Romano da Silva,
professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva), em artigo publicado por Jornal da Unicamp, 04-10-2017.
Eis o artigo.
As universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo,
reitor da UFSC. A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e
políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa
terra. O primeiro traço a chamar nossa memória encontra-se em algo que
desagrega toda sociedade, em especial a reunida nos campi. Trata-se da
abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento repressivo por
agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria universidade. No
caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação
contra o reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público
sem os mínimos requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes
de encarcerado. Os repressores e seus aliados da imprensa não se
preocuparam um só instante com a sua honra e a dignidade do cargo por
ele ocupado. Ele foi exposto à execração popular sem nenhuma prudência.
Em país onde ocorrem a cada instante casos como o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.
Todos os pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e aniquilação dos direitos.
Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de ensino superior, com
os dedos em riste contra adversários ideológicos ou concorrentes bem
sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade junto aos
poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP
traz relatos nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as
baixezas emulavam a covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi
tangido rumo às prisões ou exílio. O indigitado, não raro, era posto na
“cadeira do dragão” e outros tormentos, após seguir o caminho de orgãos
como o Dops em veículos oficiais, cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.
De certo modo o Brasil, na ditadura e na aparente democracia
atual, retoma a proeza que tornou infame parte da antiga democracia
grega. Nela existiu uma lei, tida como exemplo de injustiça, que punia
os “atimoi”. Ao surgir um indivíduo com força para vencer eleições, os
seus inimigos o acusavam de desvios comportamentais (por exemplo, de ter
mantido relações eróticas com adultos, pagas por presentes). O
candidato era destituído dos direitos cidadãos, condenado sem julgamento
e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os processos
registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinha
a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia
desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos
contemporâneos segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados
sem ter sido declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell:
(The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os
acusados de prostituição deviam “evitar o exercício dos direitos de
cidadania, ao serem tidos como “atimoi”, pois eles seriam processados se
ignorassem tal veto”. A pena era a morte. Na dokimasia, exame para
ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda
dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só
para os políticos, não para os cidadãos privados”, segundo S.C. Todd
(The Shape of Athenian Law, Oxford, Un. Press, 1993). Este “só” não
tranquiliza, porque o grego é animal político.
As penas de atimia também
eram aplicadas aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os
seus débitos aos tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que,
chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à
plena atimia. A honra e a desonra de um político eram entregues aos
delatores, interessados na sua expulsão da cena pública.
Na ditadura de 1964, os acusados eram tidos, ipso facto, como “sem
honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”.
Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto,
naqueles dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo,
erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável
“à direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e “corruptos”
pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua
denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”.
Desapareceram os acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre
autoridades religiosas e políticas, sobretudo as policiais, mantiveram
tal retidão ética. E mesmo após o regime autoritário,
a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser reiterada em todos
os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo gera boa
consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem
do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus
concorrentes, pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos
judiciais, a “delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para
garantir a diminuição de penas, a língua do prisioneiro articula frases
cujo conteúdo, não raro, avança inverdades e calúnias. Quase todas a
eles ditadas pelos proprietários do poder.
Quando alguns procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado para a Comissão Especial da Câmara
que analisava o projeto de lei resultante. Ali critiquei o uso dos
delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez Medidas, seria de
5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas atenienses,
genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o
quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas
ilícitas, mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara
dos Deputados: “Especialistas apontam falhas em medidas de combate à
corrupção sugeridas pelo MP”, 22/08/2016).
Além do vício ético reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado
para perseguir quem pensa de modo diferente ao costumeiro, com prisões
espetaculares e reportagens idem, precisamos examinar a prática política
no interior dos campi. A Universidade Federal de Santa Catarina,
a mesma do reitor falecido, tem uma história melancólica a ser exposta.
Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética essencial. Se um
reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os ditames do
poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se traz
para o interior da instituição universitária os interesses dos
comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças
religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na
companhia daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de
respeito aos outros, fanatismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existiu
durante longo tempo o vezo indicado acima. Tal procedimento trouxe para a
instituição os mesquinhos interesses políticos do Estado federal,
estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida pelas técnicas
empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente, nas
eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas
pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC
desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma
convivência pacífica ou um apoio entusiasta (...) O processo eleitoral
não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de
oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes,
servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos
não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais
altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das
urnas: 20 anos de Eleições Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).
O costume viciado das delações, jungido aos interesses múltiplos
presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É tempo dos
setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das
acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta
ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada,
logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram
acarinhados pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam,
destruíam os vínculos de confiança e companheirismo que devem imperar na
vida intelectual. Se os delatores não forem detidos e se continua a
subserviência acadêmica aos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado
– logo todos os que não curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos
entre os “atimoi”. A morte do reitor é um aviso sinistro. Saibamos
aproveitá-lo.
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