Semelhanças provocam mais rejeição do que diferenças
Civilização Extrema: parte 2 de 5
Reportagem:
Juliano Tatsch e Suzy Scarton
Juliano Tatsch e Suzy Scarton
Arte:
Thiago Machado
Thiago Machado
Edição:
Daniel Sanes
Juliano Tatsch
Paula Sória Quedi
Daniel Sanes
Juliano Tatsch
Paula Sória Quedi
Edição para internet:
Paulo Serpa Antunes
Paulo Serpa Antunes
Uma sociedade polarizada, na qual os radicalismos se
sobrepõem ao equilíbrio ponderado de opiniões, vive um dilema de
responsabilidades. Por onde passa a radicalização na esfera social? Ao
mesmo tempo em que o recrudescimento das ações de intolerância é
percebido como um elemento de massa, o papel do indivíduo nesse cenário
não pode ser desprezado.
Assim, surge a seguinte questão: a intolerância é um fenômeno da
sociedade, no qual a pessoa se vê como uma folha em meio à ventania,
sendo levada pelo comportamento geral; ou é uma ação própria do
indivíduo, que decide, sem grandes influências do fator externo, tomar o
caminho da radicalização com base em sua visão de mundo?
Para o psicanalista e pós-doutor pela Universidade de Londres, na
Inglaterra, João Angelo Fantini, a tolerância implica algo que as
pessoas não aprovam, mas não podem evitar. Segundo o professor da
Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, a tolerância pode ser
pensada como "um tipo de defesa narcísica inconsciente, cuja compensação
para o sujeito se faria em termos do centralismo cultural ou impotência
benevolente". A intolerância, por outro lado, indica que o "ponto de
partida para reconhecer o outro é sempre negativo".
Organizador do livro Raízes da Intolerância (EdUFSCar,
2014), Fantini observa que a psicanálise aponta que as mais virulentas
manifestações de intolerância são reservadas às pessoas "estranhas", que
tentam agir e falar como aqueles que se julgam cidadãos natos. "Quanto
mais esses 'estranhos' tentam emular e imitar, isto é, quanto mais eles
tentam 'pertencer', mais feroz aparece a rejeição", observa.
Isso pode ser observado, por exemplo, no preconceito aos
homossexuais. A rejeição mais forte é direcionada àqueles que, a um
primeiro olhar, não deixam clara sua orientação sexual. O mesmo é
percebido quando comunidades imigrantes deixam seus "guetos", ou bairros
e ruas vistas como pertencentes a eles. O bairro árabe, a zona cigana, a
rua dos profissionais do sexo não incomodam tanto como quando essas
pessoas se misturam às outras. Diante disso, a concepção de uma
sociedade "tolerante" e não "respeitosa" aponta para um conflito em
constante latência, um quadro de tensão permanente.
Novas tecnologias são terreno fértil para fanatismos
Não há quem não tenha presenciado ou participado de algum debate
ríspido, às vezes agressivo, sobre um assunto qualquer. O embate de
ideias é a base de uma democracia livre, e, assim sendo, deve ser
fomentado. Quando esse enfrentamento, porém, ultrapassa o limite da
civilidade e das opiniões, e se transforma em uma troca vazia de ataques
sem argumentos, de ofensas sem pensamento reflexivo a respeito da
questão, o que antes era o oxigênio de uma sociedade democrática vira o
laço que a enforca.
É possível que o surgimento da internet tenha ocasionado a mais
impactante transformação nos modos de comunicação, se não de vida, no
último século. Os conceitos de distância e tempo foram ressignificados
por meio das redes. O que era distante, agora, está ao alcance de um
clique. O que demorava dias, semanas, meses para chegar, agora, é
recebido instantaneamente.
A internet, com seus incontáveis benefícios, porém, é apenas uma
ferramenta. E, assim como qualquer outra, pode ser usada para fazer o
bem ou para fazer o mal. Se, desde o seu surgimento, ela já foi espaço
propício para a disseminação da maldade, foi, mais recentemente, com o
surgimento e posterior disseminação do uso das chamadas redes sociais,
que a propagação do discurso de ódio, da intolerância, do extremismo
chegou ao ápice.
Revolução recente
Para o filósofo Roberto Romano, ainda é cedo para se fazer uma
análise definitiva sobre o papel da internet na formação de uma
sociedade que não respeita o diferente. Segundo ele, toda grande
inovação cultural leva muito tempo para ser assimilada e, antes de ser
totalmente, já surgiu outra inovação mais avançada do que ela. "A
humanidade precisa de certo tempo para digerir o que de mais profundo a
revolução tecnológica produz. No caso da internet, das redes sociais,
estamos apenas no começo. Não há, ainda, uma maturação, sequer
tecnológica. Por enquanto, é um instrumento de ataque de todos contra
todos", afirma.
Romano salienta o fato de que boa parte das pessoas que fazem uso
de redes sociais, como Facebook e Twitter, não possui base da cultura
anterior à revolução tecnológica. "Não tem a base da História, da
Economia, da Matemática, por exemplo. A grande maioria não conseguiu
dominar completamente essa cultura anterior. A humanidade ainda não
conseguiu isso com o Renascimento (período compreendido entre os séculos
XV e XVI)", aponta.
Falso anonimato
A novidade que as redes sociais representam também é ressaltada
como um fator importante pelo psicanalista João Angelo Fantini. Ele
alerta que, mesmo não existindo mais, o sentimento imaginário de
anonimato que as redes proporcionam permanece. Assim, é possível pensar
que as redes funcionam na mesma lógica da experiência dos indivíduos na
massa (como em um estádio de futebol, por exemplo). "Ela oferece um
falso anonimato e a possibilidade de imersão e de perda de limites, isto
é, de o sujeito agir em público como se estivesse individualmente fora
do alcance dos outros, revelando os segredos sujos que evitaria mostrar
em sociedade", afirma.
Assim, se vendo em um espaço onde tudo é permitido, no qual não há
limites nem regras, o indivíduo se comporta sem saber muito bem para
onde ir, dançando conforme a música. Fantini salienta que o espetáculo
nas redes sociais pode ser "um teatro onde cada um tenta defender - mais
que suas ideias políticas - a sua própria crença". No campo da
política, isso pode significar uma forma de defesa de crença pessoal
que, não raramente, resulta em uma posição que ultrapassa os fatos,
vindo a ser entendida mais como uma garantia à integridade do próprio
indivíduo, uma forma de defesa narcísica. "Essa situação não atinge
somente 'ignorantes', 'fascistas', 'comunistas' ou tantos outros
significantes utilizados nos posts agressivos encontrados nas mídias
sociais. Atinge qualquer um", afirma o pesquisador, lembrando a lição
freudiana de que a informação e a educação não necessariamente afetam o
modo como os indivíduos percebem o mundo. "Nosso inconsciente afeta
nossa percepção de mundo, e nossos preconceitos podem nos levar a
conclusões independentes da veracidade ou não das mensagens."
Bolhas de opinião
Caminhando por um terreno que não conhece bem, o indivíduo acaba
por ser um ator pouco consciente do papel que interpreta, sendo, em boa
parte das vezes, levado pela força do movimento de arrasto das redes. As
redes sociais também provocam a formação de "bolhas", nas quais o
indivíduo se isola de quem pensa diferentemente de si. O fenômeno é
fator importante na formação da narrativa de pensamento único.
O papel que as "bolhas" possuem também é salientado pelo doutor em
Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Marcos Rolim.
Por se aproximar e se ver cercado de pessoas que pensam como ele, o
indivíduo passa seus dias dialogando com seus iguais. "Isso produz
engrandecimento sistêmico. Perco a diferença, que só me pode ser
oferecida pelo estranho, por quem vê o mundo diferente. E, quando há um
contato, uma fricção entre as bolhas, isso só produz descarga elétrica",
diz.
Debate cego
Por fim, a perda de espaço por parte da imprensa tradicional na
formação de narrativas, que deveria atuar como mediadora e contraponto
ao quadro de desinformação consciente - ou pós-verdade -, incrementa o
cenário de radicalização dos discursos. "Com frequência, o resultado
disso é um esgarçamento dos laços sociais em que, não raro, não apenas
inimigos ou desconhecidos, mas mesmo velhos amigos param de trocar
ideias e se entrincheiram junto a outros que - aparentemente -
compartilham seus pontos de vista, passando a fazer fila com aqueles
que, às vezes, têm apenas uma opinião em comum, mas outras não
necessariamente compartilhadas", observa Fantini.
Dessa forma, o debate se desvirtua em seu sentido - de troca de
ideias e pontos de vista -, passando a ser um ringue de imposição de
visões. "Há uma diferença essencial entre um debate em busca de uma
verdade e um confronto dirigido à imposição de convicções. O primeiro
requer o reconhecimento de um limite de todo e qualquer saber e a
existência de um vasto território de ignorância. O segundo somente
requer domínio das artimanhas de uma grande habilidade retórica", aponta
o psicanalista e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano Alfredo
Jerusalinsky.
O estudioso ressalta que toda a ilusão de ser detentor de uma
verdade total é fértil para o surgimento de posições extremistas, pois
se tratam de discursos que suprimem a dúvida e a interrogação. "A
liberdade consiste no exercício das diferenças. As diferenças não cabem
onde somente há certezas", diz.
O individual e o coletivo
A polarização das discussões no campo político é influenciada pela
relação entre fatores de cunho individual e de cunho coletivo.
Jerusalinsky afirma que, quando uma pessoa ataca outra para fazer a
defesa de um ponto de vista, o que ela esconde, na verdade, é o desejo
de defender a si própria. Conforme o psicanalista, em termos de discurso
e linguagem, o sujeito é o ponto de intersecção entre o individual e o
coletivo. "Ele tem uma série de significações que o singularizam e o
permitem saber quem é. Com essa bagagem de significações, ele vai em
direção ao coletivo", explica.
De acordo com o pesquisador, que é mestre em Psicologia Clínica,
quando o cidadão não se vê representado no campo do discurso - que
compreende, entre outros, as políticas de Estado e de governo, os
sistemas de poder, as leis escritas, que substituem as leis simbólicas
-, começa a pedir que alguém resolva esse dilema. Assim, em desespero, o
sujeito vai em busca de algo que represente alguma solução. Nessa
busca, ele se torna passional, pois é a vida dele que está em jogo. "Ele
não pode discutir isso com calma. Essa é a razão de a discussão não ser
muito sensata."
Na análise do psicanalista, a radicalização das posições passa
umbilicalmente pela ausência de representatividade do indivíduo na teia
social, pois, quando o discurso social se torna totalitário, como
atualmente, ele reduz o leque de alternativas de representação para o
sujeito. Sem se ver representado por quem comanda o discurso social, a
busca de novos traços identificatórios se amplifica. É aí que a internet
ganha espaço. "A rede pode servir para criar grupos. Esses pequenos
núcleos permitem viver na ilusão de que, pelo menos, não se está só. Não
há para onde ir, mas, pelo menos, não se está só", conclui
Jerusalinsky.
Linha que separa condutas opostas é frágil
Conforme o Dicionário Houaiss, respeito e tolerância são
conceitos diferentes. Respeito é definido como "consideração,
deferência, reverência", além de "estima ou consideração por alguém ou
algo". Já a definição de tolerância é "indulgência, condescendência.
Tendência a admitir, nos outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir
diferentes ou mesmo diametralmente opostas às adotadas por si mesmo".
Assim, a linha que separa a tolerância da intolerância é tênue. A
história já deu provas disso. Uma crise econômica, com consequente
aumento do desemprego, faz com que imigrantes passem a não ser mais
vistos com olhos condescendentes. A ascensão de classes menos
favorecidas a postos antes impossíveis de serem ocupados gera um
inconformismo por parte daqueles que, até então, detinham o monopólio
dessas conquistas. No Brasil, esse fenômeno se deu recentemente. "O
preconceito de classe ganhou mais espaço depois da chamada década
inclusiva. Segmentos que antes não circulavam em determinados espaços,
passaram a circular. A chegada desses 'outsiders' causa um incômodo nos
grupos que estavam estabelecidos", corrobora o pós-doutor em História
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Dilton Cândido Santos
Maynard.
O embate com o semelhante, com a reserva de nossas emoções mais
virulentas àqueles que mais nos lembram e nos ameaçam por essa
semelhança, foi chamado por Sigmund Freud (1856-1939), "pai" da
psicanálise, de "narcisismo das pequenas diferenças". O psicanalista
Alfredo Jerusalinsky afirma que esses sentimentos negativos são
provocados por um efeito de espelho: o sujeito vê no outro o que ele
desejaria ser (inveja), percebe o que o outro tem como uma privação de
si próprio (ódio), e sente sua frustração como causada pelo outro
(agressão). "Quase todo intolerante vive em constante pavor de não ser
quem ele acredita ser. Cabe evocar uma magnífica obra de Saramago, O
Homem Duplicado, em que o maior horror é descobrir que o outro é, em
verdade, eu mesmo", salienta Jerusalinsky.
A incapacidade do diálogo e a intolerância religiosa
Ainda que posições e atos radicais ocorram e sejam vistos
em todos os campos sociais, praticamente sem exceções, atualmente,
quando se ouve a palavra "extremismo", a primeira imagem que vem à
cabeça é a dos terroristas islâmicos levando o horror ao mundo
ocidental. A contradição entre uma religião e ações violentas em nome
dela é evidente. A relação entre ambas, porém, é histórica, e é
impossível falar de uma sem mencionar a outra. Perseguir quem professa
uma fé diferente da sua faz parte do processo de desenvolvimento e
consolidação das crenças religiosas.
Doutor em Filosofia pela L'École des Hautes Études en Sciences
Sociales, da França, e professor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Roberto Romano observa, porém, que o extremismo ganha espaço
em um momento posterior ao seu surgimento das religiões. O filósofo
aponta que, uma vez atingido esse momento do estabelecimento de dogmas,
há o perigo do extremismo, uma vez que o fato religioso se tornou um
fato de poder. "Aí, a intolerância aumenta, pois se trata de garantir a
obediência, e não mais a revelação divina."
A forma como a fé é professada é ponto primordial para se entender
as tendências intolerantes de cada religião. Uma das considerações diz
respeito à linha-base das crenças, ou seja, as figuras divinas que devem
ser louvadas. Dentro desta análise, é comum a constatação de que
religiões monoteístas - que professam um deus único - seriam mais
passíveis de se tornarem ou criarem ambientes propícios a atitudes
radicais.
O teólogo Ricardo Gondim aponta, entretanto, que a crítica não se
sustenta, pois, dentro do próprio monoteísmo, existem diversas ideias e
concepções a respeito de Deus. "Quanto mais a religião tenta se
sistematizar, se estruturar dogmaticamente, maior é a tendência de se
tornar intolerante", pondera o pastor e presidente da Igreja Betesda.
Motivos do extremismo
Paralelamente a isso, surge a curiosidade a respeito dos motivos
que levam as pessoas a se tornarem adeptas de uma religião. As normas
que fundamentam as crenças são pontos preponderantes na decisão de um
indivíduo em seguir aquela fé? Para o professor de Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo Jung Mo Sung, os praticantes de
qualquer religião consideram os dogmas como fator secundário. "Se você
perguntar quais são as doutrinas fundamentais às pessoas que vão às
igrejas, elas não sabem. A religião é muito mais do que doutrina. É
pertencer a uma comunidade que compartilha de uma certa visão de mundo.
Se você perguntar para católicos e protestantes o que é a Santíssima
Trindade, ninguém sabe", enfatiza.
O teólogo explica que todas as religiões - assim como qualquer
grupamento - têm delimitações do que é certo e do que é errado, que
acabam por condicionar a formação de grupos. "Diferenciação é diferente
de intolerância", salienta.
Globalmente identificado com o islamismo, o extremismo religioso
parte da interpretação de que aqueles que não seguem as palavras do
Alcorão - escritura sagrada - são infiéis e que, por isso, não merecem
viver; e que a sociedade muçulmana foi corrompida pelos valores morais
do Ocidente, sendo necessário um retorno ao Islã original. A religião
criada pelo profeta Maomé no século VI, porém, não é, em sua totalidade,
a motivação para o terror, sendo usada por alguns grupos extremistas
como uma "cortina de fumaça" para esconder suas reais razões,
político-econômicas.
Gondim não crê que documentos e textos sagrados provoquem
manifestações extremas por parte de fiéis. Para ele, o conservadorismo,
dentro de determinada crença, faz com que surja a ideia de que a herança
legada pelos primeiros seguidores daquela religião possa ser perdida.
"Vemos isso com exuberância no mundo muçulmano, mas não é privilégio
deles. Tem o fundamentalismo judaico, que legitima o atropelo que estão
fazendo com os palestinos, porque, no passado, essa terra foi dada por
Abraão", exemplifica.
Jung Mo Sung, por sua vez, identifica, junto com interpretações
equivocadas dos escritos fundadores, pontos de intolerância nos textos
religiosos sagrados. No caso da Bíblia cristã, o teólogo lembra que o
critério para a aceitação do diferente não passa pela religião do outro,
mas sim se o que ela professa vai contra o que é entendido como
aliança. "Se essa religião defende o direito do pobre, do órfão, da
viúva e do estrangeiro, que é a ladainha dos profetas, ótimo. A
intolerância deles não é com religião. É com o princípio ético que está
por trás do discurso religioso."
Um caso recente ocorrido no Brasil exemplifica bem a posição do
estudioso. Quando das últimas eleições presidenciais, em 2014,
conservadores católicos e evangélicos se uniram contra candidatos
defensores do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do aborto. As
diferenças religiosas foram suplantadas pelos interesses comuns.
Para Gondim, no caso da intolerância islâmica, é necessário
salientar que ela se relaciona mais fortemente com os regimes
ditatoriais que dominam o Oriente Médio do que com a própria religião em
si. "A pergunta que temos que fazer é como se desenvolveu essa
intolerância do Islã em relação ao mundo ocidental. A resposta está no
colonialismo, principalmente o inglês, que devastou com a configuração
do Oriente Médio meramente por fins econômicos", argumenta.
A religião como 'cortina de fumaça'
O ingrediente político-econômico, aliás, está intrinsecamente
ligado aos casos de radicalização, aparentemente, de motivação
religiosa. O professor de História da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul Francisco Marshall enxerga, no cenário global, um conflito pouco
insuflado por motivações religiosas, e sim alimentado pela indústria
armamentícia e pela disputa por fontes e canais de transmissão da
produção petrolífera.
"O que parece, para o mundo, uma guerra religiosa é um cenário
fomentado por indústrias que vivem dessas guerras. Quando olhamos para o
Estado Islâmico, temos de ter o cuidado para não enxergar, ali a
cultura islâmica, que tem, em todo o mundo, soluções de convívio
saudáveis", aponta.
O extremismo religioso e as ideologias são as duas grandes
vertentes que, caminhando lado a lado, favorecem posturas extremas. Para
o doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Marcos Rolim, é improvável que uma pessoa seja capaz de praticar o mal
absoluto se não compartilhar de uma ideologia e de uma religião. "É
preciso que alguma ideia, algum dogma ampare essa decisão que permite
que alguém exploda uma bomba e mate centenas de inocentes", reflete.
Os grupos terroristas organizados - Estado Islâmico, Al Qaeda, Boko
Haram, entre outros - proporcionam, também, uma outra forma de relação
entre seus integrantes. Esses movimentos oferecem, aparentemente, uma
nova forma de laço social. O psicanalista João Ângelo Fantini indica,
também, estudos que apontam o tédio e a falta de perspectivas futuras
como motivação para um engajamento em atividades aparentemente mais
significativas. "Estudos mostram que a adoção de uma ideologia política
mais extrema seria uma maneira que as pessoas têm de voltar a injetar
significado em uma situação chata, ou seja, o tédio parece ser também
uma influência, muito embora não se saiba qual a importância do seu
papel", observa.
Preconceito, sede de poder e intolerância religiosa no Brasil
Religiões de matriz africana são alvo recorrente de ataques
MARCELO CAMARGO/ABR/JC
Caminhando em direção contrária às suas "irmãs" cristãs e
islâmicas, nas religiões de matriz africana, o desenvolvimento de uma
crença radical nunca se fez presente. São raros os casos de intolerância
partindo de pessoas que seguem as religiões afro. Por outro lado, elas
são vítimas recorrentes de preconceito e perseguição no Brasil.
O filósofo Roberto Romano aponta o escravismo e as desigualdades
sociais como fatores de preconceito. "Há conexões muito fortes entre a
intolerância e a composição socioeconômica dos seus seguidores", diz.
Ele salienta que, apesar disso, não se pode dizer que é uma questão
apenas de ordem econômico-social. "Há um elemento de fanatismo forte",
enfatiza. O doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista
de São Paulo Jung Mo Sung acredita, no entanto, que o preconceito contra
religiões afro-brasileiras já foi maior, uma vez que já foram até
proibidas no País.
No atual momento, o preconceito e a intolerância estão mais
presentes nas chamadas igrejas neopentecostais. Tais instituições - que
têm na Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) a maior expoente -
encabeçam um movimento político, religioso e socioeconômico
razoavelmente recente. "Há um discurso antimoderno, de combate ao Estado
laico, à pesquisa científica, à saúde pública, às questões de gênero,
que representa um retrocesso muito forte", pondera o professor de
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Francisco
Marshall.
Invertendo a lógica da pregação religiosa, que, primordialmente,
clama por amor, convivência harmoniosa, justiça social e paz entre os
povos, o movimento neopentecostal no Brasil - principalmente por parte
de sua maior representante - é focado na desconstrução do outro. "São
igrejas baseadas em uma proposta negativa. O discurso religioso de
certos pastores, que não sabem o que propor de positivo, vive da
pregação agressiva contra os outros", afirma Sung.
A sedução do poder
A intolerância religiosa anda de mãos dadas com a assunção das
crenças a posições de comando. Religiões ou doutrinas que nunca
detiveram poder, de modo geral, não são origem e multiplicadores de
posições radicais, vide as religiões afro e o budismo. Por outro lado, a
Igreja Católica foi o próprio poder por séculos, e as evangélicas
atuais estão, a cada eleição, ganhando espaço nos Legislativos e
Executivos municipais, estaduais e federal.
A chamada bancada evangélica no Parlamento tem se fortalecido, com a
religião assumindo posições de poder e fazendo uso de um discurso
excludente para angariar mais fiéis/eleitores. Sung destaca que algumas
autoridades de determinadas igrejas se beneficiam com o aumento de
violência, pois, fomentando a agressividade no campo religioso, seus
poderes são fortalecidos. "Se você ganha poder político em nome da
intolerância, a intolerância passa a ser uma coisa vital. Como se elegeu
a bancada evangélica? Dizendo que evangélico só pode votar em
evangélico, porque o resto é do diabo. Se você abandona esse discurso,
perde poder político", afirma.
Desta forma, incluso em um meio no qual questionar as diretrizes da
religião e das lideranças religiosas é difícil - na medida em que isso
significaria, de algum modo, questionar a própria fé -, o fiel se
encontra entre a cruz e a espada quando vê que aquilo em que acredita já
não mais é o que sua religião defende.
Para o teólogo Ricardo Gondim, o entendimento de que nem tudo o que
as religiões defendem deve ser seguido cegamente passa pela percepção
de que elas são constituições humanas, e não leis divinas que desceram
do céu. Assim, por serem construtos sociais, convivem com lutas internas
por poder, vaidades e tensões. O teólogo enfatiza que a intolerância
religiosa consiste na inabilidade em dialogar com quem pensa
diferentemente.
"Não gosto das expressões 'intolerância' e 'tolerância'. Gosto da
expressão 'coexistência', saber coexistir com o diferente e dialogar. E
diálogo pressupõe que eu não tenho toda a verdade, eu não sou dono da
verdade; e quando a gente percebe que as nossas construções religiosas
são humanas, e não vindas diretamente da boca de Deus, eu me abro para o
diálogo. Sei que não tenho a única resposta e que ela está
democraticamente espalhada entre todos", conclui.
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