Fundada há 70 anos, Livraria Francesa coleciona momentos de glória e crise
Karime Xavier/Folhapress | ||
Silvia Monteil, neta do fundador da Livraria Francesa, que acaba de completar sete décadas |
Entre o fervilhar de vendedores ambulantes e desempregados que leem
anúncios de vagas, o nº 275 da Barão de Itapetininga, no centro de São
Paulo, preserva um endereço que é sinônimo do livro francês no Brasil,
com a história e a presença da "intelligentsia" paulista. É ali a sede
da Livraria Francesa, que acaba de completar sete décadas.
Por essas estantes excursionaram intelectuais, estudantes, professores
ou curiosos à procura de novidades vindas direto de Paris.
O engenheiro Paul Monteil, fundador da livraria, resolveu vender tudo e
montar o espaço pouco depois do fim da Segunda Guerra. O empreendimento
atravessou várias fases. Resiste com firmeza às crises, mantendo a
filosofia de oferecer aos leitores pérolas editoriais que aterrissam em
importações diárias por via área, e duas grandes realizadas anualmente
por via marítima.
O resultado é um leque variado que comporta mais de 100 mil títulos, à
disposição dos bolsos e interesses de leitores que dominam a língua de
Baudelaire.
Silvia Monteil é neta do fundador, mas agora tem apoio de quatro sócios.
Hoje, a livraria se expandiu para o Rio de Janeiro e Brasília.
Em São Paulo são quatro lojas (uma delas no ABC). Atendem em todo o
país, e parece que a curiosidade das novas gerações –apesar da hegemonia
anglófona–, não diminuiu. Segundo Silvia, "o livro didático é o que nos
permite manter a linha e o fundo da livraria, sem alterar sua tendência
original".
As parcerias são vitais para que a Francesa siga ativa. Nos últimos dez
anos, estreitou a colaboração com universidades e com a Aliança
Francesa, para além dos clientes habituais que percorrem o corredor e
adentram o salão escoltados pelas lombadas elegantes da coleção Plêiade.
A mais antiga funcionária é Daysi Kobushi, responsável pela seleção
disponível. Há 40 anos, ela tem por companhia o cheiro dos livros e o
brilho das estantes. Assistiu a muitas histórias e tornou-se "tiete" de
visitantes ilustres.
"Temos e tivermos vários clientes fiéis. O professor Antonio Candido
[1918-2017], o sociólogo Maurício Tragtenberg [1929-1998], o filósofo
Paulo Arantes e o professor Roberto Romano."
Há histórias curiosas de clientes, como a do tradutor Jamil Almansur
Haddad (1914-1988), que entrava e ficava falando sozinho diante das
estantes, conversando com os volumes.
Outra é a do frequentador que enviou um pacote de livros com um bilhete
que informava a devolução de exemplares que havia tomado "emprestado", e
agradecia pela "ajuda".
Convém sublinhar que décadas atrás a Barão de Itapetininga era uma via
que concentrava livrarias como a Partenon, a Civilização e a
Brasiliense, esta com sua famosa caipirinha e clientes cativos que se
abasteciam de obras e drinques. A Livraria Francesa fazia parte desse
circuito.
JEAN-PAUL E MICHEL
Nos anos 1960, criou alarde a noite de autógrafos de Jean-Paul Sartre,
que viajou pelo país com Simone de Beauvoir. "Minha avó contava que a
fila se estendeu pela Barão de Itapetininga, venderam muitos livros",
diz Silvia.
Nos anos 1970, o visitante ilustre foi Michel Foucault. "Ele entrou
calado, com sua blusa cacharel, e seguiu até a seção de filosofia para
ver se seus livros estavam lá.", rememora Daysi Kobushi.
A livraria trilhou esses anos como testemunha das transformações
políticas, culturais e econômicas, inclusive nos períodos de
recrudescimento. "Nos anos da ditadura, os livros da Maspero [editora
tradicional parisiense, fundada em 1954, com foco em livros de esquerda]
não eram embrulhados com o papel da livraria para evitar que a polícia
soubesse que eram adquiridos aqui", recorda-se Daysi.
Um fato burlesco acerca da perseguição praticada no período deu-se com
um gerente que fora chamado pela polícia para explicar por que havia um
livro sobre bombas, cujo título era "Construction des bombes
hydrauliques" (construção de bombas hidráulicas). "Eles acreditavam que
era um manual para terroristas...", conta Daysi, aos risos.
Todas as tendências se reuniam ali, mas com predominância da esquerda,
devido à ligação de Paul Monteil ao partido comunista. "Meu avô chegou a
hospedar Di Cavalcanti no sítio que tinha em São Roque para fugir da
repressão de Vargas. Ele mesmo se escondeu lá por um tempo, devido à sua
ligação com o partido", lembra-se Silvia.
O livreiro francês sempre teve problemas, conforme relembra a neta:
"Naquela altura chegou a ser preso, mas o Oswald de Andrade intercedeu e
ele foi solto".
Com a morte de Paul, em 1973, coube à esposa e à filha –Juliette e
Claudie– darem continuidade à livraria. Seu destino, agora, está
assegurado pela neta. A programação para saudar a efeméride prosseguirá
até o fim do ano, com debates e leituras.
O poeta Carlos Drummond de Andrade homenageou, no Rio, sua livraria
predileta com um poema, e a Leonardo da Vinci se eternizou. Bem que a
Francesa merecia algo similar, por ser um ícone discreto desta
megalópole.
LIVRARIA FRANCESA
QUANDO de seg. a sex., das 9h30 às 18h30; sáb. das 10h às 14h
ONDE r. Barão de Itapetininga, 275; tel. (11) 3231-4555
JORGE HENRIQUE BASTOS, jornalista, crítico e tradutor, organizou "Poesia Brasileira Contemporânea - dos Modernistas à Atualidade" (ed. Antígona).
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