paula cesarino costa
ombudsman
Está na Folha desde 1987. Foi Secretária de
Redação e editora de Política, Negócios e Especiais. Chefiou a Sucursal
do Rio até janeiro de 2016. Escreve aos domingos.
Jornalismo de ouvidos moucos
O corpo no chão do shopping tornou-se trágico sinal de alerta.
A aceitação passiva do discurso policial, o açodamento na busca de
culpados por desvios, a imperícia nas técnicas elementares de reportagem
e a irresponsabilidade de agentes públicos contribuíram para a morte de
cidadão privado do direito à presunção da inocência.
Por mais incisiva e rigorosa que seja a autocrítica da cobertura da imprensa na acusação e morte do reitor
da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de
Olivo, já se terá mostrado tardia, insuficiente e assustadora do viés
punitivo de algumas das principais instituições sociais do país.
É preciso reconstituir o episódio. No caso da Folha, o jornal mantém à disposição do leitor a seguinte notícia
: "Reitor da UFSC é preso em operação que apura desvio de verba em
cursos". A abertura do texto diz: "A Polícia Federal prendeu o reitor da
UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, e outras seis pessoas ligadas à
instituição nesta quinta-feira (14/09). Segundo a PF, o grupo é suspeito
de desviar recursos que deveriam ser investidos em programas de
Educação a Distância."
Só no parágrafo seguinte esclarece que o reitor é, na realidade, suspeito de tentar barrar investigações.
A pedido de delegada da Polícia Federal que preside o inquérito, uma juíza que atuou em casos da Operação Lava Jato determinou a prisão de Cancellier e a sua proibição de entrar no campus. A operação foi batizada de "Ouvidos Moucos".
Em depoimento, o reitor negou que tentasse barrar a apuração. Ficou
preso um dia. Em artigo, escreveu que se sentia perplexo e amedrontado,
submetido a humilhação e vexame sem precedentes.
Menos de 20 dias depois, Cancellier se atirou do alto da escada rolante
de shopping, em Florianópolis. No bolso, um bilhete: "A minha morte foi
decretada quando fui banido da universidade!!!"
Em sua versão eletrônica, a reportagem de setembro tem hoje um sinal de
Erramos, produzido 23 dias depois de sua publicação: "A reportagem
deixou de informar que o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de
Olivo, era investigado por suspeita de interferir na apuração sobre o
desvio de recursos na universidade, e não pelo desvio em si".
A admissão do erro foi direta, mas insuficiente e demorada.
Em 7 de outubro, o jornal publicou reportagem
que afirmava que, em carta enviada em julho à Polícia Federal, o
corregedor da UFSC disse que vinha recebendo "os mais diversos tipos de
pressão por não aceitar ser subserviente ao gabinete do reitor" da
instituição. O advogado do reitor contrapunha que Cancellier agira
dentro da lei e buscava informar a Capes sobre o episódio.
O editor do núcleo de Cidades, Eduardo Scolese, explicou que, sem
correspondente em Florianópolis, as informações da primeira reportagem
haviam sido apuradas por telefone e e-mail, sem contestação.
Não se trata aqui de discutir se o reitor estava de fato fazendo ouvidos
moucos aos pedidos da polícia ou tentando interferir na investigação. O
que interessa é refletir sobre a maneira como a mídia tem lidado com
operações policiais que buscam holofotes em investigações ainda em
andamento.
As reportagens de diferentes veículos eram quase iguais, feitas
exclusivamente com base em poucas e confusas informações divulgadas pela
Polícia Federal. Não identifiquei nenhum órgão de imprensa que tenha
levantado inconsistências ou ao menos tentado relativizar as acusações
apresentadas.
Esse comportamento não é exclusivo desse caso. Tem sido rotineiro diante de tantas investigações.
Questionei o secretário de Redação Vinicius Mota sobre a forma como o
jornal vem abordando investigações recentes: "A Folha se preocupa, como
está em seus documentos públicos, em não ser veículo involuntário de
injustiças contra pessoas ou empresas. Para isso se compromete com
protocolos como a necessidade de ouvir e destacar o outro lado e a
correção explícita de erros detectados, como foi feito nesse caso",
respondeu.
O ambiente punitivo nascido da espetacularização da ação policial e dos
procedimentos judiciais tem reflexos e responsabilidade da imprensa.
Jornais e jornalistas não podem aderir a ondas nem de condenação de
acusados nem de ataque aos investigadores. Precisam refletir sobre seu
trabalho, reavaliar as ferramentas de controle, insistir na busca do
relato jornalístico mais preciso e plural.
Certo comportamento de manada, em que um faz algo porque outro fez, deve ser vigiado e combatido.
Em alguns momentos, é preciso ter coragem para publicar. Em outros, a ousadia de não publicar.
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