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A modernidade moldada pelo vazio
Giorgio Sica mostra, em O vazio e a beleza, a influência da arte nipônica sobre o Ocidente
Edição de imagem
A tímida abertura do Japão ao Ocidente num processo
de contato e lenta saída do estado de isolamento do país é relatado no
livro O vazio e a beleza, de Giorgio Sica.
Os primeiros navios do comodoro norte-americano
Matthew Perry atracaram na baía de Edo (atual Tóquio), Japão, em julho
de 1853. Mas o contato inicial do país com os europeus no século XVI e
as decorrentes obras missionárias antecipariam, naquele contexto, a
proibição do cristianismo na ilha, o surgimento de uma burguesia
mercantil e o aperfeiçoamento das artes, num esforço de liberdade
contrário à censura xogunal.
Manifesta-se, então, no segundo contato, um duplo
processo de influência cultural: no Oriente, o que Sica define como “um
dilacerante processo de modernização” a partir da era Meiji. Na Europa,
uma forte influência artístico-cultural, num fenômeno conhecido por
“japonismo”. Do contato inicial do Ocidente com a
arte nipônica – notadamente por meio de sua influência na pintura
impressionista e pós-impressionista –, sucede também o contato com o haiku e tanka, métricas próprias à poesia japonesa.
De In the station of the metro, de Pound, passando pelas influências do teatro Nō em Yeats, e relacionando o japonismo à poesia
clássica japonesa, Sica propõe esse movimento como essencial para
compreender a evolução da “sensibilidade estética” no contexto ocidental
entre fins do século XIX e início do século XX. Van Gogh, Monet e Degas
estão entre os artistas que iniciam a busca pelos processos de
descoberta da arte nipônica no campo das artes figurativas.
Traçando os primeiros contatos com a língua e a
escrita chinesas para enfim chegar à organização estatal centralizada e à
propagação do budismo, a recuperação do papel exercido pela China no
processo de formação da civilização japonesa é aqui fundamental. Com uma
análise da influência da língua japonesa no processo de composição do haiku
– por meio da polissemia, dos efeitos sugestivos e da variedade de
trocadilhos próprias à língua, bem como sua ausência de gêneros,
declinações e conjugações – Sica reconhece na poesia nipônica o que
define como “respeito pelo ‘espaço reservado ao desconhecido’” (p. 27),
isto é, a valorização de uma estética do “não dito” numa espécie de
produção que sugere uma “polinterpretabilidade”. Numa análise
comparativa da poesia japonesa com a poesia chinesa, Sica busca exprimir
uma defesa conjunta da arte como expressão por ambos os mundos, ainda
que as diferenças entre as duas culturas sejam significativas.
O autor associa a ideia do “não dito” ao conceito de páthos da arte grega – definido como detentor do impalpável e expresso também por este, o páthos assemelha-se
à poesia japonesa –, o que se aproxima da perspicaz análise da arte do
teatro de marionetes feita pelo dramaturgo japonês Chikamatsu, renomado
autor de teatro bunraku.
Num minucioso trabalho de recuperação histórica,
Giorgio Sica retoma uma das mais importantes antologias poéticas da
história nipônica, o Kokin waka shu, em
prefácio de Tsurayuki, em que esse exemplifica o nobre sentido da
poesia e a identidade inerente entre poesia e vida expressa pelo povo do
Sol Nascente. O autor introduz uma análise do surgimento do divino (o Kami) na poesia nipônica e da característica comunitária de sua produção (dos katauta aos renga).
Sendo o poema o que o autor chamaria de “imprimir algo ao universo
partilhado da linguagem”, é resultado de uma espécie de impessoalidade
expressa nos autores anônimos de waka ou tanka e impermanência dos seres e das coisas identificada à tradição budista.
O vazio e a beleza também retoma os
principais nomes dedicados ao conhecimento da arte nipônica e seus
princípios por meio da recuperação de particularidades da poesia
japonesa aos poetas ocidentais. Propondo uma análise do processo de
ampliação do contato da cultura ocidental com a poesia nipônica e de sua
recepção como um consequente alargamento da temática difundida pela
poesia no ocidente, parte do livro é dedicada à análise do contexto de
desenvolvimento do japonismo.
Inicialmente, o livro apresenta uma investigação do
fenômeno do japonismo na Europa, respectivamente na França (que se
inicia na Paris do século XIX) e Itália, e posteriormente nos Estados
Unidos a partir de 1880. Em segunda parte, Sica apresenta análises
detalhadas da influência da poesia japonesa na poesia ocidental. No
universo anglo-saxão essa influência inclui Pound, Hulme e Wilde, tendo
sido difundida no século XIX dentre outros pelo grupo “The Rhymers Club”,
fundado por W. B. Yeats e Ernest Rhys. No século XX, e.e.cummings, em
estreita relação com a pintura, interessa-se pelo imagismo num contexto
de difusão de um Japão idealizado.
Também a poesia japonesa na Itália merece longa
análise, seguida pelo mundo Francês, numa sequência minuciosa que
analisa elementos próprios a diversos poetas – passando por Mallarmé (a
partir de uma “poética do mundo flutuante que inclui Goncourt e Zola”),
Paul Éluard, Paul Claudel e Rilke – sob a ampla influência do haiku japonês.
O que Sica apresenta como “mundo Japão” define novos
horizontes para o cenário artístico-literário europeu e americano. O
autor nos guia pelo processo de formação de uma nova consciência
estética ocidental, do começo da difusão da influência japonesa por meio
da arte na França à consolidação do japonismo como influência decisiva no ocidente.
A disseminação cultural japonesa no Ocidente foi gradual, inicialmente ganhando popularidade por toda a Europa com o status
de exótica por possuir uma perspectiva artística totalmente diferente
da conhecida na época. No cerne da arte nipônica exprimia-se uma ligação
indissolúvel entre o belo e o vazio, Giorgio Sica nos revela o mistério
e a beleza de uma literatura constituída por meio dessa língua que
valoriza a polinterpretabilidade. O livro sintetiza o impacto dessa nova
consciência estética no Ocidente e da arte intimamente ligada à
natureza. Não é de se surpreender que o interesse e fascínio de um vasto
número de personalidades e intelectuais tenham sido despertados.
Serviço
Título: O vazio e a beleza - De Van Gogh a Rilke: Como o Ocidente encontrou o Japão
Autor: Giorgio Sica
Editora Unicamp | Edição: 1ª
Ano: 2017
Páginas: 280
Preço: R$ 60,00
Link do livro
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