A solidão da moral
Nada é mais assustador que uma consciência
atormentada pelas suas crenças e atitudes pretéritas. O arrependimento,
diz Spinoza “é a tristeza que acompanha a ideia de alguma ação que
acreditamos ter sido feita por um livre decreto da mente” (Ética, IV).
Segundo o filósofo, não surpreende que a tristeza resulte de atos
“perversos” (pravi) e a alegria venha com os retos (recti). “Na verdade,
isso depende, sobretudo, da educação (…) foram os pais que, ao
desaprovar os primeiros e exaltar os segundos, acabam por fazer com que
as comoções da tristeza fossem associadas a uns e as de alegria aos
outros. O costume e a religião não são os mesmos para todos, o que para
uns é sagrado, para outros é profano, e o que para uns é respeitoso,
para outros é desrespeitoso. Dependendo de como cada um foi educado,
arrepende-se de uma ação ou gloria-se por tê-la praticado”. Logo após
essa lição de pedagogia, Spinoza discorre sobre a torpe arrogância, a
“soberba que consiste em fazer de si mesmo, por amor próprio, uma
estimativa acima da justa”.
Indivíduos ou grupos que assumiram certas doutrinas e se apossaram de
postos dirigentes no Estado, na Igreja, nas associações civis, não raro
são dominados pela soberba. Educados com a falsa ideia da própria
excelência, exigem lacaios, não amigos ou concidadãos, não admitem
críticas nem réplicas, tendem a se confundir com o divino. A soberba,
marca dos piores ditadores, dobra espinhas e mata quem ousa discordar do
poderoso. O erotismo do mando, como toda paixão, ignora limites
religiosos ou morais. Ditaduras, não raro, são estupros consentidos de
coletividades. A pessoa que as auxilia guarda a soberba, como se tivesse
a razão no bolso, assassina corpos e almas acreditando agir livremente,
quando na verdade é dirigida pelos mais torpes apetites. Escravos
espalham servidão. Há um artigo meu sobre o tema, que ouso indicar aqui:
“Os laços do orgulho, reflexões sobre a política e o mal” Revista
Unimontes Científica” (clique aqui para ver).
Quando o regime a que serviram ou que os serviu cai por terra, os
arrependidos acusam os companheiros de tirania e atenuam a própria
culpa. É preciso conhecer os pressupostos de uma atitude moral, quando a
sociedade sucumbe sob tiranias. A moralidade efetiva não mede seus
valores pelos números de aderentes. Nela, a decisão vem do juízo e da
vontade livres. Por tal motivo, o sujeito moral conhece a solidão na
maior parte do tempo.
Assim, imaginemos um ser verdadeiramente moral durante o regime
nazista ou sob Stalin. A maioria da população ou adere às palavras de
ordem governamentais, ou por elas é conduzido pelo terror ou propaganda.
Defender um setor perseguido pelo Estado é se colocar em minoria, de
imediato. Recordemos os seres humanos cuja presença social era definida
como “ariana”. Eles tinham duas possibilidades de escolha. Ou aderiam
aos milhões que exigiam a morte dos judeus e demais grupos étnicos, ou
se levantavam contra. Conhecemos poucos nomes que ousaram seguir tal
senda. Como Dietrich Bonhoeffer, um líder luterano de olhos azuis, foi
levado à morte nos campos de concentração. Ele foi dito, pela imprensa
oficial da Alemanha, como “traidor”. Também na URSS tivemos vários casos
de indivíduos que poderiam lucrar com o regime, em termos políticos ou
econômicos. Mas escolheram denunciar os abusos do poder. E terminaram
seus dias na miséria, no exílio, ou no Gulag.
A moral rigorosa não recolhe aplausos, porque ela exige coragem acima
do costumeiro. É por tal motivo que os grandes mestres da ética
aconselham quem deseja seguir a via reta na existência. O primeiro ponto
é bem escolher os amigos, fugir dos aduladores. As massas humanas
tendem a reunir técnicos da lisonja, fugindo da honesta posição reta.
Platão, Aristóteles, Plutarco (sobretudo no fantástico “De como
distinguir o amigo do adulador”) mostram que a prática da virtude não
carreia aplausos, mas apupos dos governantes e governados. Assim, um
eficaz método para avaliar a própria moral, encontra-se na seguinte
pergunta : tal ato seria louvado pelas multidões? Caso positivo, a
pessoa já tem um critério para saber que não está no bom caminho. Nada
mais útil, na tarefa de pesar valores éticos, do que seguir o ensino dos
cínicos, a seita filosófica mais rigorosa em termos morais do
Ocidente, caluniada por seus inimigos conscientes ou ignaros. Refiro-me
ao critério usado por Diógenes: “quando sou aplaudido pelos homens,
tenho certeza de que falei algo tolo”.
A moral e a correta ética exigem, de quem as pratica, a coragem da
solidão. E poucos estão dispostos a pagar o preço devido. Afinal, como
dizia um intelectual que aderiu ao golpe de Estado de 1964, “é preciso
sobreviver”. Não por acaso o grande Elias Canetti apresentou a sede de
sobrevivência como matéria distintiva dos poderosos. Para guardar o
poder, eles estão dispostos a quebrar todos os vínculos trazidos pelos
valores. Spinoza diz que o direito natural é aquele que permite ao peixe
grande devorar os pequenos. Democrata, fica bem claro em seu Tratado
Político, que o único modo de controlar tal direito é os peixes pequenos
se unirem, gerando uma força maior do que a movida pelo peixe grande.
Mas para chegar a tal força é preciso a amizade entre os indivíduos,
outro elemento raríssimo, tão difícil de ser achado quanto a coragem da
solidão. Pensemos sobre tais paradoxos, vitais em nossos tempos movidos
pelo marketing e pressões econômicas ou políticas das mais diversas
matizes.
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