Revista Forum
Utopia perdida?
Para o filósofo Roberto Romano, o resultado das eleições municipais alerta para o perigo do PT se descaracterizar, afastando-se ainda mais de sua militância
Por Glauco Faria
Um partido que sai fortalecido institucionalmente, mais capilarizado
em todo o país, mas também uma agremiação que vem perdendo boa parte de
um dos seus principais ativos políticos: a militância. É essa a análise
que o filósofo Roberto Romano faz dos resultados das eleições municipais
para o Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo o professor, esse
distanciamento tanto dos simpatizantes quanto de setores da sociedade
civil se deve a práticas e condutas políticas que estão em desacordo com
as principais bandeiras históricas do PT.
Para Romano, o ideal seria que fosse convocado um congresso nacional
extraordinário do partido, para definir quais são suas diretrizes e
rever se antigos conceitos são ou não válidos, deixando transparente a
relação entre a direção e a militância. Na entrevista a seguir, o
filósofo também analisa as eleições paulistanas e a influência crescente
do marketing político nas campanhas petistas.
Fortalecimento institucional do PT O PT saiu
fortalecido do ponto de vista institucional, já que desde sua fundação
visou à conquista do poder e hoje conseguiu se tornar uma das grandes
organizações partidárias do país. E ele possui solidez interna, ao
contrário de partidos oligárquicos como o PMDB e o PFL, que são
verdadeiras federações. Por outro lado, remontando ao fato de que o PT
surgiu com base em fortes alicerces sociais, reunindo as mais diferentes
tendências de esquerda, hoje a situação mudou bastante. Com a Carta ao
Povo Brasileiro, a relação entre o partido e suas bases ficou
extremamente abalada, muitos ruídos apareceram e devem se tornar ainda
maiores. O PT sai dessas eleições reforçado institucionalmente, mas com
problemas e dúvidas de rota. Se se conformar com o destino dos grandes
partidos, se tornando uma federação de tendências, vai cair no “é dando
que se recebe”.
Eleições em São Paulo A Marta, embora agisse de
forma independente, não era antagônica à Articulação, mas nessa eleição
achou que poderia projetar um grupo autônomo, que atropelasse futuras
intenções de outras importantes figuras do partido em São Paulo, como o
senador Aloizio Mercadante. Quando ele entra na campanha, a mensagem é
dupla: sinaliza que não quer conflito com o grupo dela, mas também que o
seu empenho não é gratuito. Mas a verdade é que, em função das
pretensões da Marta, a disposição do Planalto em ajudá-la não foi
grande. Além disso, o partido cometeu erros estratégicos.
Em relação a São Paulo, a discussão sobre o vice já deveria ter sido
feita bem antes. No caso da aliança com o PMDB, de certa forma é
justificável a ação da Marta, já que ela tinha intenção de ser candidata
ao governo do Estado em 2006. Além disso, o PMDB tem pouco a
acrescentar em termos de voto e ainda traz a mancha ética de Orestes
Quércia, que sempre cobra caro por seu apoio. A aliança com Quércia
seria uma aliança com um oligarca. No caso do apoio dado por Maluf, ele
estava tentando obter um salvo-conduto.
Governo federal É sempre bom lembrar que as eleições
municipais têm uma dinâmica própria e muitos erros foram cometidos
nessas campanhas. Mas ajudaram muito a diminuir o elã da militância
algumas medidas tomadas pelo governo federal desde a reforma da
Previdência. Tivemos também uma série de acontecimentos, como a
determinação de um superávit primário grandioso, sem mudar nada na
condução das políticas sociais. Com isso, a militância percebeu que
havia uma reiteração da política anterior.
O governo tem mostrado uma competência enorme na condução da política
econômica, concorde-se ou discorde-se dessa linha. Há uma máquina
azeitada. Há também uma política externa que vai bem, mas as políticas
sociais estão sendo desastrosas. Ligado a isso, há um desencanto enorme
por parte dos universitários que, embora não sejam ruidosos, têm uma
influência grande. Não ao fazer a crítica direta do governo, mas ao
deixar de fazer o elogio. Se o setor universitário soltasse fogos pelo
desempenho do PT federal, é lógico que o clima seria diferente. A
militância espontânea, que pagava uma mensalidade ao partido, usava seu
fim de semana para fazer panfletagem, enfrentava inclusive a polícia
para que as idéias do PT fossem divulgadas, está paralisada. Isso
diminuiu dramaticamente, deve ter sobrado 40% desses militantes no
máximo. E perder 60% do seu exército é muito danoso para qualquer
general. Pagar pessoas para agitar bandeiras não surte o mesmo efeito.
Os bancários, por exemplo, acabam de sair de uma greve em que ficou
evidente, no mínimo, a posição de neutralidade do governo. Sempre lembro
do dito do (filósofo) Max Weber: “Neutro é aquele que já se decidiu
pelo mais forte.” Nesse caso ficou evidente que o governo estava com os
pés e as mãos presos aos donos de banco e não aos bancários. No
Planalto, há muitos bancários e essa situação se torna mais complicada e
afeta a máquina da militância.
O Termidor do PT Há esse fenômeno do choque entre
militância e direção praticamente desde a Revolução Francesa. Quando
houve o golpe do Termidor, o que aconteceu foi isso, a direção do
movimento não acompanhava mais o ritmo da base, então os mandantes deram
um golpe. Inclusive ele serviu como parâmetro para quase todos os
movimentos democráticos internacionais e nacionais. Podemos dizer que
houve um Termidor na Revolução Russa, na social-democracia alemã, no
socialismo francês etc., sempre no momento em que existe um desencontro
entre a elite partidária e a base democrática e radical. Isso aconteceu
notoriamente no Brasil. A base partidária não tem a confiança da elite e
a elite não tem a confiança da base partidária. Alguns setores da base
partidária radicalizaram de tal modo que, ou foram expulsos, ou saíram
do PT. Mas o grosso da militância ainda está no partido e está muito
arredia à direção. Se eu fosse do PT, convocaria um congresso nacional
extraordinário para analisar a sua história, o movimento social
brasileiro, aquilo que foi feito e o que pode ser definido em um
instante de acordo interno do partido, de modo que fatos como os que
ocorreram em Salvador e Fortaleza não venham a se repetir. Em Fortaleza,
há uma base que peitou a direção nacional. Em Salvador, a direção
peitou a base em desencontros que mostraram a situação do partido. É
preciso que haja uma definição. Se desse encontro nacional se chegasse à
conclusão de que algumas das perspectivas tradicionais do partido não
são mais viáveis, que pelo menos se chegue a um consenso mínimo daquilo
que pode ser viável. O partido continua socialista? Se continua, que
conteúdo se espera desse socialismo? O que não pode é o partido
continuar socialista e o Palocci pôr um superávit primário que nem um
capitalista ousaria fazer. Se isso acontece, a base não encontra um
terreno para debater, nem reivindicar. É urgente que isso seja feito
antes que haja uma descaracterização absoluta do partido em relação a
seu próprio passado.
Preconceito paulistano Diante dessa hecatombe
ocorrida em Porto Alegre e São Paulo, esperava-se da direção do partido
uma visão mais complexa e aberta, e um debate sobre as causas com a
militância. O que noto desde o dia da eleição, na fala do senador
Mercadante e do presidente nacional José Genoino, são clichês da pior
espécie. Por exemplo, atribuir a derrota em São Paulo a um preconceito
que foi manipulado pelos tucanos. Isso é um insulto à população média
paulistana que só tende a se voltar contra o partido. Existe preconceito
sim, mas dizer que o grande elemento da derrota foi a manipulação do
preconceito é dizer a uma população que elegeu Luiza Erundina, Celso
Pitta e que elegeu Marta Suplicy que ela se deixa levar apenas por isso.
É bom lembrar que quando a Marta ganhou do Maluf, ela era chamada na
propaganda de “sexóloga dona Marta”… Mais preconceito manipulado que
naquela eleição é impossível, e, no entanto, ela ganhou. Esse não foi o
único fator, nem o mais elevado. Não cabe a um presidente de um partido,
com o refinamento intelectual que ele tem, uma explicação simplória
desse tipo.
Perda de memória No dia da eleição estive em dois
debates na televisão, e presenciei membros do partido dizendo que a
prefeita Marta foi a primeira a olhar para a periferia de São Paulo.
Ora, existiu uma prefeitura petista comandada por Luiza Erundina que,
justamente, perdeu a sua chance histórica porque investiu pesadamente na
periferia. Falar isso é uma injustiça e uma perda de memória. Se a
Luiza Erundina rompeu com o partido, se houve um problema posterior, nem
por isso ela deixa de ser um quadro político considerável. O momento
dela na prefeitura foi um momento importante da história do partido e,
naquele instante, fui muito crítico em relação à sua administração, mas
também acompanhei o que ela fez na periferia, em termos de escolas, de
urbanização de favelas, da saúde – ponto fraco da administração Marta.
Não se pode, por força de slogans, reduzir seu papel. A militância não é
tonta e não se pode lhe dar a explicação que um coronel daria a seu
rebanho. Um dos mais graves erros que a atual direção do PT vem
cometendo é a percepção de que a militância seria como um conjunto de
neófitos ou de pessoas boçais. Não é. Houve um embate pesadíssimo em São
Paulo, pode-se falar em preconceito, mas a coisa é mais complexa.
Bandeira esquecida É muito sintomático que em
Ribeirão Preto o Palocci tenha feito em escala micro tudo o que ele vem
fazendo em escala macro e piorado. As primeiras privatizações dentro de
prefeituras petistas foram feitas ali, o que foi muito criticado pela
militância, pelas bases, mas foi muito incensado pela imprensa. Ele era
um petista liberal, diferente. Junto com essa liberalidade na área
econômica vem uma concentração de poder de mando muito forte nas mãos
daquele grupo que está no comando. Isso se reproduziu também em São
Paulo; o grupo que está ligado à prefeita Marta Suplicy tem uma série de
problemas mesmo com o Palácio do Planalto e também em relação à base. A
grande marca do Orçamento Participativo foi deixada de lado e não se
chegou a perceber a importância pedagógica da sua instituição, em
setores do PT. Ouvi colegas dizerem que é mínima a quantidade de
recursos que podem ser destinados ao Orçamento Participativo. Mas isso é
o menos importante, o que importa é que a população, com o OP, começa a
viver a prática da transparência, da responsabilidade e da visibilidade
dos recursos ainda que limitados. Em São Paulo, não houve o incentivo
devido a isso.
Marketing político O marketing político não trouxe
às campanhas do PT uma despolitização, mas sim uma péssima politização.
Houve uma desideologização da campanha do partido. A tentativa de tirar a
figura do PT do radicalismo político, do socialismo, de se fazer uma
versão light levou a essa experiência com esses marqueteiros. Mas isso é
universal, você vê nos EUA, na Rússia, a utilização do marketing em
escala industrial, e aqui não poderia ser diferente. O problema é que o
marketing não é uma coisa única, ele tem estilo, e o estilo Duda
Mendonça é particularmente nefasto, no sentido em que ele realiza a
produção de entidades que não existem e as transforma em personagens da
vida política. Já fez isso em São Paulo com o Fura-Fila do Pitta e
estava fazendo isso com o CEU-Saúde, que é uma entidade puramente
imaginária, que não existe e talvez nem tenha condições de existir. Esse
estilo de marketing é complicado, pois é uma forma de manipulação do
imaginário e quando se faz isso, toca-se no que (o filósofo holandês
Baruch) Espinosa chama de medo e esperança, e é muito perigoso. Espero
que com essas campanhas desastrosas o partido adote um outro estilo. Não
precisa ser um estilo pobre, com o Lula com a barba desalinhada, mas
também não precisa ser esse extremamente autoritário, uma técnica
fascista de manipulação do imaginário. Um partido democrático não pode
querer utilizá-lo. Não adianta ter uma população cativada eleitoralmente
se não há uma resposta no cotidiano da vida política.
Ideário socialista O que me preocupa nesse movimento
do partido é que existe uma lógica que determinava a ação do PT que era
a da democratização da sociedade, que não significava simplesmente um
igualitarismo, mas uma tentativa de que a sociedade fosse mais humana,
mais justa, que houvesse uma distribuição de saberes, da arte, da
justiça, o que faz parte do ideário socialista e que possui uma vigência
plena hoje. Não há quem, em sã consciência, defenda a exclusão do
ideário socialista, e há vários setores do PT que pensam dessa maneira. É
uma pena que não se adeqüe esse ideal, que é tão generoso, à realidade
dos postos de governo. Não é preciso que a reforma agrária seja feita em
três dias, não é preciso que a universidade se democratize em dois
minutos, mas é preciso que o governo não dê um passo atrás.
glauco@revistaforum.com.br
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