01 Fevereiro 2018
Professor de direito constitucional da USP faz duras críticas ao STF.
Afirma que a corte, numa espiral de autodegradação, passou de poder
moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra
conflitos. Explicações para isso se encontram na atuação dos ministros e
no desarranjo de ritos e procedimentos.
O artigo é de Conrado Hübner Mendes,
doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência
política pela USP, é professor de direito constitucional da USP e
embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, publicado por Folha de S. Paulo, 28-01-2018.
Eis o artigo.
O Supremo Tribunal Federal é protagonista de uma democracia
em desencanto. Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da
política brasileira passam por ali. A corte está em dívida com muitas
perguntas, novas e velhas, e vale lembrar algumas delas antes que os
tribunais voltem do descanso anual nos próximos dias.
Se Delcídio do Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso?
Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido o mesmo na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro? Se o STF
autorizou a prisão após condenação em segunda instância, por que
ministros continuam a conceder habeas corpus contra a orientação do
plenário, como se o precedente não existisse? Se a restrição ao foro
privilegiado já tem oito votos favoráveis, pode um ministro pedir vista
sob alegação de que o Congresso se manifestará a respeito? Pode ignorar o
prazo para devolução do processo?
Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um
magistrado, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor (por meio de
pedidos de vista, de liminares engavetadas etc.)?
Se o auxílio-moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais
de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro impedir que o plenário se
manifestasse até aqui? Se a criminalização do porte de drogas responde
por grande parte do encarceramento em massa brasileiro, como pode um
pedido de vista interromper, por anos, um caso que atenuaria o colapso
humanitário das prisões?
Se um ministro afirma que Ricardo Lewandowski "não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional", que Luís Roberto Barroso tem moral "muito baixinha", que Marco Aurélio é "velhaco", que Luiz Fux inventou o "AI-5 do Judiciário", que Rodrigo Janot é "delinquente" e que Deltan Dallagnol é "cretino absoluto", e além disso tem amigos espalhados entre o empresariado e a classe política julgados pelo STF, como expressará isenção nesses casos?
Se a Lei Orgânica da Magistratura proíbe juízes de se manifestarem sobre casos da pauta, como podem ministros antecipar posições a todo momento nos jornais?
A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que
importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse.
O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.
Choque de realidade
A separação de Poderes conferiu lugar peculiar ao Supremo. O Parlamento é eleito, o STF
não. O parlamentar pode ser cobrado e punido por seus eleitores, os
ministros do STF não. O presidente da República é eleito e costuma ser o
primeiro alvo das ruas, os membros do STF estão longe disso. A corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.
É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que
justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de
controle?
Há boas respostas teóricas para esse arranjo. Para alguns, a
integridade constitucional depende de um órgão capaz de pairar acima dos
conflitos partidários, praticar a imparcialidade e assumir o papel de poder moderador.
Para outros, mais do que apenas moderar, caberia ao tribunal inspirar
respeito por seus argumentos jurídicos, que tecem padrões decisórios e
constroem jurisprudência.
A autoimagem construída pelo STF foi ainda mais
longe. Apresentou-se como a última trincheira dos cidadãos, incumbido da
missão de salvar a democracia de si mesma, domesticar maiorias, amparar
e incluir minorias.
No ápice da automistificação, o ministro Barroso imaginou a corte como "vanguarda iluminista que empurre a história" na direção do progresso moral e civilizatório (Vinicius Mota descreveu a ideia no dia 14/1).
A crise política
e a erosão de direitos dos últimos anos trouxeram ao Supremo a
oportunidade (e o ônus) de atender a suas promessas. A resposta, porém,
foi um choque de realidade.
O desarranjo procedimental cobrou seu preço. Despreparado para a
magnitude do desafio, o tribunal reagiu da forma lotérica e volátil de
sempre. A prática do STF ridiculariza aquele autorretrato heroico, frustra as mais modestas expectativas e corrói sua pretensão de legitimidade.
Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se
partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do
direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos.
Desse caminho é difícil voltar.
Atado a uma espiral de autodegradação, o poder moderador converteu-se
em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. O
ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário. Não foi vítima da
conjuntura, mas da própria inépcia. A vanguarda iluminista na aspiração
descobriu-se vanguarda ilusionista na ação (e na inação).
Ilusionismo
Como opera esse poder tensionador? Para decifrar a vanguarda
ilusionista, precisamos olhar para além do resultado de cada decisão (se
prende ou solta, se anula ou valida). Deve-se prestar mais atenção ao
procedimento que gerou tal resultado e ao argumento que o justifica. É
no procedimento e no argumento que mora o ilusionismo.
A síntese do desgoverno procedimental do STF
está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem;
quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu
juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e
obstrução ativa no segundo.
A contradição entre as duas regras é só aparente, pois a arte do
ilusionismo permite sua coexistência. Manda a lógica do "cada um por
si", nas palavras de editorial da Folha (24/12).
O argumento constitucional do Supremo já não vale o
quanto pesa e tornou-se embrulho opaco para escolhas de ocasião. Basta
olhar com lupa as incoerências na fundamentação de casos juridicamente
semelhantes que recebem decisão diversa.
A expressão "jurisprudência do STF" sobrevive como licença poética,
pois perdeu capacidade de descrever ou nortear a prática decisória do
tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo retórica.
No âmbito da esfera pública,
o ilusionismo serve para desviar a atenção, responder o que não se
perguntou, jogar fumaça na controvérsia e confundir o interlocutor.
O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, é praticante rotineiro dessa técnica. Publicou nesta Folha
(17/1) artigo em defesa do habeas corpus (HC). Invoca o direito
abstrato à liberdade, do qual ninguém discordará, e se desvia das
críticas contra suas decisões recentes.
As críticas às quais Mendes reage nunca miraram o HC
em si, mas as evidências de suspeição para julgar, de forma
monocrática, pessoas do seu círculo pessoal e político. O ministro se
apresenta como defensor da liberdade, mas suas decisões passam a
impressão de ser defensor dos amigos. Para dissipar essa impressão,
basta que se declare suspeito —o que se recusa a fazer.
Manha ilusionista: discursar sobre o ideal revolucionário da
liberdade e silenciar sobre a liberdade concedida a amigos indiciados.
O ilusionismo, nas suas faces procedimental e argumentativa, retira das decisões do STF o selo de integridade institucional.
Por essa razão, tem sido pouco útil aos advogados e analistas da
corte perguntar se o texto da Constituição é lido de modo apropriado, se
nossas categorias de análise dão conta da tarefa interpretativa e se o
tribunal pratica ativismo ou deferência —questões nobres do debate
constitucional.
Mais importante é conhecer a biografia do ministro e sua capacidade
de atender a ética da imparcialidade, da responsabilidade e da
colegialidade.
A ambição do Estado de Direito é produzir um
"governo das leis, não dos homens". Soa como slogan a serviço da
distorção ideológica, mas o sentido da expressão não tem nada de
esotérico.
A mensagem é mais modesta: não quer dizer que o aparato institucional
de interpretação e aplicação das leis deva ser composto por sujeitos
sobre-humanos, imunes a afetos e interesses, mas apenas que esses
sujeitos devem ter compromisso ético para decidir com maior isenção e
ponderação analítica, além de gozar de garantias contra a pressão da
barganha política. Não requer muito mais que isso.
A prática do STF pede adaptação daquela máxima: a
interpretação constitucional deve estar submetida ao "governo do
Supremo, não dos ministros". O tribunal, porém, tem sido governado pelo
voluntarismo incontinente de seus membros. É muito poder individual de
fato (e de legalidade duvidosa) para ser usado com tanta extravagância.
Como disse José Sarney, anos atrás, "um dos maiores desserviços ao país é desprestigiar o Supremo Tribunal Federal". Esse desserviço ao STF vem sendo prestado pelos seus próprios membros. Isso traz consequências.
Arbítrio
O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20 horas ou em 20 anos (como publicou Ivar Hartmann,
neste mesmo caderno, em 28/5 de 2017). A duração de um caso não guarda
nenhuma relação com sua complexidade jurídica, sua importância política
ou o excesso de trabalho do tribunal —alegações usuais de ministros.
É fruto, sim, da idiossincrasia e do instinto de cada julgador. E, às
vezes, de negociações nos bastidores palacianos e corporativos.
Ninguém melhor que o ex-deputado Eduardo Cunha para iluminar o problema. Quando afastado de seu mandato pelo STF
em 2016, ironizou com a pergunta cínica que muitos se fizeram: "Se
havia urgência, por que levou seis meses?" Em outras palavras: por que
agora? Uma ótima questão, que poderia ser aplicada a muitos casos (por
exemplo, o pacote natalino de liminares, todas monocráticas e abruptas,
tomadas no apagar das luzes de 2017, antes de o Judiciário sair de
férias).
Lewandowski, presidente da corte em 2016,
desconversou: "O tempo do Judiciário não é o tempo da política e nem é o
tempo da mídia. Temos ritos, procedimentos e prazos que devemos
observar".
A resposta é mais um artefato ilusionista. Quando diz que o tempo do
Judiciário não é o tempo da política nem o da mídia, recorre a um árido
lugar-comum para se esquivar do que se queria saber. A resposta também
ignora a inteligência empírica que vem sendo construída ao longo dos
último anos sobre o STF por um crescente grupo de estudiosos da corte.
A definição arbitrária do seu tempo decisório é mais uma faculdade
que o Supremo conferiu a si mesmo e não explicou a ninguém, um dos
poderes mais antidemocráticos que um tribunal pode ter.
Insegurança
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e
previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de
conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das
decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no
futuro.
Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos
casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações
interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência
tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da
segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo
razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
O STF, no entanto, não só tirou a credibilidade da
noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber
quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros
sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, "ritos, procedimentos e prazos", como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos,
prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um
espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores
interessados possam mobilizar energia e recursos para participar.
Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja
tomada em tempo publicamente justificado.
Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação
tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de
casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o
tempo não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina,
indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do
procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se
consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de
ministros.
Perda do respeito
Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que
"cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem". Pelo menos parte
do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia.
A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a
detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda
tão obscura quanto o Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo.
Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para,
sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos
irreversíveis. A crônica constitucional brasileira vem captando essa
lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua
capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.
Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos
ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e
nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de
jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados
(um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria
oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com
voto de colega etc.).
Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e
deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de
ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo.
Maquiavel sugeriu, em "O Príncipe",
que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for
respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais
nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é "inconstante,
leviano, irresoluto".
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não
promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem
na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional.
Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a
tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo
status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.
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