Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Juízes, segurem os beleguins!
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Senhores
magistrados brasileiros. Dirijo a presente mensagem ao seu coletivo
sabendo que muitos togados não precisam ler ou ouvir o que segue abaixo.
Mas noto, com indignação cada vez maior, um comportamento anômalo em
alguns de seus pares. Tal prática tem as marcas da tirania, impossíveis
de serena acolhida em regime democrático.
Aprisionamentos e conduções
coercitivas a presumir culpa e não inocência de pessoas mostram um vezo
perigoso. Em semelhante matéria chegamos à banalidade dos faits divers
que geram uma opinião pública colonizada pela propaganda, oficial ou
particular. O uso da humilhação é técnica eficaz para aterrorizar a
cidadania. O povo brasileiro já foi garroteado por duas ditaduras
ferozes que usaram à exaustão o monopólio estatal da força física,
pisoteando a dignidade das pessoas. Muitas famílias guardam memórias de
membros seus presos, torturados, exilados, censurados, expulsos dos
cargos ou empregos por agentes que aplicavam aquele monopólio.
Nos últimos dias um poderio bruto se volta contra os
campi nacionais e, neles, ressurge o arbítrio arrogante de quem imagina
tutelar a existência coletiva. Lembro fatos pretéritos, figuras que
anteciparam o que hoje ocorre na esfera estatal. A ditadura instaurada
em 1964, por intermédio de soldados, humilhou a veneranda figura do
professor João Cruz Costa, na USP, dele exigindo entoar o hino nacional
como “prova de brasilidade”. Na prática daquela selvageria, não tivemos
nenhum traço novo, visto que o nacional-socialismo obrigava os
contrários a Hitler a cantar estrofes nauseantes da Horst-Wessel Lied.
Todos os que depreciam o Brasil e parolam sobre proezas educacionais na
Coréia do Sul, sequer lembram: aquele país usou métodos e ideias de um
grande professor brasileiro, Anísio Teixeira, perseguido e humilhado por
beleguins. Ainda hoje sua morte está envolta em espessas sombras, tal o
clima de segredo repressivo imperante na época. Com a ditadura
brasileira a caçada à intelligenzia ergueu um pensador que
apoiara o regime de 1964, mas se assustou com a truculência dos que
diziam ter cometido o crime de lesa ordem constitucional para “combater a
subversão e a corrupção”. Seu nome era Tristão de Athayde. Ele define a
campanha contra universitários como “terrorismo cultural”. As suas
denúncias narram as infâmias cometidas em nome de supostos valores
morais, usados como desculpa para o assassinato da liberdade. O
terrorismo cultural retorna no Brasil do século XXI, por mãos de quem
deveria zelar pelos direitos, sobretudo o de pensar.
Ocorrem
naquela mesma data as cassações de professores e cientistas, o estupro
dos campi pela força policial armada. A resistência a tais procedimentos
foi erguida por outra figura venerável, o reitor Pedro Calmon Muniz de
Bittencourt, nome essencial para o exame da história pátria. Quando
esbirros ameaçaram faculdades e institutos por ele dirigidos, com base
no monopólio usurpado da força, o líder acadêmico pronunciou frases que
ontem, hoje e sempre devem iluminar as decisões judiciais e as práticas
de sua polícia. Disse o Magnífico Reitor: "aqui, esses beleguins de tropa militar não entram, porque entrar na Universidade só através de vestibular". Calmon não era apenas mestre do saber histórico. Ele dominou a língua de Camões. Com o termo
“beleguins” para indicar policiais truculentos a serviço de juízes
submissos ao poder ilegítimo, o Reitor sintetiza a história nada
democrática da nossa instituição estatal, incluindo os tribunais, as
algemas e os revolveres que os servem.
“Beleguim”, embora de origem incerta, tem forte nexo
semântico com o espanhol “belleguín”, “agente de justicia” segundo a
Real Academia Española em seu Dicionário. O termo de uso anticuado se refiere a un funcionario
público o un ministro inferior que es el encargado de aprisionar y a su
vez de ejecutar a los reos y los presos, que se dice corchete o alguacil de la misma acepción.
Completa razão teve Calmon ao chamar os que invadiram os campi de
beleguins. Eles agiam em nome de juízes, muitos deles comprometidos com a
ditadura instaurada no país desde o primeiro Ato Institucional. E
recordemos a pergunta de Pedro Aleixo: o presidente talvez não abuse do
Ato número 5, “mas e o guarda da esquina?”. A culpa dos atentados aos
direitos civis, hoje, não pertence sobretudo aos beleguins, mas aos que
acima deles decidem nos tribunais.
Nem todos os magistrados brasileiros, na época, dobraram a
cerviz. Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e outros resistiram e foram
perseguidos, cassados, exilados. Quando ocorreu a proibição do habeas corpus,
poucas togas se levantaram em defesa do direito e da justiça. Em se
tratando de beleguins e juízes, sempre é bom lembrar, com o Padre
Vieira, que mesmo eles podem ser resgatados para o bem comum. Escutemos o
nosso oráculo ético: “Uma das profissões mais
arriscadas a não ser justo é a dos ministros da justiça, ou sejam os
que a sentenciam, ou os que a defendem, ou os que a escrevem, ou os que a
executam; mas todos, se o fizerem com pureza de coração, podem ser
santos. Santo Ereberto e Santo Tomás de Cantuária foram chanceleres; S.
Hieroteu e S. Dionísio Areopagita, desembargadores; S. Pudente e Santo
Apolônio, senadores; S. Fulgêncio, procurador da fazenda real; Santo
Ambrósio, S. Crisóstomo e S. Cipriano, advogados; S. Marciano, S. Genési
o e S. Cláudio, escrivães; Santo Anastásio e S. Ferréolo, juízes do
crime; Santo Aproniano e S. Basilides, esbirros ou beleguins; e até no
vilíssimo exercício de algozes foram santos S. Ciríaco, Santo
Estratonico, e outros” (Sermão de Todos os Santos). Não
desesperemos, pois. Mesmo juízes que marcham apenas atrás dos exércitos
mais fortes podem seguir o caminho da atrição e da contrição. Quantos?
Mistério.
Ocorreu com os jesuítas, defendidos pelo Padre Vieira, o
que hoje acontece com os reitores ameaçados e postos à beira do
suicídio. “Quem havia de crer que houvessem de
arrancar violentamente de seus claustros os religiosos e levá-los
presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los
aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem?”. (Sermão da Epifania). Quem
haveria de crer que magistrados e seus auxiliares entrariam nos campi à
caça de reitores levando-os presos sob ferrolhos, e com guardas, até os
desterrarem? Os juízes que não enxergam limites ao seu poder e dele
abusam profanam o habitáculo onde se faz ciência e se busca o
verdadeiro, o bom, o belo. Pelo que fazem hoje no campus, é possível
visualizar sua prática estudantil. Brilhante não era, com certeza, dado o
desprezo que exibem diante do saber e dos que o cultivam.
Os espetáculos por eles gerados, de caráter sádico e sem
peias, testemunha a inutilidade do chamado sistema de ensino e justiça
no país. E novamente recorro, senhores magistrados, ao bom Padre Vieira.
Os homens imprudentes “inventaram e formaram Leis, levantaram
tribunais, constituíram magistrados, deram varas às chamadas Justiças,
com tanta multidão de ministros maiores, e menores, e foi com efeito tão
contrário que em vez de desterrarem os ladrões, os meteram das portas
adentro, e em vez de os extinguirem, os multiplicaram e os que furtavam
com medo, e com rebuço, furtavam debaixo de provisões, e com imunidade. O
Solicitador com a diligência, o Escrivão com a pena, a Testemunha com o
juramento, o Advogado com a alegação, o Julgador com a sentença, e até o
Beleguim com a chuça, todos foram ordenados para conservarem a cada um
no seu, e todos por diferentes modos vivem do vosso”. (Sermão da Segunda Dominga da Quaresma).
Perseguições cruéis de cientistas e professores não abolem o fato
corrupto mas o pioram, pois distraem o público das façanhas conduzidas
pelos verdadeiros larápios dos cofres nacionais.
Senhores juízes: beleguins e suas chuças, prisões e
conduções sob vara, não dobram o intelecto que nos campi busca a
verdade. Conforme ensina Spinoza na monumental Ética demonstrada geometricamente,
“um pensamento é limitado por outro pensamento. Mas um corpo não é
limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo”. É tarefa
inútil e ignara usar corpos de repressores para impedir o pensamento. A
massa de soldados pode prender, suicidar, exilar, censurar. Mas sua ação
só ocorre no plano dos corpos. O pensamento, essência da busca
universitária livre, não é por eles impedida. Nem pelos senhores.
Os magistrados que movem a força em vez da razão, muito
provavelmente passaram rápido pelas aulas de filosofia ética e doutrina.
Talvez as consideravam meras “perfumarias” acadêmicas. Não meditaram
com Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e outros luminares do
pensamento. Se tivessem compulsado devagar e atentamente os escritos que
edificaram a justiça e o direito, teriam lido a seguinte advertência
nas Leis, escritas por Platão:
“Se um magistrado pronuncia uma sentença
injusta ao avaliar certo dano sofrido, sua responsabilidade para com a
vítima do prejuízo deve ser o dobro do valor em causa. Quem assim o
quiser pode processar nas cortes comuns os juízes que decidiram
injustamente nos casos a eles trazidos”. (*)
(Leis, 846b).
Em nosso Brasil, quanto devem pagar os juízes que
autorizam humilhações e abuso da força? Que falem os familiares do
Reitor Cancellier, de outros reitores e docentes tratados como se
criminosos fossem, antes mesmo de um julgamento e, menos ainda, de um
veredicto. Muitos juízes brasileiros não leram as Leis
platônicas e não foram advertidos sobre os danos que podem sofrer, caso
só operem de acordo com a vontade de potência, sem passar pela epikéia,
a justiça em sentido próprio. Cabe ao povo pressionar os legisladores
para que abusos de muitas togas sejam punidos. E também sejam
sancionados negativamente os truculentos beleguins. Até lá, a cidadania,
que paga impostos para obter sentenças prudentes, diz em uníssimo:
basta! Magistrados surdos à voz da justiça podem integrar, cedo ou
tarde, a lista biográfica dos Atrocious Judges: Lives of Judges Infamous as Tools of Tyrants and Instruments of Oppression (Richard Hildreth, 1856) Quem viver, verá.
(*) Comentário lúcido feito por
um intérprete das leis gregas: “One can hardly imagine a more dramatic
remedy against judicial injustice than a suit for damages against the
judge”(Glenn R. Morrow, “Plato and the rule of Law”in Vlastos, G. (ed.) Plato 2, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosophy of art and religion).
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