5º
Seminário Internacional Independência Judicial e Direitos Humanos
Federação
de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe.
Atibaia
(São Paulo) de 14 a 17 de setembro, 2006.
Dr. Roberto Romano/ Unicamp
Arrazoado sobre o
Curso de Direito, a inter-disciplinaridade e outros problemas.
“Rousseau, creio,
disse uma vez : ´a criança que conhece apenas seus pais, não os conhece bem´.
Este pensamento deixa-se aplicar a muitos outros conhecimentos, na verdade, a
todos os que não possuem uma natureza pura: quem nada entende além da química,
nada entende, inclusive dela”. ([1])
A epígrafe remete para o
problema das relações entre disciplinas, sobretudo quando se trata de se propor
uma análise dos cursos de Direito. Os enunciados sobre Rousseau e a criança
cabem perfeitamente em reflexões sobre a oportunidade de se instaurar um novo
setor de ensino em nossa Universidade. Mas tal curso possui, na ordem
universitária, uma antigüidade que ajudou a definir o mundo atual e trouxe para
a vida política, econômica, societária, paradoxos temíveis tanto no saber
quanto na existência coletiva. A tradição do ensino e da prática do direito,
além de sua pesquisa e ordenamento teórico, produziu formas legais complexas e
só analisáveis com refinados e poderosos
instrumentos heurísticos unidos a enorme erudição. Examinar o curso de Direito
significa seguir caminhos pisados durante séculos pelos seres humanos, com a
necessidade premente de adaptar tais sendas à carências do nosso mundo e do
Brasil contemporâneo.
Um crítico
das instituições universitárias, Imanuel Kant, sublinha a essência do ensino
jurídico de modo claro e insofismável. Trata-se em tal atividade acadêmica de
“buscar as leis que garantem o meu e o teu (se o docente procede como é
preciso, como funcionário do Estado) encontrando-as não na razão mas no Código
oficialmente promulgado, e este último tem a sanção da autoridade suprema. Não
podemos com legitimidade pedir ao seu
estudioso que prove a sua verdade e seu bom fundamento, nem defendê-las contra
as objeções da razão. Pois elas são, de início, ordenamentos que tornam justa
uma coisa. Quanto a pesquisar se tais ordenamentos são eles mesmos justos, esta
é uma questão que os juristas devem fortemente recusar como contrária ao bom
senso. Seria ridículo querer escapar à obediência de uma vontade externa e
suprema sob pretexto de que esta última não se coaduna com a razão. Pois o
respeito devido ao governo consiste precisamente no fato de que ele não deixa
aos governados a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo suas
próprias concepções, mas segundo a prescrição do poder legislativo”. ([2])
Em conflito
permanente com o setor da Filosofia (que no século 18 ainda sintetizava a maior
parte dos estudos sobre a natureza e a vida humana, incluindo as matemáticas, a
física e demais campos), as três Faculdades “superiores” (Teologia, Medicina,
Direito) seriam produzidas fora do campo inter-disciplinar reunido sob o nome da “amizade pelo saber”.
Como as três faculdades privilegiadas pelo governo permitem a obediência à lei
positiva, o povo a elas se acostumou e, longe de querer a autonomia da vontade
e do juízo, propostas para a vida moral e para a pesquisa científica
(filosófica…) os que pagam impostos exigem coisas “práticas” do ensino
universitário. “Todas as suas conversas fiadas” —Kant põe tais frases na boca
do cidadão comum— “filósofos, eu as
conheço há muito tempo. Mais eis o que desejo saber de vós enquanto sábios:
como poderei, mesmo sendo um bandido, obter no entanto, pouco antes do fechamento das portas, um
bilhete de entrada para o reino celeste; como ganhar meu processo mesmo que
esteja errado; como, mesmo que use e abuse descuidadamente as minhas forças
físicas, permanecer sadio e viver muito tempo?”. ([3])
No item dedicado especialmente ao conflito
entre a Filosofia e a Faculdade de Direito, Kant lança a ponta mais acerada
contra os efeitos, na vida civil, do manuseio dos juristas pelos governantes. O
pensador afirmara anteriormente que o povo, nos governos despóticos, “deseja
ser dirigido, isto é, na linguagem dos demagogos) enganado. Mas ele não quer
ser dirigido pelos cientistas universitários (sua sabedoria é por demais
elevada para ele) mas por seus agentes que sabem fazer, pelos eclesiásticos,
funcionários da justiça, médicos. Tais práticos têm para si as presunções mais
vantajosas. O governo, que só pode agir sobre o povo por seu intermédio, é ele
mesmo treinado a impôr às Faculdades uma teoria que não saiu do puro saber dos
cientistas, mas se estabeleceu em razão da influência que, por ela, seus
agentes de negócios podem exercer sobre o povo”. ([4])
“Agentes de
negócios” (Geschätmänner), certamente esta não é a marca de um ser livre e
que colabora para a autonomia do juízo e da vontade cidadã. Como garantir a obediência e, ao mesmo tempo,
a livre força volitiva de um povo? “Nossos políticos, no campo em que são
influentes” dizem que “é preciso tomar os homens tal como eles são e nunca
como os pedantes que ignoram o mundo, ou como os bons sonhadores, imaginam que
eles devem
ser. Em vez de afirmar ´como eles são´, deveriam melhor dizer ´o que
nós os fizemos´ por um constrangimento injusto, por desígnios pérfidos
sugeridos ao governo. Nós os fizemos com a cabeça dura e inclinados à rebelião;
logo, sem dúvida, quando o governo relaxa um pouco as rédeas, tristes
consequências se produzem, as quais justificam as predições desses homens de
Estado, supostamente sagazes”. ([5]) Teólogos,
médicos e juristas são “instrumentos de
governo” (Werkzeug der Regierung) e servem aos políticos para que estes
garantam sua influência sobre a população. Tal costume universitário é
condenado por Kant em proveito da livre pesquisa e da autonomia cidadã.
O juízo do
grande pensador ético não é róseo quando se trata do curso de direito.
Evidentemente as falhas dessa Faculdade
derivam, na sua maioria, dos alvos políticos e governamentais. Kant sublinha o
conúbio entre os interesses dos políticos e os interesses particulares, num Estado que não se pauta pela autonomia.
Para o cidadão imerso no mercado, por exemplo, o importante na prática do
direito é o lucro, não importa se para conseguí-lo as regras da justiça e do
direito devam ser “adaptadas” aos seus alvos comerciais. Outro lado grave da
crítica kantiana às faculdades “superiores” é que elas representam, contra a
pesquisa científica, o lado não autônomo da Universidade. Elas são dirigidas
pelos Ministérios que impõem os estatutos, os manuais de ensino, a censura. Com
isso, tais escolas ameaçam diretamente a pesquisa livre e autônoma nos campi.
Territórios isolados nas universidades, elas não partilham os progressos dos
saberes trazidos pelas ciências. Estas só conseguem progredir porque se baseiam
na liberdade de investigação. Muita cautela, portanto, deve ser empregada —se
as análises kantianas sobre o curso de direito ainda valem— quando se imagina
instaurar um curso de direito numa universidade estatal contemporânea.
Enquanto
Imanuel Kant se volta contra o excessivo apego aos interesses menores do
comércio e do controle dos corpos pelo governo, outro pensador do século
dezoito investe contra o arcaísmo da Faculdade de Direito com seu apego à uma
forma de ensino e pesquisa desligada dos problemas contemporâneos. “Nossa
faculdade de direito é miserável. Não se lê aí uma palavra do direito francês;
tampouco do direito das gentes, como se ele não existisse em absoluto; nada de
nosso código nem civil nem criminal; nada de nosso processo; nada de leis; nada
de nossos costumes; nada tampouco dos ofícios e dos contratos. — Do que se
ocupam pois? — Ocupam-se do direito romano em todos os seus ramos, direito que
não tem quase nenhuma relação com o nosso; de modo que aquele que acaba de ser
condecorado com uma borla de doutor em direito encontra-se tão impedido se
alguém lhe corrompe a filha, lhe rapta a mulher ou lhe contesta a propriedade
de seu campo, quanto o último dos cidadãos. Todos os seus belos conhecimentos
lhe seriam infinitamente úteis se ele se chamasse Mévio ou Semprônio e se nós
retrogradássemos aos tempos de Honório ou de Arcádio. É ai que ele pleitearia
superiormente a sua causa. Sob Luis XVI, ele é tão tolo como o habitante de
Chaillot, e bem mais tolo que o camponês da Baixa Normandia. A faculdade de
direito não habita mais um velho edifício gótico; mas ela fala godo debaixo das
soberbas arcadas do edifício moderno que se lhe erigiu”. ([6] )
No Conflito
das Faculdades Kant é mais demolidor do que preocupado em edificar um
novo curriculum
de direito. Já Diderot (trata-se de um plano encomendado por Catarina 2, para
uma Universidade russa) apresenta o curriculum ideal para o referido
curso. A modéstia dos meios financeiros é suprida pelo filósofo com a modéstia
do agenciamento humano. Em sua universidade o curso de direito seria ministrado
apenas por oito professores: um para o direito natural, um para a história da
legislação, um para as instituições do direito das gentes, um para os
Institutos de Justiniano, dois para o direito civil nacional, um para o direito
eclesiástico em geral e ao mesmo tempo para o direito nacional, um para o
processo civil e criminal. O curso seria cumprido em quatro anos e, em cada
ano, os estudantes seriam instruídos por dois professores.
No primeiro
ano, dedicado ao direito natural ([7]) e à história
da legislação, o professor deveria levar o ensino mais longe do que o oferecido
aos alunos no curso de moral que precedeu sua entrada nessa escola. Puffendorf
(Dos
deveres do Homem e do Cidadão) e Burlamaqui (Direito Natural) são
sugeridos por Diderot como fontes a serem usadas. O ensino da legislação seria
dedicado às leis da Grécia e de Roma, além das de outras nações antigas. A
fontes bibliográficas incluiriam Antoine Thysius (Das repúblicas mais célebres),
Ubbon Emmius (A antiga Grécia esclarecida), Heineccius (História do Direito Romano)
e Hoffmann (também História do Direito Romano).
No segundo
ano seriam ministrados o ensino do direito das gentes e das Institutas de
Justiniano. ([8])
O professor deveria concentrar-se na doutrina dos contratos devido a
importância basilar dos romanos neste setor. No terceiro ano viria o direito
civil nacional, antigo e moderno, e o direito eclesiástico. No quarto ano,
novamente o direito civil acrescido do criminal e do processo civil. Cada
passagem de um ano para outro deveria ser antecipada por um exame público dos
alunos, exames cuja severidade deveria ser absoluta. Neles, tanto estudantes
quanto mestres estariam em perene emulação. No fim do curso, antes de pretender
o ingresso num tribunal, seria obrigatório rigoroso exame perante o corpo junto
ao qual o candidato deseja operar. Todos os cidadãos, de todas as condições,
assistiriam tais exames, também vigiados pelos representantes do Estado. Os
professores deveriam permanecer sempre nos quadros da mesma disciplina, para
que pudessem aperfeiçoar ao máximo a sua técnica e conhecimentos.
E vem a
parte “prática” da proposta. Todo professor, após 15 anos de trabalho sem
desvios, deveria ser aposentado honrosamente. Ele poderia entrar e ter assento
nos diferentes tribunais da magistratura, o que seria lisonjeiro para ele e
útil para o tribunal, “que por essa política continuaria a recrutar
incessantemente homens que teriam prestado suas provas de probidade e de luzes
na ciência das leis”. No campo do governo, um especialista em direito natural e
das gentes seriam útil na diplomacia. E seguem-se outras justificativas para o
apelo do governo aos egressos da carreira juridico-universitária. ([9]) Note-se que a
especialização (Direito, Medicina, etc) dar-se-ia após um curso comum no qual
os rudimentos do essencial, no saber humanístico e científico, seriam passados
aos estudantes. Também importa notar que Diderot não aceita na vida
universitária uma especialização excessiva : “O objeto de uma escola pública
não é de modo algum produzir um homem profundo, em qualquer gênero que seja;
mas iniciá-lo em um grande número de conhecimentos cuja ignorância lhe seria
prejudicial em todos os estados da vida, e mais ou menos vergonhosa em alguns.
A ignorância das leis seria perniciosa em um magistrado. Seria vergonhoso que
ele fosse mal habilitado na verdadeira eloqüência. A pessoa entra ignorante na
escola e sai escolar; a gente se faz mestre por si mesma, dirigindo toda a sua
capacidade natural e toda a sua aplicação para um objeto particular. O que se
deve obter de uma escola pública? Bons elementos”. ([10])
No século 19,
apesar de todos os esforços dos intelectuais que ajudaram a definir o direito
democrático, em especial na França revolucionária, o lugar do ensino jurídico
na universidade ainda era percebido de maneira negativa, de modo muito próximo
à crítica de Kant. Quando se tratou, na Alemanha, de instituir a Universidade
de Berlim, vários projetos foram consultados pelos responsáveis. Embora a
escolha tenha recaido sobre o plano de Humboldt, algumas propostas foram
marcantes no processo. Dentre elas, a do jacobino Fichte, admirador da
Revolução Francêsa e seu propagandista na Alemanha. ([11]) Neste autor,
como seria inevitável num discípulo de Kant, a faculdade de direito é vista de
maneira extremamente crítica, na companhia da Medicina e Teologia. Importa
notar que a maior reprovação às referidas escolas vem do fato de que elas,
segundo Fichte, ter-se-iam isolado do estudo e da estrutura mais ampla do saber
acadêmico, transformando-se numa espécie de universidade no interior da
universidade.
“As três
faculdades pretensamente superiores”, escreve Fichte, “teriam prosperado há bom
tempo se, ao considerar sua verdadeira essência, elas tivessem reconhecido a si
mesmas no todo coerente do saber e se, por conseguinte, não tivessem colocado a
si mesmas, em se gloriando de sua necessidade prática e de seu favor junto à
multidão, como uma realidade independente e eminente, mas pelo contrário se
subordinassem a este conjunto coerente e, com a humildade que convem, tivessem
reconhecido sua dependência. Na medida em que desprezaram as demais, foram
desprezadas e os estudantes de outros domínios não tiveram nenhum conhecimento
daquilo que elas desejavam possuir exclusivamente para si mesmas —foi então
muito prejudicial tanto ao seu estudo quanto ao saber em geral na sua
totalidade.” ([12])
Após indicar
a auto-suficiência da escola jurídica, o seu isolamento das demais disciplinas
científicas e humanística, Fichte apresenta o que deveria ser, no seu
entendimento, o alvo dos estudos jurídicos. “A matéria científica da
jurisprudência é um capítulo da história e do modo pelo qual foi tratada até
hoje, ela é apenas um fragmento desse capítulo. Ela deveria ser uma
história da formação e do desenvolvimento do conceito de direito entre os
homens (Fichte sublinha, RR), conceito do direito que, ele mesmo,
independentemente desta história, enquanto soberano (Fichte sublinha, RR), não
como servidor
(ainda é Fichte quem sublinha, RR), já deveria ter sido descoberto pelo
filosofar. Na perspectiva habitual, puramente prática, que lhe é assinalada em
primeiro plano —apenas formar juízes, o
que é uma tarefa subordinada— ela é a história desta formação do conceito nos
países em que vivemos e no máximo, sob os romanos, e nisto ela é apenas um
fragmento. Mas seu alvo prático último é
formar o legislador e, neste ângulo, o capítulo inteiro poderia ser-lhe
bem necessário. Pois embora o que deveria ser uma lei seja conhecido
absolutamente a priori, no entanto a arte de descobrir a figura particular
desta lei para cada época e adaptá-la a ela deveria exigir neste assunto a
experiência da época, conhecida em sua totalidade”.
Assim, uma
formação correta exige que o ensino do direito não se limite a um fragmento
teórico ou prático (estudar a jurisprudência ou o direito romano, de um lado,
ou formar os “operadores do direito”, de outro). O ensino deve abranger
capítulos inteiros do livro onde foi escrita a história, livro que contem as
ciências físicas, as matemáticas, e as humanidades. Enquanto o ensino do
direito estiver preso em si mesmo, sem o trato com outros ângulos da cultura,
ele será fragmentário e, por isto mesmo, não verdadeiro e sem condições de ser
aceito pelas demais áreas de pesquisa. Outro requisito é que ele deve saber
unir a tradição do direito, o direito romano por exemplo, ao que se passa aqui e
agora. O culto de uma lei ou conjunto de leis sem historicidade é vazio e sem
maior significado cultural.
Para que
serve o ensino do direito, no mundo coletivo ? Para formar operadores do
direito e legisladores. Ambas as profissões, no entanto, escreve Fichte, “são
aplicações práticas da história. Assim, a jurisprudência tem como sua
enciclopédia primeira a enciclopédia da história, enquanto esta é um solo no
qual ela repousa. Ela é a utilização científica do entendimento nela implicada
e ela, na sua prática mais elevada é propriamente a arte de engendrar uma história e, seguramente, uma história
mais feliz do que a executada até hoje. Mas o preparo para a aplicação prática
na vida cai fora do domínio da escola, e neste ponto seria preciso mandar os
jovens para os colégios de exercício, sob a vigilância dos quais —mas não sob a responsabilidade dos
magistrados a quem seriam confiados— eles se preparassem para a futura
administração dos assuntos”. Os estudos jurídicos seriam dirigidos por uma
Comissão de enciclopedistas (como Fichte os definiu acima) que se encarregariam
da formação prática, independemente da escola jurídica. Finalmente, os cursos
de direito deveriam instituir curricula menos extensos do que os
anteriores, visto que seria encorajado o princípio da pesquisa em união com o
todo acadêmico.
Mesmo com
esse sentido, o direito passou a ser visto com desdém pelos filósofos
posteriores a Fichte. Schelling ([13]) enxergava em
semelhante ensino apenas o elemento empírico, sem possibilidade alguma de elevá-lo
ao plano do conceito científico. Ele deveria ser exposto aos estudantes na
medida mesma em que era praticado nos assuntos particulares e públicos, diante
dos tribunais. Seu estudo não poderia se mesclar à filosofia, profanando-a.
Depois das críticas de Kant ao ensino jurídico, pensa Schelling, vieram os
kantianos com o desejo de usar a filosofia como serva de uma “ciência do
direito” (aspas usadas por Schelling) e também de reformular o direito natural.
“Esta maneira de filosofar revela-se apenas como uma corrida aos conceitos,
pouco importa sua natureza, desde que se trate de um detalhe, para que o
sujeito que colocou a sua mão sobre eles, pelo trabalho que se dá para arrancar
bem ou mal todo o resto a partir desse ponto particular, possa dar a ilusão de
um sistema próprio, mas que logo será suplantado por um outro sistema
igualmente original, etc”. Condenado à prática e à empiria, o direito não
poderia ser elevado à condição das outras ciências universitárias. Como se
nota, o curso de direito é visto com muitas reticências depois de Kant.
Os
malentendidos entre a universidade e os cursos jurídicos e sobretudo as
oposições entre a filosofia e o setor do direito foram exacerbados com Hegel.([14]) É mesmo
possível dizer que existem duas filosofias do direito : a dos juristas e a dos
filósofos. A influência hegeliana no campo da filosofia do direito filosófica
foi enorme, mas pequena entre a praticada pelos juristas. Como consequência, os
mesmos juristas aumentaram o seu interesse por I. Kant. Este último foi estratégico,
por exemplo, na Escola do Direito Histórico (Gustav Hugo, Carl von Savigny e
outros). Mesmo no século 20, pode-se dizer que o grande interesse dos juristas
foi dirigido a Kant e não a Hegel. Isto se deve à pouca informação do mesmo
Hegel em partes relevantes como o direito romano, contentando-se o filósofo com
obras secundárias. Além disso, outras contradições entre o pensamento dos
juristas e o do hegelianismo, no plano especulativo, levaram ao alheiamento
recíproco das partes, em proveito do kantismo. Os trabalhos de Hans Kelsen são
amostra deste itinerário. Mas no esforço de fornecer ao direito um fundamento
científico, terminou-se por novamente isolá-lo do conjunto acadêmico
constituído pelas outras disciplinas do espírito, o que vai na contramão da
crítica kantiana ao ensino jurídico de seu tempo.
Não apenas
no campo do transcendentalismo (kantiano ou idealista) o embate entre o ensino
jurídico e o próprio estatuto da doutrina do direito encontrou críticas
pesadas. Emile Durkheim, quando em viagem à Alemanha, ao encontrar os cursos de
direito no interior da vida pública e universitária, fez algumas considerações
pouco elogiosas sobre o ensino jurídico, não apenas germânico mas europeu. O
ensino das ciências em geral e do direito em particular, escreve Durkheim, não
leva adiante a pedagogia da ética. Desse modo, diz ele, “é assustador que
façamos tão pouco esforço para produzir uma opinião pública esclarecida, quando
esta última é o soberano poder entre nós”. Os políticos, acrescenta, na sua maioria
vêm das Faculdades de Direito, mas nada aprendem alí sobre sobre “a natureza da
lei, dos códigos morais, costumes, religiões, o papel e as relações entre as
várias funções do organismo social”. ([15]) Ou seja: os
políticos frequentam escolas de direito que não lhes ensinam as bases dos
saberes sociais mais amplos. Daí, não agem sobre a opinião pública, soberana na
democracia, deixando-a ao sabor dos eventos e sem acesso aos caminhos éticos
necessários. Como não foram educados para a ética, também ignoram a mesma ética
nos seus tratos públicos e com a opinião das massas.
Nas idas e vindas do
trato das escolas de direito com a universidade e, mais particularmente, com a
disciplina que se encarrega de prover uma visão de totalidade para o mundo
ético, artístico e científico —a filosofia— nota-se uma constante: o fechamento
do ensino jurídico em suas próprias fronteiras, de onde saem estudantes e
docentes para rápidas incursões no mundo da política, dos laboratórios, do
artesanato artístico. Deste modo, não surpreende que em universidades como a Unicamp, o projeto de
instauração de um curso de direito esteja marcando passo desde 1982, sem que
por ele se empolguem os pesquisadores do campus na sua totalidade. Qual razão
existiria para produzir um curso jurídico novo, se a prática deste mesmo curso
seria a da plena auto-suficiência no interior da universidade? Qual o proveito
epistemológico, metodológico, prático enfim, seria dele extraído, se o seu
conteúdo não adentra para territórios que interessam as ciências exatas, as
tecnológicas, as humanidades e a própria medicina? Existem problemas jurídicos
gravíssimos em todas essas áreas do saber, tanto nos obstáculos ao seu
desenvolvimento (a genética os conhece em profusão) como na normatização legal
dos mesmos (patentes, direitos autorais, etc). Mas o modelo imperante nos
cursos jurídicos mais influentes no país ainda não oferecem elos
inter-disciplinares com os demais campos do saber, de modo que o curso de
direito seria apena uma escola a mais na estrutura universitária.
Retorne-se à
epigrafe inicial. Ela foi colhida em recentíssimo artigo dedicado à reforma do
ensino jurídico na Alemanha em nossos dias.
([16])
Nela é dito, na verdade, que o curso jurídico dedicado apenas ao estudo das
leis e das técnicas forenses ou ligadas ao Direito, não ensina sequer a lei,
porque não a entende. Para conseguir tal alvo é preciso pesquisar a sociedade,
o Estado, as instituições religiosas, políticas, econômicas, a psicologia das
massas e uma infinidade de elementos definidos nas outras ordens de estudo. Num
país cuja tradição de ensino jurídico e de críticas sobre o lugar deste setor
na Universidade é muito rica e polifacetada (os exemplos acima são poucos e
escolhidos) é importante verificar o interesse na modificação do que
poder-se-ia chamar de ratio studiorum sem nenhum receio.
Os autores propõem a adequação dos cursos jurídicos aos desafios do século 21,
tendo em vista a sua maior eficácia e rigor acadêmico. O ponto de partida das
medidas a serem implementadas é encontrado na Universidade de Bremen, na qual
ocorreria, segundo os mesmos autores, uma exemplar interação dos cientistas
políticos, sociólogos, economistas e filósofos nos trabalhos pedagógicos e de
pesquisa na área do direito. Aquela universidade, existente na história alemã
anterior, foi fechada em 1810 por Napoleão e substituida no mesmo ano pela
Universidade Humboldt. Na última parte do século 20, aquele campus se
distinguiu por deixar a estrita especialização e assumir uma agressiva política
de esforço inter-disciplinar, o que causou impacto em todo o setor acadêmico na
Alemanha.
[1] Georg Christoph Lichtenberg, Professor de matemática e de ciências naturais na
Universidade de Göttingen (1742-1799). “Rousseau hat, glaube ich, gesagt: Ein Kind,
das bloß seine Eltern kennt, kennt auch die nicht recht. Dieser Gedanke lässt
sich [auf] viele andere Kenntnisse, ja auf alle anwenden, die nicht ganz reiner
Natur sind: Wer nichts als Chemie versteht, versteht auch die nicht recht.”
[2] Kant, Imanuel: Der
Streit der Fakultäten, “Eigentümlichkeit Der Juristenfakultät” in I. Kant
Werkausgabe (Frankfurt Am Main, Suhrkamp Verlag, 1977), Band XI, 1.
Página 287.
[3] Kant, I. op. cit.
páginas 293-294.
[4] Idem, página
[5] Kant, idem, ibid,
página 352.
[6] Denis Diderot:
“Plan d´une université” in Versini, L (Ed.), Oeuvres (Paris, Robert
Laffont, 1995), T. III, Politique, página 422. Sigo a excelente tradução de J.
Guinsburg in Diderot, Obras (São Paulo, Ed. Perspectiva,
2000), T. I, Filosofia e Política, página 274.
[7] “Dentre todas as
noções da moral, a de direito natural é uma das mais difíceis de se determinar.
Principios que podem ajudar a resolver tamanha dificuldade : 1) se o homem não
é completamente livre, não haverá nem bondade nem maldade raciocinada. Importa,
pois, estabelecer solidamente a realidade da liberdade, bem distinta do que é
voluntário. 2) o homem que faz a um outro o que não gostaria que lhe fizessem,
deve confessar sua maldade, ou conceder a todos a mesma autoridade que ele
arroga para si. 3) Quais criticas poderíamos portanto fazer ao homem
atormentado por paixões tão violentas que a vida se tornaria para ele um peso
oneroso, se não as satisfaz, e que para adquirir o direito de dipôr da
existência alheia, lhes abandona a sua .
4 ) é preciso apresentar a este homem o verdadeiro e o justo, raciocinando com
ele. 5) E lhe responder que não existe
nenhuma autoridade para forçar os outros a aceitar o mercado que lhes oferece,
e que o próprio mercado é injusto. 6) Mas quem poderá decidir o que é justo ou
injusto? As vontades particulares são suspeitas, a geral é sempre boa. 7) É
esta vontade que deve fixar os limites de todos os deveres. Tudo o que
cenceberdes será bom, sublime, se pertence ao interesse geral. Onde consultar
esta vontade? Nos princípios do direito escrito, nas ações sociais dos povos
selvagens, etc. Consequências deste principio: a vontade geral é sempre a
melhor”. Encyclopédie, verbete “Direito Natural”.
[8] No verbete
“Direito” da Encyclopédie, são enumerados e discutidos os vários segmentos
do direito, tanto no que diz respeito ao mundo civil, quanto ao que se
relaciona com o direito político e internacional. Embora o artigo não tenha
sido escrito por Diderot, quem conhece o modus operandi do filósofo enquanto
editor da obra sabe que a revisão e a elaboração final do texto passaram por
ele.
[9] Diderot, op. cit.
página 476 e seguintes. Edição Guinsburg, página 363 e seguintes.
[10] Diderot, op. cit,
página 428; Guinsburg, página282.
[11] Cf. Joh. Gottl. Fichte: Beitrag zur Berichtigung der
Urteile des Publikums über die französische Revolution (Hamburg, Felix
Meiner Verlag, 1973). Há tradução francêsa : Considérations sur la Révolution
Française (Paris, Payot Ed, 1989).
[12] Fichte, J.G : “Plano Dedutivo de um Estabelecimento
de Ensino Superior a ser fundado em Berlim, que estaria em íntima união com a
Academia de Ciências” in Philosophies de l´Université. L´Idéalisme
allemand et la question de l ´université. Schelling, Fichte, Schleiermacher,
Humboldt, Hegel. (Paris, Payot, 1979), página 195.
[13] Schelling, F.W.J. : “Lições sobre o método dos
estudos acadêmicos” in Philosophies de l` Université, ed,
cit, páginas 128-129.
[14] Cf. Gardies, Jean-Louis: “Alguns malentendidos entre
Hegel e os Juristas”, in Hegel et la Philosophie du Droit. Ensaios por E. Weil, K.-H. Ilting, E.
Fleischmann, B. Bourgeois, J.l. Gardies (Paris, PUF, 1979), página 131 e
seguintes.
[15] Cf. Lukes, Seteven: Émile Durkheim, his life and work
(London, Penguin Books, 1977), página 88.
[16] Leibfried, Stephan, Möllers, Christoph, Schmied,
Christoph, Zumbansen, Peer:: “Redefining the Traditional Pillars of German Legal Studies and Setting the Stage for Contemporary
Interdisciplinary Research” in German Law Journal, Review of Developments in German, European
and International Jurisprudence, número 8 (August 2006) no site http://www.germanlawjournal.com/
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