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sábado, 28 de outubro de 2017

“O perigo real é o retorno do fascismo”. Entrevista com o filósofo Rob Riemen






“O perigo real é o retorno do fascismo”. Entrevista com o filósofo Rob Riemen

Revista ihu on-line


28 Outubro 2017

“No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome”, afirma Rob Riemen (Países Baixos, 1962), ensaísta, filósofo e diretor do prestigiado Nexus Institute.

Riemen esteve recentemente no México para apresentar a obra Para combatir esta era. Consideraciones urgentes sobre el fascismo y el humanismo (Taurus, 2017), uma poderosa alegação em favor do humanismo como antídoto contra o renascimento do fascismo. Concedeu-nos esta entrevista em uma manhã nublada, como nosso tempo.

A entrevista é de Laura Emilia Pacheco e Fernando García Ramírez, publicada por Letras Libres, 21-10-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Em seu primeiro livro, retoma o ideal democrático de Thomas Mann da “nobreza de espírito”. A nobreza de espírito, que é individual, pode se opor ao avanço do fascismo, um movimento da sociedade de massas?

Em 1947, enquanto trabalhava em Doutor Fausto, Mann escreveu sua conferência A filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência. Nela dizia que nenhuma medida técnica, instituição política, nem ideia de governo mundial conseguiria avançar para uma nova ordem social sem que antes se desenvolvesse um clima espiritual alternativo. Para Mann, a única forma de deter os avanços do fascismo era mediante a nobreza de espírito. Concordo.

O fascismo nasceu no interior da sociedade. A ignorância da sociedade de massas é também uma ignorância dos valores espirituais e morais. O fascismo surge neste contexto. Como afirmo em Para combatir esta era: apesar do progresso científico e tecnológico e do enorme acesso à informação, a força dominante de nossa sociedade é a estupidez organizada. Não se detém o fascismo através da economia, da tecnologia ou da ciência, nem sequer através das instituições – porque dependem das pessoas que as formam -, mas, sim, com uma mentalidade distinta. Mann, Camus, Sócrates e muitos outros pensadores advertiram que a “nobreza de espírito” é um dos ideais mais democráticos que existem. Para cultivá-la não é necessário dinheiro, ser tecnologicamente habituado ou ter um título universitário. A nobreza de espírito é uma mentalidade, é saber do que se trata a dignidade humana.
'Para combatir esta era'  é um chamado às elites políticas, econômicas, acadêmicas e intelectuais. Elites que, no entanto, parecem estar atravessando uma crise. Afirma que “geraram o vazio espiritual no qual o fascismo pode crescer outra vez”.

Enfrentamos dois problemas diferentes. O primeiro é o tipo de elites dominantes em nossa sociedade. As elites políticas, econômicas e midiáticas são as que têm mais poder e influência. São definidas e validadas pela quantidade, não pela qualidade. No mundo da cultura, não obstante, o conceito tem um significado distinto: a elite expressa a qualidade. Pensemos na União Soviética de Stalin: de um lado, estavam as elites do poder, os dirigentes do partido e, como contrapeso, uma minúscula elite moral representada por [Boris] Pasternak, [Osip] Mandelstam, [Anna] Akhmátova e, posteriormente, [Joseph] Brodsky. Uma das coisas que ocorre em nossa era do capitalismo rampante é que a única elite que reconhecemos é a do poder, que só expressa quantidade. O fato de as elites intelectuais e artísticas estarem marginalizadas reflete que os mais altos valores da sociedade atual são os do comércio e da tecnologia. É indispensável fazer um chamado às elites, incluindo a elite acadêmica: tem uma posição privilegiada que acarreta uma responsabilidade que não estão aceitando. Teriam que ser combatentes contra esta era.

Parte do fenômeno ao qual enfrentamos hoje foi retratado por Hermann Broch no terceiro volume de Os sonâmbulos, onde analisa o declive dos valores. Para Broch, não é que já não existam valores, mas, ao contrário, em consequência de já não existir um valor universal e transcendental, todos os valores se fragmentam e se tornam pequenos. À classe política só interessa o poder, à classe militar só interessa ter mais armas, aos médicos só interessa ter mais remédios, ao mundo tecnológico só interessa desenvolver mais tecnologia. Já não existe um sentido de responsabilidade geral. E não só isso: esses grupos não falam o mesmo idioma, não se comunicam, não existe um diálogo entre eles.
Em seu romance O homem sem qualidades, Robert Musil coloca esses grupos – generais, empresários, intelectuais e aristocratas – em conversa. Para Musil, eles se reúnem porque estão em busca da “grande ideia”. É uma bela metáfora que Musil retoma de Os demônios de Dostoievski. Perdemos a “grande ideia”. Em termos mais acadêmicos, diríamos que perdemos o grande relato. As consequências sociológicas dessa ausência são imensas. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas faziam parte de uma grande ideia única. Isso se acabou, por bons motivos, mas agora temos uma sociedade completamente fragmentada, individualizada, com uma classe governante que perdeu o sentido comum ou o bom sentido, e não temos um governo que queira velar pelo bem comum.

Contribuiu para a deflagração da Segunda Guerra Mundial o fato das elites ficarem em um processo de sonambulismo, adormecidas. Está ocorrendo novamente. Para Hermann Broch, o sonâmbulo se nega a ver a tormenta. No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome.

Ao que se deve que a sociedade negue a assumir que o fascismo está de volta?

Ao embaraço de políticos e acadêmicos. Ao menos é o que acontece no Ocidente. Adverti isto, há alguns anos, quando publiquei nos Países Baixos O eterno retorno do fascismo, o primeiro ensaio de Para combatir esta era. Recebi um tsunami de respostas negativas. Nos jornais, apareciam artigos enfurecidos, assinados por políticos, que diziam que eu deveria me sentir envergonhado. Os acadêmicos também se irritaram porque eu disse que na academia se dedicam a escrever notas de rodapé, ao invés de se envolver politicamente. Não me permitiram dizer que o deputado neerlandês Geert Wilders é um fascista.

Aceitar o retorno do fascismo representa um problema para alguns pensadores progressistas, pois significa que nossa sociedade tem fantasmas que se negam a morrer. Embora há exceções, os acadêmicos em geral não sabem nada. O problema fundamental que está atingindo a academia é a confusão entre a ciência e a verdade. Sabemos a respeito da brilhante ideia que teve Descartes ao separar a alma do corpo. Foi a partir desta nova ideia que pudemos fazer descobertas científicas. Mas, tempo depois, em 1725, Giambattista Vico advertiu que, apesar da grande admiração que tinha por Descartes, não devíamos cometer o erro de pensar que o paradigma científico – mesmo que adequado para explicar o que ocorre na natureza – nos faria compreender o ser humano e sua sociedade, porque somos uma espécie espiritual.

Nossos sentimentos e emoções vão além do paradigma científico. Os acadêmicos, no entanto, se negaram a escutar a advertência de Vico, ou a esqueceram. Constantemente, as humanidades têm que provar que são científicas e lhes impõem a necessidade de inventar teorias. Simon Schama explicou que a história é composta por uma série de relatos, mas são poucos os historiadores que contam algo. Tudo são teorias. Isto se aplica também para a psicologia e a sociologia. Existe um mal-entendido no campo das humanidades e com sorte um dia nos darão mais conhecimentos que dados. Ao não compreender, não fazem parte do debate público. Como não há evidência empírica de que enfrentamos o fascismo, negam-se a pensar que está de volta.

Enfrentamos um novo gnosticismo e quem o cultiva é essencialmente a esquerda: “as pessoas” se sentem traídas, “as pessoas” não sabem o que fazer. Em certo sentido, isto é tão antidemocrático como o fascismo. Eis, aqui, onde estamos atolados. O que não temos é um “humanismo cívico”. O que a sociedade perdeu é a noção de humanismo no discurso cívico. Isso é algo que devemos recuperar o quanto antes, porque, caso contrário, nos dirigimos ao desastre.

Mas, não há somente ciências da natureza, também existem a ciência política e a ciência econômica. Ou seja, a quantificação de elementos econômicos e políticos de um ponto de vista científico.

Se a economia fosse uma ciência, por que não conseguiu prever a crise econômica de 2008 ou a enfrentar? A ciência política se reduz só a dados e não contribui em nada. Ao querer se concentrar neste paradigma, a ciência se limita. O argumento de Giambattista Vico é que se queremos compreender o ser humano e entender a sociedade, precisamos de história, poesia, filosofia, música e arte. Isto nos dará um conhecimento absoluto? Não, porque o ser humano transcende o conhecimento absoluto.

Pensa-se que falar de alma e espírito humano é antiquado. Se isso é correto, perdemos o rumo. Qual é a essência do ser humano? Sócrates diz que é a alma. Em suas Disputaciones tusculanas, Marco Tulio Cícero escreveu sua famosa sentença de onde provém nossa noção de cultura: “o cultivo da alma, isso é a filosofia”. E, certamente, junto à filosofia, perdemos a busca da sabedoria, o cultivo da alma. De modo que não deve nos surpreender o tipo de mundo em que vivemos.

Não sou contra a informação e os fatos, mas não necessariamente são conhecimento, nem sabedoria. Os poetas e os artistas dizem que a linguagem é como um espelho que nos diz se somos autênticos. Ao final de Apologia, Sócrates adverte que, sem a linguagem das musas, sem a linguagem da música, da poesia e da arte, seria impossível nos expressar; seria impossível compreender nossos sentimentos e lidar com nossas frustrações, temores e solidão. Por isso, é importante ter essa linguagem que – como já disse [Marcel] Proust – é o que nos permite entender o outro. Nunca seremos capazes de apreciar e articular nossas experiências mais profundas sem a linguagem das musas.

As sociedades que estão dominadas pelo medo são propensas ao contágio do populismo, mas o medo é inevitável em sociedades como as nossas, assediadas pelo terrorismo e a violência do narcotráfico.

Não são as sociedades, somos nós mesmos. Nossa psique está invadida pelo temor: somos a única espécie que tem consciência de sua mortalidade. O temor é um sentimento inerente ao ser humano. Mais que de uma educação ou de uma filosofia, Sócrates falava de uma Paideia: de como viver a vida. Um de seus elementos é como lidar com nossos temores. Perdemos os instrumentos que nos permitem fazer isso. Por que sociedades são tão inseguras? Por que dependem tanto de psiquiatras? Por que depositamos nosso sentido de bem-estar e confiança nos bancos, nas companhias de seguros e nos sistemas de pensões? Em parte, é porque nossa sociedade se tornou muito mais materialista e acreditamos que as seguradoras irão cuidar de nós. Para que devo cultivar minhas habilidades ou certo caráter se, enquanto minha conta de banco estiver boa, estarei bem? Sócrates pensava que o valor é a habilidade de se conquistar a si mesmo, o valor para cultivar nossa alma, e queria que recebêssemos uma educação que nos tornasse corajosos, conquistar nossos temores, frustrações, inseguranças de modo que tenhamos a coragem para agir.

Imaginemos uma sociedade na qual nos déssemos conta de que a autêntica segurança não deveria vir de nossa conta bancária, mas de nós mesmos. Imaginemos uma sociedade na qual, em verdade, tratássemos de nos educar para sermos corajosos. É a única maneira de se opor ao que está ocorrendo. Isto não significa que não haverá mais tragédias, mas como sociedade seríamos muito mais fortes.

Afirma que o medo leva os povos a buscar um líder que os salve e proteja. Sua advertência de que o fascismo está de volta, não é uma forma de provocar medo nas elites?

Ao falar de elites nos referimos à elite do poder. Isso já acontece nos Estados Unidos, onde a classe que compõe os financistas de Wall Street está em ascensão. É exatamente o que ocorreu na Alemanha nazista por falta de cálculo, oportunismo e pensamento estratégico: as elites – não só as elites do poder, mas também muitos acadêmicos e intelectuais – pensavam que Hitler não podia ser tão mau. Enquanto o líder fascista se dedica a seus próprios interesses, parece que não importa para ninguém. Chegado o momento, se as coisas se colocam muito mal em um regime totalitário, não há possibilidade de erguer a voz. Por que as pessoas precisam tanto da figura de um líder? Por que a sociedade anseia um herói? Os heróis atuais são as celebridades. Sabemos que Trump pôde chegar à Casa Branca graças ao fato de que, durante doze anos, apareceu constantemente na televisão. Assim, de forma grande, é a fome de líderes, heróis, gurus e messias. É por este motivo que procuro fazer uma defesa do humanismo. Se alguém é suficientemente afortunado na vida, encontra um mestre: um homem ou uma mulher que possa o ensinar a desenvolver suas habilidades e talento. A humanidade pode ser dividida entre as pessoas que precisam de um mestre e o procuram e as pessoas que não o procuram, mas estão impressionadas com o líder poderoso ao qual podem se submeter.
Dostoievski disse isso com grande eloquência em O Grande Inquisidor. Nele, apresenta a Jesus Cristo não como um líder poderoso, nem como herói. Apresenta-o como um mestre. Um mestre, além do mais, que não traz boas notícias. A má nova é que Jesus Cristo não está aqui para nos fazer felizes, mas, ao contrário, para nos tornar livres. Precisamos de um mestre quando queremos desenvolver a qualidade de ser livres. Precisamos de um líder ou uma celebridade quando queremos ser felizes.

Na França e nos Países Baixos, os candidatos com discursos fascistas perderam as eleições. O fascismo foi detido na Europa?

Nos Países Baixos não detivemos o fascismo. Geert Wilders é líder do atual segundo partido mais importante e principal opositor do partido no governo. Isto significa que no debate parlamentar ele é o primeiro a falar. Pode dizer o que quiser, sem nenhum tipo de responsabilidade. Por outro lado, o vencedor da eleição, Mark Rutte, publicou uma carta aberta em todos os jornais holandeses intitulada Ser normal. Aí diz que, como holandeses, damos as boas-vindas a todos sempre e quando se comportarem de uma maneira “normal”, como o restante dos cidadãos neerlandeses. Vá! Ser normal significa que você deve ser igual ao outro. Não posso pensar em um argumento mais racista e xenófobo. Pouco depois, o líder do partido Apelo Democrata-Cristão disse que todos em meu país devem saber o hino nacional de cor e que cada vez que seja escutado, devemos ficar em pé e colocar a mão sobre o coração. Querem criar instrumentos para nos fazer todos “normais”.

Na França, por outro lado, Macron teve muita sorte. É jovem e tem pouca experiência. Em geral, a votação parlamentar é de 70 a 80%. Ele só obteve 48%. Caminha em um terreno sensível e está em uma posição muito mais complicada que a de Obama quando venceu a presidência em 2008, e já vimos o que ocorreu após os oito anos de seu governo. De modo que não nos enganemos pensando que, de repente, sem tomar nenhuma iniciativa real, detivemos o fascismo. A União Europeia se encontra em um momento muito delicado. É tão disfuncional que, na Hungria, não pode enfrentar a Viktor Orbán, um fascista absoluto. Também sabemos o que aconteceu no Reino Unido e na Polônia. As forças que querem destruir a Europa são inegáveis.

Qual é a pertinência de 'Para combatir esta era'?

Sem Trump o livro não teria aparecido em espanhol, nem em outros idiomas. No caso de Trump, não acredito que haja um processo de destituição. Se chegasse a ocorrer, não esqueçamos o que disseram Levi, Mann e Camus, após a destruição da Alemanha de Hitler e o desmoronamento do fascismo na Itália: não cometamos o erro de pensar que o fascismo desapareceu com a guerra. Após a guerra, Camus publicou A Peste para deixar assentado esta mensagem. Podem passar dez ou cinquenta anos, mas o fascismo reaparecerá. Está acontecendo, agora, com Trump e Erdogan. Mas, mesmo se eles se forem, o fascismo permanecerá.

Em 1929, José Ortega y Gasset nos advertiu, em 'A rebelião das massas', sobre a ascensão do fascismo. As sociedades livres lutaram contra as nações fascistas pela liberdade. Os líderes que enfrentaram o fascismo – Estados Unidos e o Reino Unidos –, hoje, possuem um governo populista. Que caminho tomar?

Os Estados Unidos não têm um governo fascista, mas, sim, um presidente que é. Este é um exemplo de que a liberdade e a democracia não podem se dar por assentadas. Talvez devamos dar um salto muito mais extenso e entender que o modelo de Estado-nação é relativamente novo em nossa história, que como modelo tem dificuldades, e que isso abre o espaço para o surgimento do nacionalismo. A partir deste cenário, pode crescer o fascismo. Não há fascismo ou racismo sem nacionalismo.

No final dos anos 1930, Thomas Mann, Hermann Broch e alguns intelectuais estadunidenses como Robert Maynard Hutchins – que então era o reitor da Universidade de Chicago – se reuniram a pedido de Elisabeth Mann Borgese e seu esposo, o escritor Giuseppe Borgese, um dos poucos intelectuais italianos que se negou a fazer o juramento de lealdade a Mussolini e se exilou nos Estados Unidos. Em 1938, Borgese pensou que a guerra era inevitável e que deviam vencê-la. Pensava que, após a guerra, os políticos estariam muito agoniados, sendo assim, os intelectuais tinham que sair da torre de marfim e escrever algum tipo de material a partir do qual poderiam se estabelecer novos princípios.

O grupo se reuniu algumas vezes em Atlanta, em 1939, pouco antes da guerra. Em março de 1940, publicaram The city of man. A declaration on world democracy, onde se perguntavam: o que precisamos fazer após a Guerra? Eles mesmos responderam: um governo mundial, um parlamento mundial, direitos humanos universais. A partir deste pequeno livro nasceu a ONU.
Cabe a nós, intelectuais - gente privilegiada que podemos viver cuidando de ideias e do significado das palavras -, unir-nos, explicar o que ocorre e como avançar. Estamos atolados entre dois paradigmas que não nos permitem avançar. Nossa conversa girou em torno do paradigma do retorno do fascismo. Contudo, há outro paradigma com o qual estamos lidando: a sociedade capitalista-científica-tecnológica que se rege pelo tipo de ideologia que vem do Vale do Silício. Uma ideologia que se baseia na falsa noção de que com a tecnologia e a neurociência podemos resolver tudo. Como dizia Obama com frequência: Fix it first. Isso tampouco nos permitirá avançar. Isto abebera o fato de que não há ideias. Tive um debate acalorado com um professor que dizia que para se ter uma Europa unida era necessário retornar à Idade Média, sob a forma da cristandade. A saída não está em um retorno ao passado.

Celan, Brodsky, Pasternak e muitos outros exerceram a arte da tradução. Por que Thomas Mann escreveu José e seus irmãos? Começou a escreveu sua tetralogia quando se deu conta de que existia um homem chamado Adolf Hitler. Mann, que vivia em Munique, escutou a retórica de Hitler, compreendeu sua ideologia e percebeu que queira criar uma nova religião laica. Sendo assim, começou a escrever seu livro. Tomou a Bíblia e se propôs voltar a contar – a traduzir – a história de José e seus irmãos.

Paul Celan – depois que os nazistas o cercaram junto com sua família em um gueto, enviaram seus pais para um campo de extermínio, onde assassinariam sua mãe e morreria seu pai, e o mandaram para um campo de trabalhos forçados, de onde finalmente foi libertado – teve que traduzir.
O grande relato que esperamos, o tipo de história que precisamos ter para que renasça o humanismo laico ou religioso será, justamente, um que volte a contar histórias; será uma tradução, como o Renascimento foi uma tradução. Goethe disse que a verdade já existe, a única coisa que precisamos fazer é repeti-la e traduzi-la. Daí minha rejeição aos acadêmicos. Não estão fazendo seu trabalho. Por outro lado, a cada dia admiro mais Andrei Tarkovski, porque com seus filmes conseguiu traduzir valores fundamentais em histórias. A noção de sacrifício, que pertence ao mundo da religião, ele a traduziu em um relato claro. Todos os meus heróis são tradutores. Empreenderam a tarefa de transmitir ou traduzir valores, as coisas que na verdade importam, para nos dar uma visão do mundo que protegesse a noção do que é uma civilização democrática. Se não somos capazes de fazer isto, estamos perdidos.

Qual a sua opinião da reação que Trump gerou dentro dos Estados Unidos?

Não podemos aceitar o que ocorre. Trump não venceu no voto popular. Muita gente compreende o que ocorre. Hillary disse que agora faz parte da “resistência”, algo que me causa certo mal-estar, pois do lado do mundo do qual venho as pessoas que pertenciam à resistência arriscaram sua vida para lutar contra os nazistas. Neste momento, não há um só estadunidense cuja vida corra perigo, de modo que seria melhor dizer que se é parte da oposição. Recortemos este fato: aquilo que é possível nos Estados Unidos resulta impossível na Rússia. Este tipo de oposição faria com que, na Rússia ou na China, você fosse executado de imediato. Ainda há certa liberdade na Hungria, embora a cada dia se torna mais difícil pertencer à oposição. Se Trump consegue aumentar sua base de seguidores, segue propagando notícias falsas e continua com sua política para com os meios de comunicação, para que as pessoas prefiram abrir seu Facebook ao invés de ler o Washington Post, estaremos em uma situação vulnerável. No pior dos casos, será reeleito por um segundo período. Não é impossível.

Seu livro é uma defesa dos valores espirituais absolutos. Não é uma aspiração muito elevada neste momento de emergência?
É uma aspiração elevada procurar o amor de sua vida? É uma aspiração muito elevada necessitar da amizade? É uma aspiração muito elevada sentir a necessidade de perseguir nossas paixões, de fazer algo que tenha algum significado? As coisas das quais falo não são moralistas, abstratas ou poéticas, são as coisas que estão no centro do ser humano. É uma aspiração muito elevada confiar em seus amigos e não se sentir traído? Estas são as coisas das quais falo. Tudo se tornou difícil e complicado porque o ser humano não só aspira, como também sente medo e frustração. Na realidade, falo de coisas muito básicas.

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