Magníficos pegadores
"Antes ofender com a verdade que agradar com a adulação" Padre Antônio Vieira
Roberto Romano,
O Estado de S.Paulo
22 Setembro 2014 | 02h04
22 Setembro 2014 | 02h04
Entrevistado pela revista Caros Amigos durante o governo FHC, nela tive a
honra de conversar com Milton Santos, homem de ciência combativo. A
matéria fora sugerida pelo mestre e causou impacto nos campi. Como
resultado fui perseguido pelos áulicos do governo, alunos meus perderam
bolsas de estudo, recebi "desconvites" por desafiar os então senhores
dos ministérios. O meu espanto maior, no entanto, veio com o petismo no
poder.
Intelectuais contrários ao sucateamento do ensino passaram a seguir os
governantes, de quem se tornaram instrumentos. Dos mesmos que aplaudiram
minhas teses recebi lições de indecoroso maquiavelismo. E por
invectivar seus hábitos exibidos sem pudor, logo eles me pespegaram as
fichas de moralista, tucano e outros mimos. A entrevista circula na
internet. Quem quiser a consulte e note que minhas posições permanecem
intactas. Mas os jacobinos de ontem assumem o papel de intelectuais
orgânicos cuja tarefa, além de farejar verbas e cargos, consiste em
destruir os contrários ao arbítrio. Logo percebi o quanto errei ao
acolher as juras democráticas dos que então se levantavam contra o poder
vigente. Fanáticos da "ética na política" revelaram-se cúmplices de
corruptos, na carcomida oligarquia brasileira.
Os cargos de confiança, a direção de empresas de menor porte, as
honrarias do Planalto, as viagens pagas ao exterior, tudo serviu aos
intelectuais como lentilha para vender consciências. Um colega recebeu a
tarefa de servir como "assessor ético da Petrobrás". Pelo visto, a
assessoria foi frutuosa…
Na dita entrevista critiquei a tese de que existiria poder na
universidade. Insisti sobre algo óbvio no Estado moderno, que concentra
os monopólios da força, da norma jurídica, dos impostos. Mas os iludidos
do mundo acadêmico alardeiam o "poder" dos reitores, dos conselhos,
etc. "Onde a universidade tem isso? Onde um reitor tem isso?",
interrogava eu na Caros Amigos. E advertia: "Temos representantes do
poder na universidade. Esses reitores são embaixadores do poder". Milton
Santos radicalizou minha fala: "Essas pessoas que se renovam nos postos
de comando constituem um grupo que tem certa autonomia de existência e
se opõe à ideia da universidade".
Os dirigentes universitários mimetizam o verdadeiro poder. O Estado
brasileiro embaraça o Executivo hegemônico com o Judiciário e o
Legislativo. Nos campi o reitor paira acima do conselho. Mas para
garantir seu controle existem os grupos de sustentação nomeados depois
das eleições. Uma visita às universidades em dias de urna mostra sua
igualdade com os municípios brasileiros: promessas e falta de prudência.
Para um dossiê sobre esse ponto se leia o excelente livro organizado
por W. Rampinelli O Preço do Voto: os Bastidores de uma Eleição para
Reitor (2008).
Os escolhidos esbanjam verbas, vão aos ministros, pedem favores a
oligarcas do Congresso, apoiam candidatos à reeleição presidencial.
Representantes do poder nos campi, eles apoiam seus favoritos como se
fossem donatários do espaço acadêmico. Ignoram que são reitores de toda a
comunidade.
I. Kant adverte que o administrador, ao defender suas ideias, deve usar a
razão comum, seguir os mesmos direitos e deveres dos outros
funcionários públicos. Os reitores federais movem os cargos que não lhes
pertencem e incensam presidentes com manifestos ilegítimos. Outros
cerebrinos bajulam mandatários sem possuir o cargo de reitor. Eles
chegam à ignomínia ao explorar o preconceito contra a religião dos
candidatos não palacianos. Eles se reúnem com a postulante oficial, mas
não parasitam a academia.
Em outubro de 2004, Luiz Inácio da Silva recebeu o apoio dos 55 reitores
federais. A presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior, Ana Lúcia Gazzola, confessou
que o referido beija-mão foi o segundo entre reitores e Presidência. Em
agosto de 2003, "pela primeira vez tivemos uma reunião de caráter
político entre o nosso sistema e o presidente da República" (MEC, ver
http://www.universia.com.br). Difícil optar pelo mais lamentável, se a
ilegalidade no apoio a um candidato poderoso ou a subserviência no uso
sem peias de cargos públicos para fins eleitoreiros.
Para o pleito de 2014 é mantida prática idêntica. Reitores de 54
universidades federais foram ao Alvorada para exibir uma carta de apoio a
Dilma Rousseff. A reitora Margareth Diniz foi ditirâmbica: "Ela (Dilma)
recebeu a carta com muita alegria, porque sendo uma classe de reitores,
que lida com a educação superior, considerando a importância que é
tratar da educação superior no País, receber um manifesto de reitores é
algo que ela achou muito importante". Pobre língua brasileira! Além do
psitacismo, o alarido conceitual: reitores nunca formaram uma "classe".
Além da bajulação e do peditório, os dirigentes repetem slogans como se
fossem verdades científicas: segundo a magnífica, Dilma defende verbas
do pré-sal para a educação. "A lei dos royalties prevê a destinação de
75% dos recursos oriundos da exploração do pré-sal para a educação e
25%, para a saúde". João Santana forja os chavões da presidente e hoje
dita o programa universitário. A continuar o servilismo reitoral, logo
teremos nova carta em louvor de Marina Silva ou de outro inquilino
palaciano.
Palavras têm sentido. Os magníficos exibem heteronomia, jamais autonomia
acadêmica. E onde estão os movimentos docentes, mudos diante da
ilegalidade antidemocrática? E o Ministério Público nada tem a dizer?
Fariam bem os reitores se lessem Plutarco, Como Distinguir o Amigo do
Bajulador, e o padre Vieira no sermão aos peixes. Lá encontrariam o nome
perfeito de sua atividade: eles servem à higiene dos poderosos, os
peixes grandes, como "pegadores". E na triste sina são honoris causa por
experiência, pois agem assim desde a ditadura Vargas e o regime de
1964.
Pobre Brasil.
*Roberto Romano é professor da Unicamp e autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspect
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