Efeitos colaterais da Justiça veloz
Outros ex-presidentes ganharam favores iguais ou maiores que os de Lula. Algum foi preso?
*Eugênio Bucci,
O Estado de S.Paulo
01 Fevereiro 2018 | 03h12
01 Fevereiro 2018 | 03h12
“Certamente o
impeachment da Dilma foi votado por gente de má qualidade, sempre com as
honrosas exceções, mas por gente de má categoria como parlamentar. E
tendo em vista um interesse principal: a crença de que a (Operação) Lava Jato iria morrer” (Boris Fausto, em entrevista a Guilherme Azevedo, do UOL, em 27 de janeiro de 2018).
“(Com a confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4)
cria-se um vácuo no processo eleitoral que pode até comprometer a
legitimidade do pleito. Fora Lula, agora sub judice, não há até o
momento nenhuma força política capaz de arrebanhar o público” (Roberto
Romano, em entrevista ao mesmo Guilherme Azevedo, do UOL, em 24 de
janeiro de 2018).
O historiador Boris Fausto e o filósofo Roberto Romano não são
petistas nem lulistas. Não obstante, ambos, a exemplo de outros
intelectuais que conseguem manter um mínimo de equilíbrio analítico e
não embarcaram em fanfarras palanqueiras ou idolatrias ridículas,
identificam na cena política motivos para apreensão. Boris Fausto, na
mesma entrevista, diz que “não vivemos numa democracia plena nem
consolidada”. Roberto Romano, referindo-se ao julgamento de Lula pelo
TRF-4 em 24 de janeiro, considerou a decisão “impensada”, por não ter
abarcado “a complexidade da situação política que vivemos” – embora ele
seja o primeiro a dizer que não se poderia exigir dos desembargadores
uma “decisão populista”.
O quadro é difícil. A condenação de Lula não constitui meramente
uma vitória da ética contra a corrupção, como alguns alardeiam em tom
festivo. Quem tem compromisso com a democracia e com a ética, mesmo que
considere justa ou legalmente sustentada a pena imposta ao
ex-presidente, não deixa de levar em conta a vulnerabilidade da
situação. Sem exagero algum, não é de descartar que a legitimidade das
próximas eleições venha a ser posta em questão. (A propósito, sem Lula
na cédula, o Datafolha apontou, em pesquisa publicada ontem, que o
índice de votos em branco e nulos salta para 31%, o maior já observado
em toda a história do instituto.)
O que vem agora? As alegadas inconsistências ou vícios formais,
processuais (e mesmo materiais, em menor grau), do veredicto serão
discutidos nas devidas instâncias da Justiça e não cabe a mim, reles
bacharel, emitir palpites que vão além da minha competência
profissional. O que me cabe – na condição de pesquisador da comunicação
social, particularmente interessado na qualidade dos debates próprios da
esfera pública – é anotar que ganha corpo a hipótese de que o abismo
entre o Poder Judiciário e o povo se esteja aprofundando. Pesquisas
empíricas terão de medir melhor esse desgaste, esse esgarçamento da
imagem da Justiça no episódio específico, mas a hipótese precisa ser
levada a sério desde já.
É possível considerar que uma desconfiança mais densa de setores
da sociedade em relação à Justiça teve seu marco inicial no impeachment
de Dilma Rousseff em 2016 e se agravou agora, com o julgamento no TRF-4.
A razão da desconfiança é fácil de vislumbrar: o crime pelo qual a
ex-presidente foi cassada nunca foi claro para os comuns do povo, as
tais “pedaladas fiscais” consistiam em filigranas contábeis
ultracomplexas, diante das quais a perda do cargo parecia
desmesuradamente dura. Do outro lado, pesam sobre Michel Temer suspeitas
muito mais concretas – até mesmo na própria Polícia Federal, que vem de
interrogá-lo sobre irregularidades envolvendo portos e propinas – e
nada, absolutamente nada acontece com ele. Desse contraste, a impressão
de que há dois pesos e duas medidas para julgar presidentes da República
resulta mais forte – e essa pressão, note bem o leitor, não é um
problema do PT, do MDB, desse ou daquele candidato, mas um problema da
saúde institucional da democracia brasileira, pois tange a credibilidade
e a legitimidade do Estado de Direit
Um efeito análogo se deu agora com o TRF-4. Embora o artigo 317
do Código Penal, invocado na sentença de primeira instância, contenha,
na sua tipificação penal, a aceitação de “promessa” de “vantagem
indevida”, é muito difícil para o leigo entender de que modo essa
“promessa”, no caso do famigerado triplex, se traduziu na vida prática.
Lula não é dono do apartamento. Ninguém de sua família é. Nenhum deles
usou o imóvel, nunca. Nesse contexto, o senso comum não consegue
compreender por que uma pena tão pesada – que inclui prisão e perda do
direito de se candidatar – para um crime que jamais se consumou no plano
dos fatos.
É verdade que, com o sítio de Atibaia, a coisa é diferente. Naquela propriedade campestre, naquela dacha
tropical, as benfeitorias foram comprovadamente realizadas por
empreiteiras envolvidas até o pescoço com a corrupção da Petrobrás, e
ali, naquele imóvel, Lula se instalou confortavelmente, mesmo sem ter a
escritura em seu nome. Acontece que no dia 24 de janeiro Lula foi
julgado não pelo sítio de Atibaia, mas pelo caso do triplex, e, quanto
ao caso do triplex, não fica óbvia a razão de um castigo tão severo para
um delito tão abstrato, tão restrito ao campo das intenções.
Outros ex-presidentes ganharam favores iguais ou maiores do que
Lula (quase) ganhou no caso do triplex de veraneio (não estamos tratando
aqui de Atibaia), ao que o povo se pergunta: algum desses
ex-presidentes foi parar na cadeia? O Judiciário deve, sim, aplicar o
rigor da lei, mas para todos. Sem isso, e sem que isso seja claríssimo, a
desconfiança de que há dois pesos e duas medidas se acentua – e os que
queriam votar em Lula se sentirão tungados em seus direitos de
eleitores.
Por fim, registre-se que o Judiciário, no caso do triplex, foi
especialmente ágil. O Brasil é instado a inverter o velho ditado e
passar a dizer que “a Justiça se apressa, mas não falha”. Não falha
mesmo? Se se alastrar a impressão de que a toga tem um lado, o que será
posto em risco são pilares mais essenciais do que a candidatura de um ou
de outro.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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