Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes
é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência
Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros
mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados
Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos
Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da
Unesp.
Estado policial, porta de entrada do inferno
Edição de imagem
Algo
de muito grave ocorre no Brasil. Não falo apenas – apenas? – de
tremendos retrocessos sociais, regressão econômica ou cultural. Se isso
não fosse suficiente para nos alarmar, a desagregação das instituições
de Estado avança rapidamente – ameaçando a existência daquilo que se
chama de nação.
Faz cem anos, o liberal Max Weber definia o Estado a
partir do monopólio da coerção legitima. De outro lado do muro, o
revolucionário Lenin dizia que o Estado era, em suma, uma rede de
tribunais, prisões, polícia. Os dois tinham diante de si, para teorizar,
o Estado da época – não muito mais do que repressão organizada,
monopólio da lei, da ordem e da defesa. Pouco mais do que espada.
O Estado mudou ao longo do século XX, mas as "forças da
ordem” seguem sendo sua espinha vertebral. Até mesmo as políticas
sociais e regulatórias podem ser vistas, tantas vezes, como uma forma
enviesada de vigiar e punir.
Pois é essa espinha vertebral que parece, agora e aqui,
atingida por uma doença letal. Faz algum tempo, promotores, juízes e
delegados ensaiam movimentos que colocam em dúvida sua identidade.
Delegados que dirigem investigações de impacto e ao mesmo tempo se
permitem agitação eleitoral explícita. Bem, talvez se pudesse atribuir o
descuido à polarização eleitoral. Acontece. Só que não. Um outro se
põe na berlinda escandalizando o país (e o mundo) com a afirmação
singela de que a carne industrializada continha veneno – vitamina C. O
nome da operação – Carne Fraca – transformou-se no seu objetivo não
deliberado. Até hoje a carne brasileira é vista com suspeição no mercado
internacional. O delegado trapalhão foi posto na geladeira. Seus modos,
porém, seguem procriando.
Mais recentemente, uma delegada visivelmente
desequilibrada e ansiosa por demonstração de poder, manipula informações
e induz uma juíza, essa também visivelmente apressada, a promover um
espalhafato grotesco e de trágicas consequências, com o suicídio de um
reitor de universidade acossado por uma matilha de cães.
Passa algum tempo e a cena se repete, também com
espalhafato e requintes de truculência, se assim podemos dizer. A
Universidade Federal de Minas Gerais é exibida, em operação tosca, como
antro de perversões, poucos dias depois de ali se ter realizado um
protesto contra a pantomima de Florianópolis.
Mas seria fastidioso listar e descrever as manifestações
da praga. Como o estrelismo de um juiz que se faz fotografar portando
fuzil e com pose de justiceiro, filme B de uma hollywood suburbana.
Mas estas cenas, por enquanto, parecem ocorrer em
círculos até mesmo favorecidos da escala social. A cena seguinte,
igualmente desmoralizante, ocorre em outro quadrante. Ouço no bar a
notícia de que o chefe do tráfico da Rocinha fora preso por uma ação
combinada das polícias Civil, Militar e Federal, da Guarda Nacional e
das Forças Armadas. Só faltou a guarda suíça do Vaticano.
Surpreendente
que alguém ache que o tráfico seja mesmo comandado por alguém como ele,
num barraco do morro. E mais surpreendente que seja necessário essa
conjunção de estrelas para capturá-lo. Seria mais razoável verificar a
movimentação de algumas contas bancárias. Porém chego em casa e me
espanto ainda mais com as imagens do pós-combate. Policiais se fazendo
fotografar ao lado da estrela presa. Uma polícia feminina faz uma selfie com
o astro capturado. Lembro-me da letra do funk: “Ela não anda, ela
desfila, tira foto para botar no facebook”. É a isso que se reduz o
braço da lei?
Nos andares inferiores da sociedade, aqueles com os quais
em geral menos nos incomodamos, já é usual ver esse comportamento.
Pouca gente se incomoda – muita gente aprova – que a polícia invada
barracos aos pontapés, sem mandado e tantas vezes sem outro motivo senão
demonstrar a própria forca. Pode demonstrar a força, mas desmancha a
autoridade. Deixa de ser vista como a ordem legitimada e passa a ser
igualada aos seus adversários (aparentes?), os criminosos.
Quando indivíduos e mesmo frações organizadas dentro das
corporações de segurança assim se comportam, eles não erguem a imagem
dessas corporações. Eles a rebaixam. O resultado dessa escalada é a
desintegração das instituições da ordem – espinha dorsal do Estado. A
quem interessa que um Estado se desmanche e uma nação se desfaça? A quem
aproveita? – perguntam os advogados quando diante de um crime sem
culpado à vista.
Os personagens desses atos estapafúrdios podem ser
movidos pela sua imaturidade, pela sua ambição desmedida, apenas isso.
Ou não. De qualquer modo, com esses atos não promovem a lei. Eles a
lançam na sarjeta e no pântano. E ali, ela é disputada pelos crocodilos.
Crocodilos que falam – ou não – o idioma nacional. São eles que
espreitam, sombrios, salivando para abocanhar o que sobra da operação de
desmanche.
A reversão desse processo exige bem mais do que agentes
salvadores – fardados ou não. Um “resgate” dessa natureza seria
aprofundar o mal. O quadro exige um reencontro da nação consigo mesma –
reorganizando o pacto de convivência em condições mais justas e
equilibradas, menos vulnerável ao desespero e à incerteza. Um pacto
tutelado foi constituído sob o medo da chamada transição politica. Esse
ciclo revela seu limite.
É preciso um esforço de cidadania, se não quisermos
voltar à condição de colônia ou ao estatuto de terra de ninguém e,
portanto, alvo de todos os abutres do mundo. Na história contemporânea
processos como esses costumam ser chamados de Assembleias Constituintes.
O Brasil foi descoberto há pouco mais de 500 anos. Precisa ser
refundado. Não por acaso, nem por vontade de um rei. Por uma decisão
soberana, do único soberano aceitável em uma democracia.
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