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sábado, 14 de outubro de 2017

A adoração ao palavrório, Roberto Romano


  São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
A adoração ao palavrório
ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"É admirável ver o quanto, em todas as nossas questões políticas, sempre tropeçamos na teologia". Esta frase é de Proudhon ("Confissões de um Revolucionário"). Jacques Rancière não a cita no presente livro. É pena. Tal enunciado poderia recolher o sumo de suas análises em "Políticas da Escrita". Este livro apresenta uma sólida reflexão sobre os nexos entre o discurso filosófico, a poética e a religiosidade. Isto só pode surpreender quem ignora o caminho dos companheiros de Althusser, e do próprio, desde os anos 60.

O fim do regime nazista tinha revigorado o ateísmo nas mentes filosóficas francesas. Textos importantes da época recusavam o irracionalismo, os mitos, as religiões. Numa reedição do século 18, eles desafiaram os ideários sobre o "sentido" da vida. O existencialismo favorecera a liberdade e a inteligência humanas contra as variantes modernas da Providência divina. Dessacralização com rupturas importantes no campo ético, moral, artístico, político e ideológico. Os movimentos de 1968 ainda traziam esta marca humanística, mas já se anunciava a vingança dos deuses, com o misticismo hoje triunfante em vastas camadas.

Analisando as matrizes fascistas, historiadores da cultura descreveram o nexo entre o campo religioso e o político, pesquisando as sementes dos campos de concentração. Entre outros teóricos está Ernst Kantorowicks. O público conhece o seu livro mais importante, "Os Dois Corpos do Rei". Nele, se descreve o transporte das imagens teológicas para a política. Metáforas produzidas para significar os mistérios cristãos -entre outros, o corpo místico- foram empregadas na justificativa do moderno Estado nascente. Estes itens também são discutidos na coletânea "La Sovranità dell'Artista. Mito e Immagine tra Medioevo e Rinascimento". (Veneza, Saggi Marsilio, 1995).

A problemática teológica é importante para se acompanhar os delineamentos da política e da escrita. Mas não se deve esquecer: "Rei iletrado é asno coroado". O governante filósofo, ou poeta, é um ideal com origens platônicas que regeu o imaginário moderno até o século 18. Foi necessária a relação tormentosa dos "philosophes" com os déspotas "esclarecidos", para corroer este alvo. Basta lembrar as irônicas frases de Voltaire sobre as "porresias" de Frederico, o rei da Prússia, para perceber o abismo que se abriu entre escritores e poderosos. A emulação entre donos do mando e profissionais do texto só foi interrompida nos totalitarismos: deuses, os tiranos foram agraciados com os títulos de poetas e artistas supremos, dando a regra e a forma certa da "boa" escrita.

Hitler, entre outros, assumiu, numa longa tradição ocidental, a figura do "deus na terra", "artista supremo". Os resultados são conhecidos. O romantismo exacerbou esta força fantástica de tudo criar a partir do nada. Paul Benichou, na França, já apresentou bons trabalhos sobre as fantasmagorias românticas do poder e da escrita. Dos seus livros, citemos "A Sagração do Escritor" e "O Tempo dos Profetas". Neles, ressalta a ambiguidade entre "poesia" e "criação". No étimo grego, "fazer" não implica em criar algo a partir do nada. Matérias e formas são pressupostas, sempre. Apenas na cultura cristã e judaica tem sentido este modo de pensar.

Rancière pertenceu a um movimento que procurou romper com os "últimos resquícios" do criacionismo na filosofia. Sob o patrocínio de Espinosa, os companheiros de Althusser buscaram novas técnicas para "ler" os conceitos, absolutamente separados, na sua opinião, das noções religiosas. No pólo oposto ao de Espinosa situou-se Ludwig Feuerbach, que não seria rompido com o religioso.

Espalhadas ao longo dos textos de todo o grupo, as teses sobre os dois tipos de escrita e leitura, nas vertentes espinosistas e feuerbachianas, encontraram sua fórmula no "Prefácio" de Jean-Pierre Osier a "A Essência do Cristianismo". Ali, as águas da hermenêutica se distanciam das conceituações científicas, com sérios resultados para a visão do poder. De um lado, os conceitos. De outro, o mundo imaginário da religião.

Nas palavras de Osier: "Todos somos ou herdeiros de Espinosa ou herdeiros de Feuerbach: se nos deixamos guiar pelas miragens prestigiosas da hermenêutica, ou se preferimos o rigor austero do processo teórico". As consequências deste entusiasmo "científico" são o vazio e as repetições corâmicas do "Capital". As análises sobre a poesia, as artes plásticas, o mundo inteiro escondido sob a rubrica apaziguadora da "superestrutura", patinaram em esquemas apriorísticos. Era preciso buscar alimento na própria cultura, da poesia às frases teológicas, para pensar o político.

Tal é a tarefa empreendida por Rancière. Desde o primeiro ensaio, "A Literatura Impensável", nota-se a problemática teológica da escrita, com as sequências jurídicas previsíveis, e já analisadas por Kantorowicks: o nominalismo na definição de "literatura", a condição de Homero "pai e filho de seu discurso" (em "Os Dois Corpos do Rei" é Maria, "filha de seu Filho").

No segundo texto, "Teologias do Romance", de longe o mais bem-sucedido da coletânea, Rancière indaga sobre os nexos entre corpo e escrita, sobretudo no plano sagrado: "É sempre preciso um corpo para comprovar a Escritura. É sempre preciso a Escritura para provar que o corpo em questão é aquele corpo mesmo". Fascinam as passagens sobre a secularização das imagens teológicas nas escritas poéticas.

O autor, não desprezando Althusser, passa a uma atitude mais cheia de matizes diante de Hegel. A teologia é mais perigosa do que supunham os estruturalistas. No dizer de Rancière: Rimbaud "leva a sério o discurso religioso do século... não se contenta com nenhum novo cristianismo barato nem com nenhuma confortável teoria do Mal...".

Para assumir a temática literária e política, deve-se recorrer à norma hegeliana de "julgar a coisa na sua própria medida". Isto é heresia para um althusserianismo estrito. Rancière mostra-se livre diante dos enunciados metodológicos -o capítulo sobre Althusser é exemplo de rigor e respeito ético- discutindo temas antigos com luz nova (o trabalho sobre Rimbaud é dos mais sugestivos, desde os considerandos de Etiemble sobre o poeta e seu mito).

A coletânea acaba no seu começo real: "Os Enunciados do Fim e do Nada". Os dois termos resumem a teologia e a política do Ocidente. Mesmo hoje, a criação "ex nihilo" serve para engodo das massas. São fundamentais as achegas sobre o silêncio e o palavrório, já postas em livros anteriores de Rancière. Garrulice e adulação surgem na propaganda que invade as fronteiras da escrita literária com a demagogia. De Plutarco ao século 18, o pensamento lutou contra a loquacidade que impede o silêncio e retira do poético um de seus materiais primários.

Foi reeditada, na França, "A Arte de se Calar", do padre Dinouart. A sua tradução para nossa língua é urgente. Em nossa terra, o culto do palavrório faz milagres políticos e sociais. A Editora 34 merece parabéns pela coragem de publicar textos que despertam, como este, os neurônios do leitor, sem massageá-los para que adormeçam.

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