Entrevista
Ideal fascista está sendo retomado, alerta filósofo
Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp
Glossário
Um velho espectro político volta a rondar o mundo ocidental, com
riscos inclusive ao Brasil. E seu nome é fascismo. O alerta é do
filósofo e professor de Ética e Ciência Política Roberto Romano, da
Unicamp. Ele vê na atualidade o renascer de uma preocupante onda de
interesse acadêmico por obras de intelectuais que ajudaram a construir a
base teórica dos Estados totalitários surgidos na Alemanha e na Itália
no período entre as duas Guerras Mundiais.
O ponto principal de
preocupação de Romano é o interesse renovado pela obra do jurista e
filósofo Carl Schmitt. Autor "maldito" durante muito tempo por defender a
ditadura como melhor forma de governo, o teórico alemão começa a ser
revisto em universidades. A intenção seria aproveitar algumas ideias
dele, jogando "a parte podre fora". Para Roberto Romano, porém, isso é
inviável.
Segundo ele, em boa parte dos casos, os defensores de
Schmitt surgem de "órfãos de Marx e do stalinismo" – ainda interessados
em derrotar o liberalismo.
Romano diz ainda que o temor com o
renascimento dessas ideias é ainda maior diante do clima de
irracionalismo criado por alguns fanáticos religiosos, da alta taxa de
desemprego, do enfraquecimento dos Estados nacionais e da violência
social do mundo atual. Ele afirma também que a visão do adversário
político como inimigo a ser derrotado, perigosamente inserida na
campanha presidencial brasileira deste ano, é uma amostra do risco do
renascimento de radicalismos totalitários no país.
O senhor afirma que há um renascimento do interesse pelo pensamento nazista no mundo. De onde vem esse interesse?
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Da
perda dos paradigmas éticos e políticos que nortearam os séculos 19 e
20. Com o enfraquecimento do liberalismo no início do século 20,
surgiram propostas de ordenamento da sociedade com maior ênfase nos
coletivos, e não tanto nos indivíduos e grupos. A sociologia romântica
acentuou os laços comunitários contra a vida urbana e industrial, com
seu "Estado máquina" [nazifascista]. Essa sociologia é um dos muitos
pontos que ajudaram a edificar, nos estratos mais reacionários, uma
ideia de coesão e disciplina vertical. E, nesta ideia, a vontade seria a
diretriz, não a racionalidade.
De modo geral, [György] Lukacs
[pensador marxista húngaro] descreveu a mudança de modelos, do racional
para o irracional. Ele mesmo, como discípulo de [Max] Weber [alemão,
considerado o pai da sociologia], havia procurado uma saída para a ordem
mecânica e burocrática do mundo moderno. Encontrou na revolução
proletária internacional. Na outra ala dos seguidores de Weber, na sua
direita, encontravam-se sociólogos e juristas reacionários como Carl
Schmitt. Schmitt, que também criticava as formas mecânicas e liberais,
serviu momentaneamente aos nazistas.
Nos anos 70 do século 20,
pensadores que, na esteira da crítica à União Soviética deixaram de
aceitar pressupostos do pensamento marxista, passaram a ver nos escritos
de Carl Schmitt um instrumento para continuar a recusa do liberalismo.
Órfãos de Marx e do stalinismo, eles acentuam a resistência às formas
liberais do Estado, sem no entanto acreditar mais numa "revolução
proletária internacional". Esses escritores ajudam a estabelecer o
relativismo, a corrosão dos padrões éticos e se colocam como geradores
do éter de ideias que paira sobre os movimentos nazifascistas. É preciso
lembrar que esses movimentos jamais deixaram de existir na Alemanha, na
Europa, no mundo. Os demais, não saídos do campo marxista, partilham os
mais variados matizes do pensamento conservador ou francamente
reacionário, não aceitam as luzes, a democracia, etc. Estes últimos são
os que mais gasolina injetam nos movimentos irracionalistas e fascistas
que hoje se apresentam na cena mundial.
Quais são os indícios desse novo interesse por esse pensamento?
Obras
de autores como Schmitt são editadas na Europa, na Ásia, nos EUA, na
América do Sul. Seminários, publicações jurídicas ou supostamente
filosóficas se espalham, sempre com o mote de, inicialmente, livrar
Schmitt e seus pares da "pecha" de nazistas. Teses universitárias
surgem, e tomam como dados inquestionáveis os dogmas do decisionismo
político e jurídico; as teses sobre a política como exercício da
inimizade; os "desvios" da modernidade no pensamento liberal e
socialista democrático, etc.
O que pregam esses intelectuais?
Pregam
o afastamento imediato das mediações jurídicas e políticas liberais e o
reforço do poder decisório dos líderes que movem o Executivo. Em suma,
pregam a ditadura do Poder Executivo nas matérias estratégicas dos
países, em detrimento do Legislativo e do Judiciário.
O senhor
afirma que os intelectuais que tentam fazer um "renascimento" da obra de
Carl Schmitt tentam separar o resto de sua obra, evitando a defesa da
ditadura, por exemplo. Isso é possível?
Não. Mesmo autores
irracionalistas escrevem textos que se caracterizam como um todo.
Impossível arrancar do decisionismo schmittiano a sua atribuição ao
chefe de Estado de poderes ditatoriais.
Qual o risco real de um grupo de intelectuais defenderem ideais como os que levaram à ditadura de Hitler na sociedade atual?
Embora
a conjuntura seja outra, e não exista mais a bipolaridade geopolítica
entre comunismo e nazifascismo, a crise que gerou naquela época os
movimentos totalitários se apresenta agora, em outra face, mas tão
corrosiva quanto nos anos 20 do século passado, no campo dos valores,
das instituições, das ciências. Massas sem emprego, desindustrialização
comandada e em proveito do capital financeiro, corrosão dos Estados,
violência social, preconceitos, fanatismos, irracionalismo religioso
sectário, todos elementos são férteis sementeiras de ódio. E permitem
pensar e agir na política como se ela fosse uma guerra civil, não como
uma instância de diálogo e cooperação entre cidadãos que discordam mas
buscam o bem coletivo. No fascismo, o "bom coletivo" é o meu. Os demais
devem ser derrotados e expulsos da cena pública e, mesmo, da vida.
Esse interesse existe também no Brasil? Onde?
Em
nossas universidades existem muitos pesquisadores e professores que
apresentam o pensamento de Schmitt como algo "neutro", que não traria
nenhum perigo para a ordem democrática. Sou contra escritores como
Yves-Charles Zarka, um mestre do pensamento filosófico e político
atualmente, que recomenda retirar os textos de Schmitt das prateleiras,
em livrarias e bibliotecas. Creio ser preciso ler aquele autor, e todos
os autores relevantes na história de nosso tempo. Mas uma coisa é ler;
outra é aceitar e espalhar as doutrinas genocidas.
Agora,
pensemos um pouco sobre a última campanha eleitoral para a Presidência –
com os insultos, os ataques de lado a lado, a redução dos concorrentes a
inimigos – para perceber os possíveis frutos da corrosão nos movimentos
políticos, se eles aceitarem a tese de que o outro deve ser aniquilado.
É bom recordar que, em nosso caso, todos os partidos que lideraram as
campanhas saíram da esquerda, sendo notával a ausência, nelas, de
elementos conservadores. Neste vácuo, a pregação fascista (intolerante,
racista a pretexto de ser regionalista) toma fôlego, à espera de seu
momento certo.
A tensão étnica e religiosa que ressurge na Europa, especialmente com o crescimento do Islã, tem a ver com esse pensamento?
Sim.
O Islã é visto como o inimigo, na ausência do comunismo. Mas o inimigo
pode ser qualquer religião, ideologia, partido político. A redução da
política à dimensão de uma guerra gera apenas a fratura no social e no
Estado.
Como combater esse tipo de ideal que vem ressurgindo?
A
única forma de combater eficazmente o fortalecimento fascista é viver a
democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Qualquer apelo ao
voluntarismo, à radicalização das próprias teses em detrimento da voz
alheia, da redução dos que pensam diferente ao estatuto de inimigo,
resultam em favor dos que consideram impossível o convívio democrático
respeitoso, nos parâmetros dos direitos humanos. A única fórmula para
combater o fascismo, em pensamento e atos, é viver e valorizar a
democracia.
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