Entre a ética e a Estética. Arte, política e crítica social em Diderot
Ao analisar a Divina
Comédia, especialmente as passagens sobre o Purgatório, Erich Auerbach
(1) afirma que aos habitantes daquele lugar, como têm a alma separada dos
corpos, Dante concede um corpo espectral tornando-os reconhecíveis para que
posssam se exprimir e sofrer (2) A relação dos referidos entes com a vida
terrena limita-se à memória. O poeta acrescenta que eles possuem conhecimentos
do passado e do futuro, os quais ultrapassam as medidas terrenas. Todos
enxergam com nitidez como se fossem hipermétropes. Acontecimentos ocorridos na
terra num passado longinquo estão ao seu alcance. Eles podem predizer o futuro mas permanecem cegos
para o presente terreno, pois vivem uma experiência parada no tempo. Os mortos
estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a memória e a
participação no mesmo mundo é imaginada por Dante de tal modo, que a paisagem
do além está cheia dele.
Existem filósofos que vivem
como se estivessem no purgatório dantesco, porque exibem visão aguda,
conhecimento do passado e do porvir, mas seu juízo sobre o presente em que
vivem é quase nulo. Diderot abriu caminhos para o pensamento filosófico,
político, cientítico e artístico no século 18. Seu diagnóstico do mesmo século,
no entanto, deixa muitas sombras para a crítica. Quase todos os testemunhos
severos do pensador sobre seus dias vieram a lume post mortem. É o caso, em
especial, do Sobrinho de Rameau. Os manuscritos sobre o Projeto de uma Constituição,
acerba crítica do pretenso “despotismo esclarecido” de Catarina 2 mostram o
quanto era violenta a inconformidade que residia na mente diderotiana em
relação aos usos e costumes políticos contemporâneos. Mas é sobretudo no campo do relacionamento
entre ética e estética que os textos diderotianos mostram sua maior zona de
sombras. Defensor da liberdade e dos procedimentos técnicos em todas as áreas
do espírito, ele ajudou muito na tarefa emancipatória da modernidade. Mas a sua
apologia das artes foi definida por valores transcendentes ao campo artístico,
a ele impondo amarras que não lhe cabem.
“O sestro de Horácio era
versejar, o meu, moralizar”. Esta frase diz bem o problema herdado pelos
comentadores de Diderot: sua idéia da arte, liberadora tendo-se em conta os
costumes do século 18, é marcada por preocupações de ordem ética. Não estaria
aí uma pista para se entender os idéarios do século 19 e 20 que pretenderam
domesticar a estética em prol de alvos doutrinários ? Para efetivar um juízo
seguro sobre tal ponto é preciso um trabalho amplo e objetivo de cotejo dos
textos e da vida cultural moderna. Existem tentativas ligadas a fases
posteriores da história européia, nas quais elos são estabelecidos, por
exemplo, entre doutrinas políticas e visões estéticas. Os escritos de Paul
Benichou, como o fundamental Le temps des prophètes, doctrines de l ´âge
romantique, entram nesta linha
de pesquisa. No caso do século 18 e principalmente de Denis Diderot, existem os
materiais no canteiro de obras, mas poucos trabalhos analisaram
sistemáticamente a importância da hegemonia ética sobre as reflexões estéticas
do enciclopedista.
Um traço fundamental do
pensamento diderotiano encontra-se na tentativa, só prosseguida com intensidade
igual ou superior no romantismo do século 19, de encontrar conexões entre os
sentidos humanos, o que Diderot chama de “tradução”, o que levou às descobertas
de atalhos entre as artes, as ciências, as técnicas. A Encyclopédie traz os
materiais para semelhante tarefa. Em textos de crítica literária ou sobre a
pintura, a música, a poesia, Diderot apresenta muitas pistas, mas é necessário,
evidentemente, indicar as fontes inglêsas e francêsas —além das gregas antigas e romanas— da tarefa
empreendida pelo filósofo. Não é possível esquecer John Locke e Berkeley, que deram tanto a base epistemológica quanto
o aguilhão a ser vencido para que o pensamento diderotiano se explicitasse.
Também não é possível olvidar Condillac, sobretudo o do Ensaio sobre os conhecimentos
humanos. Importa, no entanto, sublinhar a exploração da sinestesia,
algo que se encontra entre o sonho e o delírio —e por tal motivo, apreciado
pelos românticos— para se compreender o quanto
importa, na ética e na estética formuladas por Diderot, a tentativa de
abrir passagens entre os sentidos e as artes, como pressuposto da reforma da
sociedade e do Estado.
Herder fez notar que os
sentidos, cada um deles, “tem a sua linguagem específica, os seus sinais, os
seus tipos e esquemas. E com eles, também um diferente potencial de conhecimentos
e mobilização afetiva. Cada sentido tem a sua ontologia específica. Sendo o
mais universal e o mais amplo, a vista tem limites, pois depende das condições
da luz e da visibilidade. Mas onde falha a luz e a visão, ainda resta lugar
para outras modalidades da percepção humana”. (3) Tal doutrina deve-se a
Diderot. O pressuposto da pesquisa com base visual era a permanência do objeto
verdadeiro. Diderot recusa ao mesmo tempo o símile optico para o conhecimento e
a idéia de ordem para o mundo físico e humano. O caos é anterior e sucede a
todo conhecimento. (4) “O universo” diz R. Nicklaus ao comentar a atitude
filosófica diderotiana, “desde toda a eternidade toma formas diferentes num
devir incessante sem começo nem fim, enquanto nosso mundo finito segue lenta
mas inelutavelmente rumo ao seu próprio fim numa ‘depuração geral’”. (5) A
partir da Carta sobre os cegos e da Carta sobre os surdos e mudos não
existe supremacia dos olhos, os demais sentidos não imitam a vista. É preciso a
tradução de um sentido para outro.
Seguidor de Francis Bacon,
Diderot assume a idéia do pensador inglês segundo a qual a visão sinótica em
ciência é modificável pelo trabalho do pesquisador. A comunicação entre os
sentidos corresponde a uma arte. A sua junção permite dizer que não há mais a
idéia de espaço único, mas pelo menos de cinco espaços: o optico, o tátil, o
sonoro, o cinésico, o olfativo. Cada um deles possui estrutura própria e
descontínua em relação a todos os demais. Só a tradução de uns aos outros
permitiria captar a simultâneidade entre nós e nós mesmos, entre nós e os
demais seres humanos. “Nossa alma é um quadro que se move, segundo o qual nós
pintamos sem cessar…o pincel executa em longo prazo o que o olho do pintor
abarca num só golpe”. Torna-se preciso “tatear” a alteridade a ser conhecida
sob pena de reduzí-la ao idiotismo do sujeito ou de uma função subjetiva posta
arbitráriamente como superior (é o caso do imperialismo do olhar, na tradição
metafísica) às demais. O próprio sujeito é uma reunião instável de sentidos :
“todos os nossos órgãos são apenas animais distintos que a lei da continuidade
mantém numa simpatia, numa unidade, numa identidade geral”. O eu, segundo
Diderot, “resulta da memória, a qual liga um indivíduo à sequência de suas
sensações”. A ciência e a cultura, assim, tornam-se mais árduas, mais
exigentes, mais incertas. Não é mais possível aceitar a suposta harmonia, ou o
cosmos. O conhecimento pode ser atingido, mas o dogmatismo é refutado na sua
raíz. (6)
Cito Laurent Versini, o editor
abalizado das obras diderotianas, que analisa o tema indicado acima. Como são
constituidos o nosso conhecimento dos objetos e a linguagem? “A partir das
percepções simultâneas ou sinestesias. Como o artista poderia expôr essas
percepções simultâneas? Ele deve ser ao mesmo tempo pintor, músico e poeta, e
jogar com as correspondências e sinestesias como um simbolista. O pintor,
condenado ao instantâneo, é o primeiro distanciado, mesmo se escolhe bem o seu
‘momento’. O poeta, que pode desenrolar todo um fresco no tempo, sai vencedor
do confronto, idéia que sempre atormentou Diderot, quando ele quis muito
honestamente homenagear os pintores nos Salões”. Mas o enciclopedista não
desistiu também, nunca, de encontrar analogias que permitissem “reunir as
belezas comuns da poesia, da pintura e da música”. Tal procura o levou a
examinar projetos como o do Padre Castel, com o invento do cravo ocular em
cujas teclas seriam executadas sinfonias coloridas.
Além de mergulhar nos mais
obscuros campos da raison d´État e da ética, Diderot dedicou seu tempo à busca da
beleza na literatura e nas artes. O pensador desempenhou um papel essencial na
história crítica da arte. (7) É claro que ele teve antecessores imediatos como
Roger de Piles, do qual conheceu o Abrégé de la vie des peintres (1699)
e o Cours
de peinture par principes (1708). Nos escritos sobre os Salões,
Diderot apoiou-se em Charles Lebrun (8). Consultando-se o livro fundamental de
Lebrun, Expressions des passions de l ´âme (1727) (9) é possível notar
a relevância dada ao rosto humano, seguindo Lebrun explicitamente André Alciati
(10) e Giambattista Della Porta (11). Pela escolha dos autores, pode-se aventar
a hipótese de que Diderot busca na pintura a passagem do mundo interior das
paixões para a visibilidade representada artísticamente. Como indica Laurent
Versini, Diderot conhece, além de livros sobre a referida arte, obras
importantes sobre as técnicas antigas e modernas como as seguintes: Laocoonte,
o Gladiador
que morre, o Hércules
de Farnesio, a Venus de Médicis, etc. Tais modelos,
copiados milhares de vezes com menor ou maior perícia no mundo artístico e
comercial que reproduzia originais, encontram-se na memória de Diderot. Além
disso, ele viu quadros da Renascença e do século XVII nas coleções do Duque de
Orleans (Palais-Royal) e de outros colecionadores, entre os quais o barão
d´Holbach. Como grande parte dos pensadores europeus, ele sempre desejou viajar
pela Itália, mas não conseguiu. À semelhança de Imanuel Kant, compensou a falha
com livros que descrevem aquele país, por exemplo a Description de l ´Italie
do padre Richard (1760). (12) Quando esteve na Russia, Diderot passou por Leyde
onde viu, maravilhado, os quadros de Rembrandt. E também esteve no Hermitage.
Assim, sua pena fez um apanhado considerável de informações técnicas que lhe
serviram bastante quando descreveu quadros de excelente, média ou medíocre qualidade.
Com isso, ele penetrou a
cultura mais ampla e o campo pictórico que determinaram a Europa do século
dezoito, tempo em que Rafael torna-se um paradigma, seguido de Rubens, de La
Sueur (assuntos religiosos), Tenier para a pintura de gênero e de Lorrain,
Vernet, Robert. Aqueles modelos alarmam, como diz Versini, “os pigmeus” da
época diderotiana. Como todo serviço em estado inicial, Diderot começou sua
empreitada no mundo da pintura de maneira frouxa. Em 1767, no entanto,
apresentou um balanço profundo e extenso daquele ofício na França.
O método diderotiano de
trabalho reúne técnica e estética e com ele se inicia a união, na crítica, de
arte e literatura tal como exercida por escritores como Baudelaire (13) e os
irmãos Goncourt. (14) A exemplo de seus adversários, Fréron em especial, (15)
Diderot trabalhou como jornalista que remete textos (16 ) para um periódico,
com o alvo de informar o leitor. Desse modo, ele forneceu elevação ao
jornalismo, afastou-o das práticas cotidianas (libelos, crônicas da corte,
sensacionalismos, notícias das bolsas, etc.).
Diderot,
bem antes dos Salões, se interessa
pelas artes plásticas. Como lembra Pierre Lepape, desde 1758 ele compreendeu as
dificuldades da tarefa que reside em entender a pintura. Contra os dilentantes
literários que julgavam os quadros com soberana ignorância, ele diz que tais
críticos nada sabem “do desenho, das luzes, das cores, nem da harmonia total,
nem das pinceladas…”. Como é o seu procedimento habitual, o teórico vai “ao encontro dos pintores, com
eles discute os problemas de estética e de técnica”. (16) Os seus comentários mais célebres, os Salões, foram escritos a pedido de Grimm, que mantinha
a Correspondência
Literária, jornal cujos leitores eram os poderosos europeus (reis,
nobres, ricos). Diderot precisava descrever fielmente o que via nos quadros
para atrair a atenção dos distantes
“observadores” para os procedimentos, os assuntos, a maestria ou ineficácia dos
artistas, etc. Já ao dirigir a Encyclopédie ele mergulhara no
aprendizado trazido pelos métodos de pintura ao frequentar os próprios artesãos
(o que ele fez com quase todos os verbetes que editou ou redigiu). No artigo de
sua lavra sobre a composição, pode-se encontrar algumas das bases programáticas
dos Salões.
Vejamos por exemplo o que ele
entende por composição na Enciclopédia. Em primeiro lugar,
trata-se de uma parcela da arte que representa na tela um assunto qualquer, da
maneira mais vantajosa. “Vantagem” aqui significa “emprego eficaz segundo os
fins da pintura” e não o jeito de agradar os olhos do observador ou requerer
dispêndio monetário do seu bolso. A composição exige que se conheça bem, seja
na história ou no interior da natureza, ou ainda na imaginação, tudo o que
supõe o assunto. Não basta conhecer, é preciso possuir o gênio (génie)
que usa tais dados com o gosto conveniente.
Conhecimento e gênio não dispensam a disciplina e o hábito
do trabalho duro. Tais são as condições subjetivas para o trabalho artístico.
Um quadro bem composto é “um todo fechado num só ponto de vista, no qual as
partes concorrem para o mesmo fim e formam por sua correspondência mútua um
conjunto tão real, quanto os dos membros num corpo animal, de modo que um
pedaço de pintura feito por um grande número de pinceladas ao acaso, sem
proporção, sem inteligência ou unidade, não merece o nome de verdadeira
composição, tanto quanto estudos esparsos de pernas, nariz, olhos, na mesma
cartolina, não merecem o nome de retrato ou mesmo de figura humana”.
Os termos desse trecho
denunciam, em alguém cujo apelido é Tonpla,
Platão invertido, a leitura direta do filósofo grego. Mas se Diderot conhece os
Diálogos
na ponta da lingua, ele inverte em sentido materialista as teses
platônicas. A figura do corpo indicada
acima é extraída do Fedro (238a) e nela faz-se referência ao discurso “que deve ser
constituido como um ser vivo, com um corpo próprio, de tal modo que não lhe
falte cabeça ou pés, mas possua um meio e extremidades em relação umas com as
outras partes, redigidas para um todo”.(17) Não apenas na pintura ou na escrita
o preceito platônico é seguido por Diderot. Ele o assume, como sagaz leitor da República,
no ordenamento político: o Estado deve ser um todo cujos membros devem ser
harmonizados de modo vital : “se o corpo é bem composto, se os seus membros são
bons, honestos e bravos cidadãos, patriotas zelosos, homens justos e
esclarecidos, que bela coisa é aquele corpo!”. (18) O bom, próprio da ética,
encontra-se com o belo, mais apropriado à estética. Ambos são requisitos do
convívio entre os seres humanos. Como enuncia Jacques Chouillet: “por mecânico
que seja o ´corpo social´, por corpórea que seja a sociedade humana, ela sempre
será resolvida numa soma de vontades livres, que o filósofo materialista e
determinista que se chama Diderot considera como o último resíduo definível do
fenômeno humano”. (19 )
Platão
indica o discurso e a grafia, Diderot
aponta para a pintura, numa sequência que une, ainda no espírito platônico, a
grafia enquanto escrita e arte pictórica. (20) Mas também é clara a presença da Epistola aos Pisões.(21)
Diderot a adapta mas não esquece o símile entre pintura e poesia, essencial no
texto horaciano. (22 ) É o que afirma o mesmo Diderot logo a seguir: “o pintor
é sujeito em sua composição às mesmas leis que o poeta na sua”. A observação
das três unidades (ação, lugar, tempo) não é menos essencial na pintura
histórica do que na poesia dramática.
A lei da composição é mais
vaga em gêneros de pintura diferentes da histórica, a esta última deve-se ater
o crítico. E Diderot indica que a unidade do tempo representa uma exigência
mais severa para o pintor do que para o poeta. “Concede-se vinte e quatro horas
ao último. Ele pode, sem pecar contra a verossimilhança, reunir num intervalo
de três horas que dura uma representação, todos os acontecimentos que puderem
se suceder naturalmente no espaço de um dia. Mas o pintor possui apenas um
instante quase indivisível. É a este instante que todos os movimentos da
composição devem se relacionar: entre os movimentos, se noto alguns do instante
que precede e do instante que segue, a lei da unidade de tempo é transgredida.
No momento em que Calcas levanta o cutelo sobre o peito de Ifigênia, o horror,
a compaixão, a dor, devem mostrar-se no mais alto grau nos rostos dos
assistentes; Clitemnestra furiosa jogar-se-á sobre o altar, e se esforçará,
apesar dos braços dos soldados que a reterão, por puxar a mão de Calcas e se
colocar entre sua filha e ele; Agamenon terá a cabeça coberta pelo seu manto.”
É possível distinguir em cada
ato uma pletora de instantes diferentes, entre os quais haveria pouca
habilidade em não escolher o mais atraente. Trata-se, segundo a natureza do
assunto, do instante mais patético, alegre ou cômico. “A menos que leis
particulares não ordenem de outro modo e que não se reaveja do lado do efeito
das côres, das sombras e das luzes, da disposição geral das figuras, o que se
perde do lado da escolha do instante e das circunstâncias próprias à
ação.” Ou então, diz ainda Diderot, que
não se acredite em submeter o próprio gosto e gênio a certa puerilidade
nacional, que não se honre muito frequentemente com o nome de delicadeza de
gosto.
“Quantas vezes a delicadeza,
que não permite ao infeliz Filotecto berrar na entrada da sua caverna, baniu
objetos interessantes da pintura!” enuncia Diderot. Cada instante tem suas vantagens e
desvantagens. Um deles escolhido, todo o resto é dado. “Prodico supõe que
Hercules em sua juventude, após a derrota do javali de Erimanto, foi acolhido
num lugar solitário da floresta pela deusa da glória e pela dos prazeres, que o
disputaram entre sí: quantos instantes diferentes esta fábula moral não
ofereceria ao pintor que a escolhesse como assunto? Seria possível compor com
eles uma galeria. Há o instante em que o herói é acolhido pelas deusas, o
instante em que faz-se ouvir a voz do prazer, o instante em que a honra fala ao
seu coração, aquele em que ele balança em si mesmo a razão da honra e do prazer,
o instante em que a glória o toma e o outro, no qual ele decidiu-se
inteiramente por ela.”
Ao aspecto das deusas ele deve
ter sido tomado de admiração e
surpresa: terno com a voz do
prazer, inflamando-se com a da honra. No instante em que balança suas
vantagens, é sonhador, incerto, suspenso. “À medida que o combate interior
aumenta e que o momento do sacrifício se aproxima, a tristeza, a agitação, o
tormento, as angústias, tomam conta dele, e premitur
ratione animus, vincique laborat” (23 )
E prossegue Diderot : “O
pintor sem gosto ao ponto de tomar o instante em que Hercules decidiu-se
inteiramente pela glória, abandonaria todo o sublime desta fábula e seria
obrigado a dar uma face aflita à deusa do prazer que teria perdido sua causa, o
que é contrário ao seu caráter. A escolha de um instante proibe ao pintor todas
as vantagens dos outros. Quando Calcas enfiar o cutelo sagrado no peito de
Ifigênia, sua mãe deve desmaiar. Os esforços que ela faria para deter o golpe
pertencem a um instante passado. Voltar para ele um minuto significa pecar tão pesadamente quanto
antecipar mil anos no futuro. Existem no
entanto ocasiões em que a presença de um instante não é incompatível com os
traços de um instante passado: lágrimas de dor cobrem por vezes um rosto do
qual a alegria começa e se assenhorear. “Um pintor hábil colhe um rosto no
instante da passagem da alma de uma paixão a outra, e faz uma obra prima. Tal é
Maria de Medicis na galeria do Luxemburgo, Rubens a pinta de um jeito que a
alegria de ter posto um filho ao mundo não apagou a impressão das dores do
parto. Dessas duas paixões contrárias, uma está presente, a outra
ausente”.
A fluidez do tempo é o grande
obstáculo a ser dominado pelo pintor. “É raro que nossa alma esteja numa base
firme e determinada, e como nela ocorre quase sempre um combate de diferentes
interesses opostos, não basta saber exprimir uma paixão simples. Todos os
instantes delicados perdem-se para quem que não conduz seu talento até lá: não
sairão de seu pincel nenhuma dessas figuras que nunca se viu e nas quais
percebe-se sem cessar novas finezas à medida que as observamos: seus caracteres
serão decididos em demasia para dar tal prazer, eles tocarão mais no primeiro
golpe de vista, mas eles lembrarão menos.”
A unidade da ação liga-se ao
tempo: abarcar dois instantes é pintar simultâneamente um mesmo fato sob dois
pontos diferentes de vista. (24) Esta falta é menos sensível, mas no fundo mais
pesada do que a duplicidade de assunto.
“Duas ações unidas, ou mesmo separadas, podem ocorrer ao mesmo tempo num mesmo
lugar. Mas a presença de dois instantes diferentes implica contradição no mesmo
fato. A menos que se queira considerar um e outro caso como a representação de
duas ações diferentes numa só tela. Os nossos poetas que não sentem possuir
gênio bastante para tirar cinco atos interessantes de um assunto simples fundem
várias ações numa só, abundam em episódios, e tornam pesadas suas peças na
mesma proporção de sua esterilidade. Pintores caem às vezes no mesmo defeito.
Não se nega que uma ação principal traga outras, acidentais. Mas é preciso que
estas últimas sejam de circunstâncias essenciais à precedente. É preciso que
exista ligação e subordinção entre e que o espectador nunca esteja perplexo.
Variem o massacre dos Inocentes tanto quanto lhes aprouver. Mas que em
qualquer lugar da tela eu lance os olhos e encontre tal massacre.
Seus episódios ou me prenderão ao assunto, ou dele me afastarão. E o último
desses efeitos é sempre um vício. A lei da unidade da ação é ainda mais severa
para o pintor do que para o poeta. Um bom quadro fornecerá algum assunto, ou
mesmo uma cena dramática. E um drama
apenas pode fornecer matéria para cem quadros diferentes.”
A unidade de lugar, segundo
Diderot, é mais estrita num sentido
—menos em outro— para o pintor do que para o poeta. A cena é mais extensa em pintura, mas ela é mais una do que em
poesia. “O poeta, não restrito a um
instante indivisivel como o pintor, passeia sucessivamente o ouvinte de um
apartamento a outro, enquanto o pintor se coloca num vestíbulo, numa sala, sob
um pórtico, numa relva. E de lá não sai. Ele pode, com a perspectiva, aumentar
seu teatro tanto quanto julgar apropriado, mas sua decoração permanece. Ele não
muda.”
Como o leitor percebe, sigo o
texto diderotiano sem acréscimos. O escrito é demasiado eloqüente e não precisa
de comentários em tais pontos. Sigamos para a
subordinação das figuras: estas devem se fazer notar segundo o interesse
que devemos ter por elas. Existem lugares relativos às circuntâncias da ação,
elas devem ocupar naturalmente tais lugares ou deles se afasta. Cada figura
precisa ser animada pela paixão e pelo grau de paixão conveniente ao seu
caráter. E se uma delas fala, as outras devem escutar. Muitos interlocutores ao
mesmo tempo fazem má impressão num quadro, tanto quanto numa reunião
social. “Como tudo é igualmente perfeito
na natureza, num pedaço perfeito de pintura todas as partes devem ser
igualmente cuidadas e só chamar a atenção pela sua maior ou menor importância.
Se tivessemos diante de nós o sacrifício de Abraão, o arbusto e o bode não
teriam menos verdade do que o sacrificador e seu filho. Todos devem ser
igualmente verdadeiros na tela sem termer que os os objetos subalternos sejam
façam negligenciar os importantes. Eles não produzem tais efeitos na natureza,
por que os produziriam na imitação artística?”
Ornamentos, roupas, etc. Não
se recomenda o bastante a sobriedade e a conveniência nos ornamentos. “Há em
pintura, como em poesia, uma fecundidade infeliz. Se deve ser pintada uma manjedoura,
por que apoiá-la contra as ruinas de um grande edificio e erguer colunas num
lugar que só posso supor usando conjecturas forçadas? O preceito de embelezar a
natureza estragou tantos quadros ! Não se busque embelezar a natureza ! Deve
ser escolhida a que convem ao pintor, este deve trazê-la aos olhos
escrupulosamente. As roupas devem ser conformes à história antiga e moderna, e
não se coloque, numa paixão, judeus com chapéus cheios de plumas.”
As regras gerais da composição
são quase invariáveis e as da prática da pintura só podem lhes trazer alguma,
ou nenhuma, alteração. Como o escritor narra um fato histórico como poeta ou
historiador, um pintor dele faz um assunto de quadro histórico ou poético. No
primeiro caso, parece que todos os seres imaginários, todas as qualidades
metafísicas personificadas devem ser banidas. A história quer mais a verdade.
Não existe um desses desvios nas batalhas de Alexandre. Parece que no segundo
caso só deve ser pemitido personificar as que sempre o foram, a menos que se
deseje expandir uma obscuridade profunda em assunto bem claro. Não admiro a
alegoria de Rubens do parto da rainha como as apoteoses de Henrique: sempre
achei que o primeiro desses objetos exigia toda a verdade histórica e o segundo
todo o maravilhoso da poesia. Sempre o
leitor deve ser advertido que todas essas linhas saem diretamente do texto
diderotiano citado. Nada acrescento a elas.
“Uma composição pode ser
facilmente rica em figuras e pobre de idéias, uma outra excitará muitas idéias,
ou inculcará fortemente uma só, e só terá uma figura. O quanto a representação
de um anacoreta ou filósofo absorto numa profunda meditação, não acrescentará à
pintura de um isolamento? Parece que um isolamento não exige ninguém. No
entanto, ele será bem maior se nela for colocado um ser pensante. Se o pintor
faz cair uma torrente das montanhas, e se ele deseja nos espantar, deve imitar
Homero colocando um pastor na montanha, que escuta amedrontado o barulho.
Pintores devem ler os grandes poetas e recipocramente os poetas precisam ver os
trabalhos dos grandes pintores. Os primeiros ganharão em gosto, em idéias, em
elevação. Os segundos, exatidão e verdade. Quanto quadros poéticos admirados
fariam sentir o seu absurdo se fossem pintados ?” (25)
O pintor que ama o simples, “o verdadeiro, o grande,
apegar-se-á particularmente a Homero e a Platão. Nada direi de Homero, ninguém
ignora até onde este poeta levou a imitação da natureza. Platão é menos
conhecido neste aspecto, mas ouso, no entanto, assegurar que ele não perde para
Homero. Quase todas os inícios de seus diálogos são obras primas de verdade
pitoresca. E mesmo durante o diálogo elas são encontradas. Tomarei apenas um
exemplo, do Banquete. Este, visto comumente como uma cadeia de hinos ao
Amor, cantados por uma companhia (troupe, o termo é teatral, RR) de
filósofos, é uma das apologias mais delicadas de Sócrates. Sabe-se em demasia a
crítica injusta à qual suas ligações estreitas com Alcibiades o haviam exposto.
O crime imputado a ele era de natureza tal que a apologia tornava-se uma
injúria. E Platão cuida para que ela não
seja o assunto principal de seu diálogo. Ele reúne filósofos num banquete e os
faz cantar o Amor. A refeição e o hino acabavam quando se ouve um grande
barulho no vestíbulo. As portas se abrem e vê-se Alcibíades coroado de hera e
cercado por uma companhia (troupe, mesma observação acima, RR)
de instrumentistas. Platão lhe supõe esta gota de vinho que aumenta a alegria e
dispõe à indiscreção. Entra Alcibíades e divide sua coroa em dias, coloca uma
em sua cabeça e a outra em Sócrates. Informado do assunto, fica sabendo que os
filósofos cantaram o triunfo do Amor. Ele canta sua derrota pela Sabedoria, ou
os esforços inúteis que fez para corromper Sócrates. Este relato é conduzido
com tamanha arte, que nele se percebe apenas um jovem libertino que fala por
embriaguez, e que acusa a si mesmo sem misericórdia de ter os desejos mais
corrpmpidos e o deboche mais vergonhoso. Mas fica no fundo da alma a impressão,
sem que em nenhum momento se suspeite, que Sócrates é inocente e que ele é bem
feliz de ser inocente porque Alcibíades, teimoso por seus próprios encantos,
não deixou de notar ainda a sua força, desvelando seus efeitos perniciosos nos
sábios de Atenas. Que pintura seria a entrada de Alcibíades e seu cortejo no
meio dos filósofos! Ele não seria menos interessante e digno das pinceladas de
Rafael ou de Vanloo, do que a representação desta assembléia de homens
veneráveis arrastados pela eloquência e os encantos do jovem libertino, pendentes ab ore loquentis ?”(26)
A passagem entre o teatro e a
pintura é sublinhada por Diderot, sobretudo quando se trata de Platão e da
figura maior dos Diálogos. O enciclopedista e dramaturgo é obcecado pela morte
de Sócrates. A peça La mort de Socrate, apresentada na Comédie Française em 1763 é
tributária de Diderot, como observam análises da Correspondance littéraire (01/06/1792
e 15/05/1763). Os textos diderotianos não se cansam de jungir arte pictórica e
teatro. (27) Assim este trecho citado por Jean Seznec: “se o espectador (…) encontra-se no teatro
como se estivesse diante de uma tela, onde quadros diversos surgiriam
sucessivamente (…) haveria um patético na cena, como ocorre com a filha e a
mulher de Eudamidas no quadro de Poussin?” (28) A resposta é positiva. Diderot
refere-se à pintura Testament d´Eudamidas, no qual via o máximo do sublime em
pintura. Aquele grupo de mulher e filha é especialmente mencionado no Salão
de 1767.
O verbete “composição” é fruto
de um trabalho inicial. Mas se atentarmos para os escritos posteriores,
sobretudo os publicados após a morte de Diderot, notamos que eles respondem
integralmente às exigências postas com ele na Encyclopédie. A questão
do tempo e do espaço, aliada à diversidade dos instantes e das paixões humanas.
Quem ousaria negar que o Sobrinho de Rameau, além de ser uma
peça teatral fantástica é uma sequência de quadros, os mais estritamente
obedientes às determinações da unidade de tempo, espaço, assuntos? O tempo:
meia hora de conversa entre o vagabundo genial e o filósofo. O espaço: o jardim
de Port-Royal. Os assuntos amplos e diversificados obedecem as unidades de
sentido a cada movimento. O texto segue os preceitos platônicos, pois se trata
de um organismo vivo. Son pittor anch´io, a Diderot pode
ser atribuido este mote comum para designar o modo pelo qual ele “pinta” seus
romances, sobretudo A Religiosa. (29) Como indica um comentador, naquele romance
“as cenas de quadro e de pantomima são perfeitamente integradas na estrutura
narrativa e psicológica do romance”. Suzanne Simonin “aproxima explícitamente
sua descrição da pintura, conhecida pelo seu correspondente, o marquês de
Croismare” (30 ) Simonin usa o termo “pintar” para a sua descrição dos
conventos em que viveu e para cenas isoladas que retrata: “A cena que acabei de
pintar foi seguida de um grande número de outras semelhantes que
negligencio…Vós, que bem conheceis a pintura, eu vos asseguro, senhor marquês,
que era um quadro muito agradável de se ver”
(31)
O
romance inteiro, como boa parte dos escritos literários diderotianos (não raro,
filosóficos) opera com o sentido polissêmico da grafia, tal como indiquei acima
para os vínculos entre ele e Platão. Mais, além da unidade entre pintura e
escrita, o enciclopedista integra a fábrica dos poemas e o teatro. É como se o
grito, son pittor anch ´io presidisse a sua produção imagética, nela
colocando a idéia a serviço da arte. Na Religiosa,
cuja marcha é entremeada de quadros movidos pelas paixões, cada pintura exibe
os elementos patéticos na biografia de Simonin, apresentados por ela aos seus
juízes ou possíveis libertadores. “Os sofrimentos que os quadros expõem são
parte de um sofrimento mais amplo (ou Paixão) que constituem a narrativa. Como
as imagens que convidam os cristãos a jorrar lágrimas diante das várias estações
da Paixão do Salvador, os quadros da Religiosa pedem ao leitor que se
comova pelas lágrimas e sofrimentos de uma vítima inocente, e que das lágrimas
passe à ação. Em cada um dos quadros, o leitor é apresentado a uma visão
espantosa. Em cada uma das vezes, é como se Suzanne tivesse dito,
´Voilà!´[literalmente, ´olha aqui!´] ´Observe, e veja meus sofrimentos´. Na
retórica clássica esta figura era chamada hypotiposis”. (32)
Num acesso de gosto duvidoso, comum
entre cultores de Rousseau, Claude Levi-Strauss caçoa de Diderot e da
predileção que o enciclopedista apresenta pelas pinturas em movimento. Ao
comentar o problema do contínuo e do discreto na filosofia e na estética, diz o
antropólogo sobre o verbete Composição: “Sendo a pintura permanente, ela só o é
num estado instantâneo e só pode, afirma Diderot, oferecer da natureza quadros
discontínuos: ‘multiplicai o quanto quiserdes essas figuras, haverá
interrupção’”. Assim, diz Strauss, “a pintura remete a um problema filosófico
mais geral que já surgira na teoria dos números :”como medir toda quantidade
continua por uma quatidade discreta?”. Segundo o Diderot citado por Strauss, a lingua traz situação análoga pois existem
“expressões dos matizes delicados que permanecem nessariamente indeterminados”.
Assim, o enciclopedista parou o seu projeto de transmitir os conhecimentos,
“pela impossibilidade de tornar toda a lingua inteligível” (Diderot). Ao
inverso do que se passa na pintura, a lingua apresenta um meio termo, pois as
raízes revelam uma continuidade entre palavras discretas de natureza igual,
sendo estados intermediários análogos aos que a pintura é incapaz de
representar.
A invariância permitiria superar a
antinomia do contínuo e do discreto. Mas Diderot não segue por semelhante via.
Esperar-se-ia que ele “se interrogasse sobre a noção de invariância aplicada ao
problema próprio da pintura. Em vez disso, parece admitir que os quadros de
Greuze já o resolveram : ´é a coisa como deve ter ocorrido´, grita ele no Salão
de 1759 sobre o quadro L´Accordée de village. Mas em parte
alguma parece que ele buscou, no estilo e nos princípios da composição de
Greuze, a consistência da invariância. De fato, o entusiasmo de Diderot por
Greuze deve-se a outras considerações.”. Note-se o tom e o jeito: a repetição do
termo “parece” é sintomática no crítico. Parece que Diderot deveria ser
orientado pelas preocupações de…Strauss.
E agora vem a melhor parte. O problema
da invariância irresolvido por Diderot,
seria “comparável ao sentido em seu tempo, mesmo pelos amadores da mais
bela pintura (Diderot não admirava Chardin?), diante da invenção do cinema.
Greuze também inventou algo: representar o instante por meios tão realistas e
tão detalhados que eles fornecem, mesmo devido ao tempo requerido para os
inspecionar, uma ilusória duração. Richardson já o tinha feito em literatura,
bastava transpor: ´o mundo em que vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu
drama é verdadeiro; seus personagens têm toda a realidade possível; seus
caracteres são tomados no meio da sociedade; seus incidentes estão nos costumes
de todas as nações bem governadas […] Sem esta arte, minh´alma se dobrando
dificilmente em viezes quiméricos, a ilusão seria apenas momentânea e a
impressão fraca e passageira”. O que Diderot admira em Richardson e em Greuze,
pensa Strauss, seria “exatamente o que será pedido mais tarde à arte
cinematográfica: ´os relâmpagos das paixões com frequência feriram vossos
ouvidos; mas estais bem longe de conhecer tudo o que há de secreto nos seus
acentos e em suas expressões. Nenhum deles deixa de ter a sua fisionomia; todas
essas fisionomias se sucedem num rosto, sem que ele deixe de ser o mesmo; e a
arte do grande poeta e do grande pintor está em nos mostrar uma circunstância
fugitiva que nos havia escapado´. Não seria possível descrever melhor o que
pedimos ao ‘gros plan’. E é este o lado ‘western’ antes da letra que cativa
Diderot em Joseph Vernet: ´com uma arte infinita, misturar o movimento e o
repouso, o dia e as trevas, o silêncio e o ruído`. A história da arte, por vezes,
segue o ritmo do acordeão. Com suas “demoras necessárias´, Richardson ampliou
inicialmente a literatura que o cinema instantâneo de Greuze comprimirá nos
quadros (mas muito longos para serem descritos, ver os Salões). Por sua vez, o
cinema que opera por meio de imagens, como a pintura, os ampliará aos
multiplicá-los na duração, como o faz a literatura com as palavras”. (33 )
Nas críticas endereçadas por
Levi-Strauss a Diderot não é possível silenciar que o acusador se esquece
fácilmente do episódio que envergonha a França, terra da cultura e das Luzes
(pelo menos em certos períodos, desconsiderando-se o desastre do Estado que se
traduziu em Vichy) quando foi apresentada ao público A Religiosa de Jacques
Rivette. Em 1959 o cineasta imagina o filme com base no romance diderotiano,
auxiliado por Jean Gruault. Em maio de 1962, o primeiro cenário é entregue à
Comissão de Controle, orgão do Estado francês. A pré-censura pronuncia-se
desfavorável ao empreendimento. Em 1963 dá-se uma adaptação teatral do texto,
dirigida por Rivette e Gruault, no Studio Saint-Elysées, com ajuda de
Jean-Luc Godard e Antoine Bourseiller. O fracasso comercial da peça, somado à
extrema rapidez na montagem, evita maiores escândalos. Ainda em 1963 o cenário
se modifica, acrescido de um prefácio explicativo, mais a história da Abadia de
Longchamp e um sermão de Bourdalue sobre os deveres paternos. Todo o material é
novamente submetido ao controle da Comissão mencionada, que atenua o risco de
uma proibição. A filmagem demora dois anos por dificuldades técnicas. Rivette
escreve e organiza os Cahiers du cinéma. Em 1965, o Centro
Nacional de Cinematografia, na pessoa de um burocrata, responde ao diretor
sobre a licença: “Creio dever vos convidar à consideração das reservas
formuladas sobre o contexto geral do filme A Religiosa, seus temas e seus
principais personagens”. Em outubro do mesmo ano, ocorre uma entrevista do
presidente do Conselho Nacional de Cinematografia com Georges Beauregard, o
produtor do filme. Tudo entravado na pátria da cultura livre…
E surgem os primeiros abaixo-assinados
dos pais, clientes das escolas dirigidas pelas Irmãs do Convento des Oiseaux,
alertadas pela Central Católica de Cinema. A presidente da União das Superioras
Maiores da França escreve para Alain Peyrefitte, Ministro da Informação. Na
carta pode-se ler que 120 mil religiosas francêsas estão inquietas pela ameaça
de um filme “blasfemo, o qual desonra as religiosas”. Em 15/11/1965, o Ministro
responde (faltam três semanas para a eleição presidencial….) o seguinte :”Faço
questão de dizer, no que me diz respeito, que partilho totalmente os
sentimentos que vos animam…Também asseguro que não hesitarei em utilizar a
plenitude dos meus poderes”. O filme deve ser filmado no mesmo período dessa
correspondência e campanha.
Rivette escolhe a Abadia de Fontevrault, com a permissão da
Comissão das Belas Artes. Mas além do ministro da Informação, Marjean Foyer da
Justiça não deseja confusões com as forças religiosas. Negada a locação, o
diretor filma em Avignon, na Cartuxa de Villeneuve, onde o deputado-prefeito é
socialista. Caindo Peyrefitte e trocado por Yvon Bourges, o trabalho é aprovado
pela Comissão de Controle (composta por 23 membros, 7 do Ministério, 7 do
cinema, 5 sociólogos e juízes, 3 representantes da Associação das Famílias).
Quatorze daqueles seres humanos votam “sim”, oito definem-se pelo “não”, um se
abstém. Mas a saga continua. Em maio de 1966 o ministro convoca novamente a
Comissão de Controle, chamando para ela Maurice Grimand, diretor da Sûreté
Nationale para explicar os perigos que a projeção do filme ocasionaria
à ordem pública. Votam os seres humanos novamente, resultando em 12 votos pelo
“sim”, 8 pelo “não”, e três abstenções…
Aí surge uma decisão sublime, em termos
de hipocrisia neo-colonialista e censória. O filme é proibido nos países “de
missão” (Vietnam, Laos, Cambógia, Madagascar, Síria, Líbano e na Africa em
geral). Embora sob perigo, o “adulto” francês poderia assistir a blasfêmia
rivetto-diderotiana, já as crianças do Terceiro Mundo… Talvez percebendo o
ridículo ou o trágico da ordem anterior, a Comissão de Controle (consultiva)
decide-se pela proibição total para adultos francêses e crianças colonizadas,
decisão assumida em 31/03/1966. Os brasileiros sabem que dois anos haviam se
passado desde o golpe de Estado militar, para defender a Familia com Deus pela
Liberdade. A data, portanto, significa muito para quem vive abaixo do Equador.
Em 2 de abril de 1966, o Le
Monde traz a notícia, com um comentário de Jean de Baroncelli. Como
sempre ocorre na França, país de fina tradição cultural, surge um debate
apaixonado e o dossier sobre o caso. Em 05 de abril dá-se a entrevista coletiva
do cineasta e do produtor. Circula certo Manifesto dos 1789 (alusão
transparente) contra a proibição. Em 14 de abril a medida é discutida pela
Assembléia Nacional. Ainda no dia 30 o ministro a explica aos parlamentares. E
no dia 6 de maio…o filme é apresentado no Festival de Cannes. Em novembro de
1967, é liberado em Paris.
Vejamos os argumentos das partes envolvidas.
Os pais religiosos afirmam que o filme “desfigura as religiosas, antigas
educadoras de nossas mães e de nossas esposas e filhos”. Ele seria “um sucesso
artístico, sem obscenidades. Não se trata tanto de imagens, mas de um espírito
fundamentalmente perverso, o qual desnatura e caricaturiza os valores
religiosos”. O governo, por sua vez, pretende, nas palavras de seus
funcionários, proteger as religiosas contra a difamação (lei de 1881 sobre a
liberdade de imprensa). Na polêmica surge a palavra dos católicos contra a
censura, poucos mas bastante representantivos do pensamento religioso aberto
para o mundo mais amplo do que as sacristias. Nomes? O padre Oraison, Claude
Mauriac, Irmã Marie Yvonne…
Jean-Luc Godard expressa a indignação
contra o veto, de maneira digna de um homem das Luzes. Em carta a André
Malraux, o chama de “Ministro da Kultura” (Nouvel Observateur, 06/04/1966). E
afirma na referida missiva: “Já estava meio cansado de procurá-lo, pedindo-lhe
que intercedesse junto aos seus amigos Roger Frey e Georges Pompidou para
conseguir o perdão de um filme condenado à morte pela censura, esta Gestapo do
espírito. Mas Deus do céu, eu não pensava fazê-lo por seu irmão, Diderot, um
jornalista escritor, como você, e sua ´Religiosa´ minha irmã, isto é, um
cidadão francês que pede apenas ao Pai que proteja a sua independência (…) Nada
espantoso que você não reconheça mais a minha voz quando falo sobre a proibição
de Suzanne Simonin, a religiosa de Diderot, sobre assassinato. Não. Nada
espantoso nesta covardia profunda. Você faz como a avestruz com as suas
memórias interiores. Como você poderia me escutar, André Malraux, se eu
telefono do estrangeiro, de um país distante, a França livre?”. E Rivette, em
artigo na revista Cinématographe afirma: “desde, digamos, Citizen Kane, os
cineastas não podem mais manter uma relação de ingenuidade diante da
literatura, sobretudo a grande literatura romanesca do século 19”. E nos Cahiers
du Cinéma, diz ele : “a idéia inicial de A Religiosa era um jogo
de palavras, era fazer um filme ´celular´, pois era sobre as celas das boas
irmãs”. (34 )
Deti-me longamente nesse filme por
várias razões. A primeira, mas não a principal, é indicar o quanto o juízo de
Levi-Strauss sobre Diderot “holywoodiano” padece de singular cegueira diante do
que ocorreu na França recente, com a censura de um filme por veto religioso. Um
intelectual empenhado na luta pelas liberdades não poderia ignorar que a
“pintura” diderotiana tinha sido proibida, não tanto pelas imagens, como dizem
os pais católicos de alunos cuidados pelas boas freiras do século 20, mas por
“um espírito perverso”. Zombar de Diderot, como o fez Strauss, após um episódio
traumático como o descrito, é escancarar pouco cuidado antropológico diante de
problemas candentes. Mais ainda, quando esteve envolvida na questão a
problemática vergonhosa do colonialismo francês. O Strauss, antropólogo deveria
recordar-se do fato, antes de caçoar de um autor, como Diderot, que se ergueu
contra os colonialismos. Pior ainda a crítica quando se percebe que o cinema,
jogado contra Diderot por Strauss, assumiu a função querida pelo enciclopedista
de unir pintura, teatro, moralidade (e imoralidade…) (35 ) sendo uma síntese de
múltiplas artes, sonhada desde o século XVI por Athanasius Kircher. Nele não se
“resolve” a invariância que incomoda o admirador da sincronia, mas encaminha a
solução. A cautela, no entanto, não parece ser o apanágio de Strauss, quando se
trata de louvar Rousseau e depreciar seus adversários.
Um outro outro motivo é notar
algo que o próprio Diderot enuncia várias vezes, sobretudo no Plano
de uma Universidade para a Rússia. Um povo consegue a civilização para
si, mas também regride à barbárie. Foi o que ocorreu com a França no Termidor,
no império napoleônico, na Comuna de Paris, no regime de Vichy e no triste
episódio narrado acima, sobre a filmagem de A Religiosa. Todos esses
aspectos justificam, penso, a longa digressão feita acima sobre o Diderot
“holywoodiano” de Strauss. Last but not least, sempre é bom
recordar histórias de censura às artes e aos meios de comunicação de massa
quando interesses ideológicos ou religiosos estão em jogo. Na mesma França,
onde a censura deu aborrecimentos às almas livres, hoje lutam católicos, judeus
e muçulmanos sobre pontos de fé e de costumes. O véu islâmico, para ser
proibido nas escolas precisou ser acompanhado do veto ao uso de todos os
símbolos religiosos. A luta dos fanatismos resultou em maior laicidade para o
Estado francês, um avanço democrático e da liberdade geral. E Diderot tem muito
a ver com semelhante avanço.
É
dificil chegar ao fundo mais escuro da caverna platônica em que se escondeu
Diderot. A pintura e o tempo são partícipes da finitude. A estrada entre ambos,
e também o movimento de um instante a outro, não encontram a solidez figurada
no Eterno. Assim, a justificativa para a passagem do contínuo para o discreto
é risco perene. Ou é roubada a solidez
do instante, ou tudo é reduzido à res extensa sem vida. Os ensaios
diderotianos são tentativas heróicas de encontrar o movimento sem perder a
solidez da natureza e do espírito. Donde seus repetidos enunciados sobre a
pintura em movimento. (36 ) Sua busca não é isolada na história da filosofia.
Se antes deles o problema não foi “resolvido”, como “parece” querer Strauss,
depois também não o foi. Basta que se recorde La pensée et le mouvant,
livro onde a fixidez é oposta ao elan vital, sem muitas “soluções”.
Jacques Proust indica um
atalho para que se entenda o modus operandi de Diderot quando se
trata da passagem em questão. Ele indica como o Sobrinho de Rameau “fala
ao mesmo tempo em que age” (3738 ) As duas ações simultâneas são rápidas. Como
aparentar simultaneidade e movimento em palavras, a não ser justapondo e
alternando o mais rápido possível os signos que remetem para tais ações? O
ideal, adianta Proust, é superpor e fazer com que se leia ao mesmo tempo duas
linhas de texto, como o músico o faz para a “declamação” e a “melodia”. A arte
tipográfica clássica só oferece o parêntesis. E Diderot o usa do seguinte modo:
“On disait: c´est lui qui a faite de jolies gavottes (et il chantait les jolies
gavottes); […] tu airais une bonne maison (et il en mesurait l ´étendue de pied
pour y monter), de jolies femmes (à qui il prenait déjà la gorge et qu íl
regardait voluptueusement) […]”. (38) Trata-se do problema do instante e de sua
passagem contínua, das questões do espaço gráfico, da pintura e da grafia. Algo
bem situado na temática platônica. As soluções diderotianas tentam guardar o
instante e a passagem, a sincronia e a diacronia, sem parti pris por uma ou por outra. O
resultado é um imenso painel agílimo que engloba práticamente todas as artes,
moralidades, políticas, em meia hora. Uma composição assim, difícil de ser
executada no palco, certamente seria bem mais árdua se fosse efetivada na tela
do cinema. Apesar do juízo abalizado de Levi-Strauss…
Ao
estudioso da filosofia e da estética diderotianas, ficam postos o problema e as
tentativas do escritor para imaginar a passagem entre a escrita e a pintura.
Jay refere-se à exposição dos “quadros” na Religiosa, (39) quando as dores de
Simonin aparecem numa Via crucis aproximada à de Cristo.
Ele chama a atenção para o uso católico das “Estações”. Em cada uma delas, um
quadro pintado (ao qual se une, nos dias de procissão, uma cena teatral, incluindo-se
a música entoada em tom de lamento pela Madalena). Se Diderot usa os quadros
para expor as dores de uma jovem encarcerada pela família hipócrita, jogando-a
nos braços de freiras ainda mais hipócritas que exercem “santamente” seu
parasitismo —inclusive erótico— sobre as suas dirigidas, o romance, embora
tenha sido ele uma mistificação contra o marquês de Croismare, é uma denúncia
social e política digna dos mais afiados ataques de Voltaire contra “a Infame”.
(40)
Já
no Sobrinho
de Rameau a ponta fina da sátira caçoa de toda a sociedade urbana sob o
Antigo Regime. Nela, o sagrado serve
para encobrir os vícios políticos e das alcovas, passando pelos “idiotismos”
das letras, da música, do teatro, da pintura, da filosofia. Sendo a marca da
corte o parecer e não o ser —Rousseau diz muito sobre este ponto— uma pessoa
franca e direta como o sobrinho do grande músico só tem um destino previsível:
a crucificação grotesca como vítima sacrificial que exorciza a mediocridade
coletiva, a hipocrisia, o beatismo, a violência dos poderes estatais e
societários.
Como
Simonin —esta de modo dramático— o sobrinho de Rameau segue a Via
crucis burlesca que desmistifica os pretensos valores eternos.
Permita-me o leitor citar um trecho de trabalho publicado em outra parte.
“Segundo Georges Daniel talvez seja em Langres, quando ainda jovem, que Diderot
teria intuido a técnica narrativa, exercitada sobretudo no entardecer de sua
existência, em Jacques o Fatalista. Os espetáculos teatrais dados por ´pessoas
que cantam nas ruas, montadas em escabelos, varinha na mão, ao lado de um
grande cartaz preso a um bastão´, teriam levado o quase menino Diderot a
enxergar naqueles gibis enormes da época a ação do personagem principal, cuja
ação é descrita assim pelo filósofo:
´Ei-lo que vai. Eis o diabo que o empurra. Ei-lo no quarto de sua
mulher. Eis sua mulher que sai […] Eis o bom anjo. Eis o marido malvado com sua
faca. Ei-lo com a faca erguida. Eis o bom anjo que lhe segura a mão….´”. (41) A rápida encenação do teatro invade o
sagrado (bem/mal, anjo/demônio) e dramatiza toda a sequência, mas com fim de
caçoada. A mesma hilaridade é desenvolvida, com idêntico recurso cênico, no Sobrinho
de Rameau : ´Eis a cidade onde ele nasceu; ei-lo a se despedir de seu
pai o apoticário; ei-lo ao chegar à capital (…); ei-lo aos joelhos do tio que o
expulsa; ei-lo com um judeu, et caetera et caetera”. Daniel, que recolhe tais
encenações, não aponta o seu claro sentido anti-religioso. No mesmo trecho do Sobrinho
surge o ardil sacrílego. ´Eu partia no dia seguinte para me lançar numa trupe
da província, igualmente bom ou péssimo para o teatro ou para a orquestra; no
dia seguinte, meu devaneio era me fazer pintar um desses quadros presos numa
vara que se enfia numa esquina, e onde eu teria gritado: Eis a cidade onde ele
nasceu…´. É luminosa a referência, invertida, da Via Crucis. Em vez do
Cristo, Rameau. Na encenação religiosa, a cada estação o observador enxerga,
com ajuda do narrador —ali se emprega a técnica de apontar o quadro em voz
alta, em cada esquina— surge um quadro onde são expostos os sucessivos
sofrimentos do Homem Deus. Se em vez de Jesus temos o sofredor Rameau, a
rapidez da passagem engana os incautos.
Mas pouco a pouco fica bem clara a corrosão do sagrado, a partir da encenação
teatral e pictórica que substitui os sujeitos e guarda apenas um traço, o
sofrimento do Cristo/Rameau. A mudança do âmbito sagrado ao profano e deste à
virulenta caçoada, mostra aos leitores de ontem e de hoje que o narrador
Diderot joga com o bem e o mal, dissolve a moralidade da metafísica que ordena
o mundo em dois lados. (42 ) O texto filosófico, cujos conceitos são coerentes
com suas premissas, sem a experiência empírica,
passa ao largo da natureza e do homem tal como eles se revelam: caóticos
e desordenados. Se existe ordem e necessidade, esta última só pode se
justificar pela ação humana, jamais por uma providência ou lei inexorável”. (43
)
Mesmo recurso técnico e
estilístico: Simonin e Jean François chamam a atenção do observador/leitor com
o dedo em riste : “ei-lo/voilà”. A maestria do Sobrinho traz uma
sequência delirante de pinturas, operas e peças de teatro que sintetiza as artes : música, poesia,
escultura, teatro, romance, urbanismo, filosofia, moral, religião…. Não apenas
nos Salões
e na Religiosa
é empregada “a mais incrível virtuosidade literária na arte de variar
ininterruptamente os procedimentos da expressão, o tom e o estilo”. (44) Se os
quadros são estratégicos na escrita é porque neles o autor valoriza, n´en
déplaise Levi-Strauss, a diacronia no interior de uma sincronia, o que
fornece estabilidade ao observador. Se o rosto muda, diz o enciclopedista, ele
continua sempre o mesmo. O movimento no interior do instante, a parada do tempo
que a pintura proporciona (45) servem aos propósitos de Diderot mais do que a
discreção dos “coups de théatre”. Estes últimos pertencem à uma sociedade
pública, “enquanto o quadro faz crer na forma nova, privilegiada, da sociedade
que se organiza ao redor do núcleo familiar”. Analisando a cena da reconciliação
no Pai
de Família, Peter Szondi conclui que sua forma convencional, agora
servindo à sentimentalidade, adquire novo sentido. O sentimentalismo é o culto
das virtudes privadas e toca a impotência política da burguesia francêsa.
“Enquanto a burguesia não se revolta contra o absolutismo e faz seu caminho
para o poder, ela só poderia mesmo viver para as suas emoções, observando no
teatro a sua própria miséria, a qual lhe é infligida, como nota Diderot,
enquanto homens, como os heróis da antiga tragédia ática tinham sido presos da
miséria pela fatalidade”. (46)
A
Religiosa é drama
familiar ampliado para outras domesticidades, como a dos conventos (grande
família onde residem as “irmãs”) que giram ao redor daquela célula fundamental.
O
Pai de Familia partilha o mesmo clima. Nos dois cenários o segredo
impera e só é desvelado ao observador pelos personagens que pintam suas dores e
alegrias. (47 ) Este é o campo de Greuze, o pintor da mais enraizada
domesticidade. No Sobrinho de Rameau não existem segredos domésticos. “O Sobrinho
de Rameau é uma Anti-Religiosa, uma obra
anti-richardsoniana. Rameau não é uma criatura virtuosa, mas um enganador entre
outros, um parasita entre seus irmãos”. (48)
O músico e adulador sem talentos atravessa o que é privado e o expõe ao
público. Como é o ofício de todos os parasitas que circulam de mesa em mesa, na
grande cidade. (49 )
Diderot
não enxerga a familia do Antigo Regime com bons olhos. Adversário de todo
despotismo, político ou social, que vive num Estado dirigido paternalmente
pelos reis Luízes, ele critica de mil maneiras o vínculo entre escravidão
pública e privada, o poder do monarca e o do pater familias. Se forem
observadas as celulas domésticas descritas e satirizadas no Sobrinho
de Rameau, é possível notar que os donos das casas agem de maneira
violenta, ignoram direitos de familiares e agregados. Vejamos a cena que vem
logo após a impertinência do parasita (quando ele, conduzido pela verve,
declara-se un maestoso cazzo fra due coglioni). Ameaçado de expulsão abjeta,
diz Rameau, eu “girava e girava; pois, quanto a mim, eu não tinha peso algum no
coração; mas o patrão, ele, mais sombrio e carregado do que o Apolo de Homero
quando arremessa seus dardos sobre o exército grego, o barrete mais enterrado
do que de costume, passeava de um lado para o outro, com o punho sob o
queixo…”. O comportamento do rei doméstico é arbitrário como o do que dirige o
Estado: se a brincadeira impertinente e grosseira era a lei geral, porque
Rameau é punido quando a exercita? A resposta só pode ser aquela posta nas
últimas linhas dos decretos reais francêses : “Tel est notre bon plaisir”.
O
problema com Rameau, naquele cenário familiar, não está na sua impertinência,
mas na certeza de que ele age como indivíduo livre, mesmo sendo uma “espèce”. Rameau e Simonin,
com sua inteligência e vontade, negam a ordem existente. O conflito por eles
trazido à cena é um choque entre conformismo e individualidade. Isto ocorre na
família e nos conventos. No Sobrinho e na Religiosa a família impõe
a ordem social garantida pelo Estado. Jean-François nada tem de inocente quando
visto do exterior, Simonin é a pura inocência, vista de fora. Ambos são
indivíduos, o que é insuportável na família patriarcal, na ordem nobre (nela,
como observa Marcel Proust, o indivíduo não é o mais relevante, mas o nome de
família), na Corte absolutista. Em aglomerados estabelecidos pela Tradição, os
indivíduos devem ostentar aparências impostas pelas regras. O interior precisa
corresponder ao mundo. Jean-François e Simonin, com sinais invertidos, mostram
a radical ruptura entre ordem visível, exterior, e o segredo da interioridade.
Segundo Diderot, sem o fermento da liberdade individual sobrevem “o estado de
inércia a que o cidadão é submetido pelo poder absoluto, algo que nada mais é
do que embrutecimento”. (50)
No
indíviduo não existem perversões ou vícios. Se Diderot retoma os diagnósticos
da moral religiosa, é por motivos puramente médicos : “Se vos livrais aos
deboches das mulheres; sereis hidóprico. Sois crápula, sereis tuberculoso…”.
Segundo Eric-Emmanuel Schmitt, a natureza nada ordena, mas pune. Na conduta
indivudual a pessoa “não tem conselhos a receber de ninguém, nem filósofo nem
padre, a não ser do médico que a pode informar”. (51) Existe, no entanto, um
choque entre os indivíduos e o coletivo. A solução diderotiana (“tímida”
segundo Schmitt), fala em regras de convívio e também evoca reformas sociais
para que a sociedade seja menos injusta. A moral normativa existe em Diderot,
mas nela “a obrigação começa onde termina o organismo individual. Os deveres do
homem conduzem aos do cidadão, e o indivíduo só é cidadão considerando-se a
espécie”. Sendo a espécie, na definição do próprio Diderot, “a multidão de
indivíduos compostos de idêntica maneira”, a moral visa a espécie no seu todo.
Como Deus, brinca Diderot, é o “unico de sua espécie”, o homem só tem deveres
para com a sua, ou seja, para com o homem”. A moral do indivíduo só é regulada
pela natureza, a da sociedade é determinada pelo interesse geral. Conclui
Schmitt que Diderot chega a ser “revolucionário no plano individual e
conservador no coletivo”. Mas o interesse geral deve sobrepor-se aos do
indivíduo porque, agora segundo o mesmo Diderot “o indivíduo passa; mas a
espécie não tem fim, eis o que justifica o homem que se consome, o holocausto
imolado nos altares da posteridade”. Além disso, “se nossos predecessores nada
tivessem feito por nós, e se não fizessemos nada por nossos sobrinhos, seria
quase em vão que a natureza tenha querido que o homem fosse perfectível […]
‘Depois de mim o dilúvio’, é provérbio
feito para almas pequenas, mesquinhas, pessoais. A nação mais vil e mais
desprezível seria aquela na qual todos a tomariam como regra de conduta”. (52 )
Enquanto
a educação conduz o individuo à convivência, no plano da natureza nada pode ser
feito para prevenir a ferocidade individual. Lembre-se, diz Schmitt, os brados
de Jean-François contra “a maldita molécula”. Diderot ocupa o meio termo entre
Rousseau e Helvécio: contra o primeiro, pensa que o homem não nasce bom e,
contra o segundo, que ele não surge no mundo como ser perverso. A educação
tenta domesticar o individuo humano. As achegas de Schmitt são relevantes. Mas
ele não radicaliza a noção de que o indivíduo, para Diderot, reside no estado
de natureza. A sociedade —sobremodo a corrompida, como no caso do antigo
Regime— não pode abafar os sentidos e o intelecto dos indivíduos. Sob a crosta
da educação conformadora resta a vontade das pessoas. É o caso de Simonin e de
Jean-François. Os mais polidos dentre os cortesãos e burgueses mostram a
qualquer momento a natureza tigresca que neles jaz, prestes a despertar como
brasas sob cinzas.
É com esse retorno à
animalidade, no mundo aparentemente civilizado, que se entende a classificação
da própria Corte como um zoológico (a Ménagerie de Versailles) na qual os
indivíduos —perversos como só os regimes
políticos tirânicos podem gerar — se
comportam como lobos esfaimados. Mas se eles vestem farrapos, como os de
Jean-François, ou hábitos sagrados, como nos conventos onde Simonin é abusada
pelas superioras, isso não muda a essência da coletividade que os enfraquece.
Como ainda afirma Goggi, a França do período é o lugar do despotismo, da
corrupção, do abafamento das grandes paixões, do luxo desenfreado e da licença
nos costumes. Nela, “o espírito de cálculo domina, e mais ainda o contrôle
exercido pelos déspotas sobre toda a vida dos súditos”. (53) Mas não apenas no
romance ou no teatro Diderot se preocupa com a vida familiar, com todas as suas
mazelas.
Sigamos
as indicações de Thomas M. Kavanagh, comentador da pintura de Greuze e da
crítica diderotiana, (54) o qual começa seu estudo com uma citação estratégica
: “La
peinture est l’art d’arriver à l’âme par l’entremise des yeux” (Diderot, Salão
de 1769). No escritor da Carta sobre os Cegos e da Carta
sobre os Surdos e os Mudos, a frase tem sentido certo. Citando Diderot:
“minha idéia seria….decompor, por assim dizer, um homem, e considerar como ele
depende de cada um dos seus sentidos. Lembro-me de ter-me ocupado algumas vezes
desta espécie de anatomia metafísica; e achava que, de todos os sentidos, o
olho era o mais superficial; o ouvido, o mais orgulhoso; o olfato, o mais
voluptuoso; o gosto o mais supersticioso e o mais inconstante: o tato, o mais
profundo e filosófico.” (55) Na Carta sobre os cegos, Saunderson
afirma que a vista “é um orgão…sobre o qual o ar faz o efeito de um cajado
sobre minha mão”. E diz Diderot: “abram a Dióptrica de Descartes e vocês
observarão os fenômenos da vista ligados aos do tato, e as pranchas de óptica
cheias de figuras humanas ocupadas em ver com bastões, Descartes, e todos os
que vieram depois dele, não puderam nos fornecer idéias mais nítidas da visão;
e este grande filósofo não teve a este respeito mais vantagem sobre nosso cego
(Saunderson, RR) do que o povo que possui olhos”. (56)
No
artigo “Aveugle” da Encyclopédie, fala-se da Carta sobre os Cegos (que valeu a
prisão de Vincennes para Diderot) com muito cuidado, indicando-se que ela
trazia coisas desagradáveis para as pessoas piedosas. Fora isto, sua metafísica
seria muito refinada. O mesmo artigo reitera a tese da vista enquanto tato : “é
evidente que o sentido da vista sendo muito apropriado para nos distrair pela
quantidade de objetos que ele nos apresenta ao mesmo tempo, os privados deste
sentido devem naturalmente, e em geral, ter mais atenção aos objetos que tombam
sob seus outros sentidos. É principalmente por esta causa que se deve atribuir
a fineza do tato e do ouvido, que observamos em deteminados cegos, mais do que
à superioridade real dos sentidos pelos quais desejou a natureza lhes compensar
pela privação da vista. Isto é tão verdadeiro, que uma pessoa cega por
acidente, socorre-se com frequência com os sentidos que lhe restam, recursos
dos quais ela não suspeitava antes. Isto vem do fato de que esta pessoa sendo
menos distraida, tornou-se mais capaz de atenção”. (57 )
A
análise dos sentidos humanos, do tempo e do espaço, une-se à teorização da
pintura e da poesia, incluindo-se aí o problema do olhar atento, sublinhado no
artigo sobre a composição. Como a vista abarca muitos objetos ao mesmo tempo,
ela se distrai fácilmente (taí, sua superficialidade). O referido ponto é
essencial nas teses de Denis Diderot sobre o observador e os trabalhos de
Greuze dedicados à atenção das figuras pintadas e do próprio observador.
Jean
Baptiste Greuze, como nota Kavanagh, recebe particular atenção de Diderot nos Salões
entre 1959 e 1769. O crítico acentua o gosto de Greuze, enquanto lhe repugna o “petit goût” de Boucher. Este último
pode ser um competente artesão, mas lhe falta a verdade na pintura. Diderot
torna esta falsidade pictórica evidente em seu comentário, que apenas enumera
nos quadros de Boucher objetos justapostos (indicando o que reprova no texto
sobre a composição, citado acima) : “mulheres, homens, crianças, bois, vacas,
carneiro, cachorros, agua, fogo, uma lanterna, acendedores, bules, etc”. Tudo,
então mostra o absurdo do pintor que opera com as ilusões do rococó. No Salão
de1765, Diderot diz que “todas as suas (Boucher,RR) composições trazem um
sofrimento insuportável para os olhos”, pois as suas figuras exibem sobretudo
“peitos e traseiros”. Pode-se admirar as cores usadas por ele, os detalhes de
sua pintura, a variedade dos tons, mas o todo fica impenetrável. Suas massas
não integradas de elementos díspares são incapazes de mover o espectador. Daí o
apelo ao onírico, ao mítico, à estética anacrônica que não recorda o mundo
efetivo. Sigo sempre a análise de Kavanagh, que acompanha, ponto a ponto, a
crítica diderotiana a Boucher.
O
juízo mais duro contra o pintor vem no Salão de 1765: “Este homem é a ruína de
todos os jovens estudantes de pintura. Eles mal aprenderam a usar um pincel e
segurar uma paleta e já começam a se atormentar, jogando-se em toda sorte de extravagância”.
Diante do quadro Angélique e Médor, produzido por Boucher em 1763 e examinado no
Salão
de 1765, Diderot afirma que Médor escreve o seu nome e o do amada na árvore.
Mas um analista do site Ut Pictura 18 mostra que se trata de
leitura defeituosa, pois o filósofo não atentou para os preceitos iconográficos
da pintura libertina rococó. Médor arranca uma flor, significando com isto a
perda da virgindade de Angélique. A fonte poética é Rolando furioso, canto 19
(Angélica e Médor): “Angelica
a Medor la prima rosa/ coglier lasciò,
non ancor tocca inante” (Angélica deixou Médor colher a primeira rosa/
ainda não tocada”). Diderot é cruel com o artista e com o quadro: “Desafio que
me mostrem alguma coisa que caracterize a cena e designe os personagens. E por
Deus! Era só deixar-se conduzir pela mão do poeta. Como o lugar de sua aventura
é mais belo, maior, mais pitoresco e melhor escolhido! É um antro rústico, é um
lugar retirado, é a morada sombria e silenciosa. É alí que, longe de todo
importuno, pode-se fazer um amante feliz e não em pleno dia, em pleno campo,
sobre uma almofada. É sobre a espuma da rocha que Médor grava seu nome e o de
Angélica. Veja bem, senhor Boucher, não existe senso comum em seu quadro.
Trata-se de uma pequena composição de boudoir. E depois nem pés, nem mãos,
nem verdade, nem cor, e sempre salsinha sobre as árvores. Olhe, ou melhor não
olhe Médor, sobretudo suas pernas, elas pertencem a um jovenzinho que não tem
gosto ou estudo. Angélica é uma pequena tripeira. Ah, a palavra canalha! De
acordo, mas ele pinta. Desenho redondo, mole, carnes flácidas. Este homem só pega o pincel para mostrar peitos e
bundas. Gosto muito de vê-las, mas não quero que elas me sejam mostradas”. (58
)
Em contraposição a Boucher,
Diderot enxerga em Greuze um serviço prestado à
ética. Seus retratos de família são embebidos nos mais profundos
propósitos moralizantes. Kanavagh afirma que o fascinante em Greuze, segundo
Diderot, é o seu efeito educacional regenerador, falando-se em termos
axiológicos, dos que frequentam os Salões.
Os quadros de Greuze significam para Diderot espécies de versões do ritual
religioso, pois oferecem ao observador um modelo que pode ser mimetizado. A
relação familiar fornece a base secularizada para a moral, ensinando o controle dos instintos
bestiais que se apresentam no coração das pessoas, como é o caso da
ingratidão. Segundo o nosso autor, “para
Diderot Greuze é o Sumo sacerdote da nova religião do sentimento”. (6059)
No
Salão
de 1763, o quadro A Piedade Filial de Greuze faz dizer
a Diderot que o artista é bem o seu pintor e que o quadro teria título melhor
se fosse exposto como “Sobre a
recompensa da boa educação”(60). Sobre o De la piété filiale, ou le Paralytique
(1761), afirma Diderot: “Tal genero me
apraz. É a pintura moral. Pois bem! O pincel não foi empregado durante tanto
tempo para expor o deboche e o vício? Não deveríamos estar satisfeitos ao vê-lo
concorrer finalmente com a poesia dramática para nos tocar, nos instruir, nos
corrigir e nos convidar à virtude? Coragem amigo Greuze, faça a moral em
pintura, e o faça sempre assim. (…) Tudo se relaciona com o personagem
principal, o que se faz e o que se fazia nos momentos precedentes. Tudo, até o
fundo da pintura lembra os cuidados que se toma com o velho. É um grande lençol
suspenso sobre uma corda, e que seca. Este lençol é bem imaginado tanto para o
assunto da pintura quanto pelo efeito artístico. (…) Cada pessoa tem aqui,
precisamente, o grau de interesse que convem à idade e ao caráter. O número das
personagens reunidas num espaço muito pequeno é grande em demasia. No entanto,
eles se acomodam sem confusão, pois este mestre excede sobretudo na ordenação
da cena. A cor das carnes é verdadeira. Os tecidos são bem cuidados. Os
movimentos não encontram obstáculos. Cada um é para o que foi feito. As
crianças mais jovens são alegres, porque ainda não encontram-se na idade em que
se pensa. A comiseração se anuncia fortemente nos maiores. O genro parece mais
tocado, porque é a ele que o doente endereça sua fala e seus olhares. A jovem
casada parece escutar com mais prazer do que com dor. O interesse, se não é
apagado, pelo menos é quase insensível na velha mãe. E tudo isto está
inteiramente na natureza. (…) Este quadro é belo e muito belo, infeliz quem o
observe com o sangue frio! O caráter do velho é único. A criança que traz algo
para beber é única.”
A
descrição do quadro indica, nela mesma, a tendência de “moralizar” a arte. (61
) Os antecessores mais definidos de Diderot, no campo da doutrina sobre a
poesia e a eloquência são nomeados no “Plano de Uma Universidade”(62). Em primeira ordem vêm os nomes de Batteaux : As
Belas-artes reduzidas a um mesmo
princípio, "livro acéfalo, mas útil” (63) Longinus: Sobre o Sublime. E Du
Bos :
Reflexions. E também Dionisio de Halicarnasso: Da escolha e do lugar das
palavras.
Ao
falar ao seu companheiro Grimm sobre a sua missão de crítico Diderot afirma no Salão
de 1765: “Se refleti sobre algumas noções sobre a pintura e a escultura, é a vós, meu amigo, que sou
devedor. Eu teria seguido no Salão a multidão dos vagabundos, teria concedido
como eles uma olhada superficial e distraída às produções de nossos artistas;
numa só palavra: eu teria jogado ao fogo um pedaço precioso, ou conduzido às
nuvens um trabalho mediocre, aprovando, desdenhando, sem buscar os motivos de
meu agrado, de meu desdém. É a tarefa que me propusestes que fixou meus olhos
sobre a tela e que fez-me girar ao redor do mármore. Dei tempo à impressão para
que ela chegasse e entrasse. Abri minh´alma aos efeitos, deixei-me penetrar.
Recolhi a sentença do ancião e o pensamento da criança, o juizo do letrado, a
palavra do mundano e os propósitos do povo; e se me ocorreu ferir o artista,
com frequência foi com a arma que ele mesmo afiou. Eu o interroguei e
compreendi o que é a delicadeza do desenho e a verdade da natureza; concebi a
magia das luzes e das sombras; conheci a cor; adquiri o sentimento da carne.
Isolado, meditei sobre o que tinha visto e ouvido, e os termos da arte como a
composição, variedade, contraste, simetria, ordenamento, tão familiares em
minha boca, tão vagos em meu espírito, foram circunscritos e fixados.” (64 )
Diderot
insiste, no Plano de uma universidade,
sobre o necessário conhecimento dos Antigos. Pintor e poeta, filósofo ou
moralista, todos devem conhecer os Antigos. Assim, no Salão de 1767, diz ele que “é uma observação bem geral que
raramente alguém chega a ser grande escritor, grande literato, homem de gosto,
sem ter conhecido estreitamente os Antigos. Há em Homero e Moisés uma
simplicidade, da qual talvez seja preciso dizer o que Cicero afirmava do
retorno de Regulus a Cartago : Laus
temporum, non hominis (65) ; é mais o efeito, ainda, dos costumes que do
gênio. Dos povos com tais usos, tais roupas, tais cerimônias, tais leis, tais
costumes não poderiam ter outro tom; mas é semelhante tom que não se imagina, e
que é preciso beber alí, para transportá-lo aos nossos tempos que, tão
corrompidos ou melhor, muito amaneirados, não deixam de amar menos a
simplicidade. É preciso falar das coisas modernas ao modo antigo”. (66 ) Ainda
no Plano
de uma universidade diz o autor : “a lingua da poesia parece ser a
lingua nativa de Homero. Perdoem-me pelo pequeno grão de incenso que acendo
diante da estátua do mestre ao qual devo tudo o que valho, se por acaso valho
alguma coisa”. Existem elogios a Horacio, Virgilio e demais antigos nos textos
diderotianos.
Mas,
como diz Gilman, o filósofo não era um fanático dos antigos. Ele soube apreciar
com moderação Racine e, sem moderação alguma, Richardson. Os pensamentos sobre
poesia e arte são expostos por Diderot em escritos como a Carta sobre os cegos, a Carta
sobre os surdo-mudos, o Paradoxo
sobre o comediante e nos Salões.
Quem acompanha cautelosamente aqueles textos percebe, de imediato, o nexo entre
os cuidados de ordem estética do autor e as suas hipóteses sobre o
funcionamento dos corpos humanos, os sentidos, as paixões, a medicina, etc. O Sobrinho de Rameau é uma síntese genial
de todos esses aspectos e nele são recolhidos elementos estilísticos,
retóricos, morais, científicos, políticos, medicinais, etc. Nele, em especial,
é descrita a psicologia do gênio ressentido e infértil.
Esse
tema, o gênio condenado ao fracasso, teve longa vida no romantismo do século
19, atingindo mesmo o século 20. A sensibilidade tornou-se uma espécie de
maldição do artista que protestaria contra o intelecto e suas regras
disciplinares, secas e assassinas de toda vida. Diderot foi apontado como um
proto-romântico (na companhia de Rousseau), porque valoriza o sentimento em si
mesmo e nas produções da arte. "si Nature a pétri une âme sensible, c'est
la mienne." (67 ) De fato a
sensibilidade é discutida em quase todos os seus textos. Mas
gradativamente Diderot passa a ser mais rigoroso com os sentimentos: “a
sensibilidade, quando extrema, não mais tem discernimento, é movida por tudo
indiscriminadamente”. (68 )
No
Sonho de D´Alembert a sensibilidade
excessiva é própria dos indivíduos medíocres. “A grandeza”, enuncia Gilman
comentando Diderot, “só pode ser conseguida na vitória do sujeito sobre a sua
própria sensibilidade”. No Paradoxo sobre
o comediante esse ponto é conduzido ao máximo : “Grandes poetas, grandes
criadores, e talvez todos os grandes imitadores da natureza (…) dotados de
imaginação vívida, grande poder de juizo, tato delicado, e gosto muito seguro,
são os menos sensíveis dentre os homens (…) sensibilidade dificilmente é a
qualidade de um grande gênio”. Mesmo assim, em outros textos, Diderot refere-se
ao homem como sensível e ao grande homem como excelente em sensibilidade : “o
homem de gênio, o grande escritor, o homem sensível” Diderot completa: “das
três qualidades, aceito apenas a última; ela me basta; alguém pode tê-la e não
possuir as outras duas, as quais raramente possui sem ela”. (69 )
Se
Diderot não pode ser enquadrado como romântico ou pré-romântico, ele também não
deve ser posto no campo impreciso do classicismo. Em primeiro lugar, porque a
própria determinação daquele campo é imprecisa e incerta. Como afirma Jacques
Chouillet, “nada é mais incerto e decepcionante do que a ´doutrina´ com a qual
se desejaria produzir a pedra de toque do classicismo (…) Todo o edifício se
ordenaria ao redor de alguns princípios fundamentais, a propósito dos quais os
teóricos e críticos seriam mais ou menos unânimes durante os sessenta anos que
vão de 1620 a 1680. Artigo primeiro: a Razão, pela qual percebemos o Verdadeiro
(logo, o Belo) é fonte das regras relativas à arte de bem dizer e bem pensar.
´Amai pois a Razão. Que sempre os vossos
escritos emprestem apenas dela o seu lustro e o seu preço’ (Boileau, Art
poétique, I). Artigo segundo: a Natureza é o lugar de toda Verdade,
logo de toda beleza.”. Diderot dificilmente seria apontado como obediente
discípulo de algo semelhante. Comenta ainda Jacques Chouillet: “o que falta
mais à ´razão´ dita clássica, que se
desejava outrora alinhar no racionalismo cartesiano, não é a pertinência, o
sentido das realidades, o contacto com os textos e o público, é justamente a
aptidão a se exercer no abstrato. Ou melhor, se Boileau e seus amigos fizeram
de princípios filosóficos, de tom racional, um uso empírico que lhes
prescreviam suas necessidades na luta em que se empenharam, eles não tiveram
nem o tempo nem os meios, nem sem dúvida o desejo de colocá-los em forma, ainda
menos de colocá-los em questão”. As tarefas não assumidas pelos chamados
clássicos, foram exatamente o motivo dos trabalhos diderotianos e do século 18,
o que gerou a era da crítica. (70 )
O
homem é a síntese instável dos cinco sentidos. Suponhamos que o juízo lógico ou
estético (para não falar no conhecimento e na moral) seja uma sentença que
procure dar a cada um o seu, numa justiça distributiva perfeita. Quem é o
encarregado de fornecer tal sentença? Não pode ser um sentido separado, porque
então o julgamento seria em causa própria. Imaginemos que os sentidos sejam
testemunhas no tribunal. O cérebro é o juiz que, a partir dos relatos das
testemunhas, julga e armazena os seus relatos e seus resultados. Retornando ao
texto do Paradoxo: “ser sensível é
uma coisa e sentir, uma outra. Uma é assunto da alma, outro, do juízo”. (71) Ser sensível relaciona-se à
suscetibilidade nervosa (à mobilidade do diafragma). Sentir é o elo entre
sensação e orgão central. O juizo, no entender de Diderot, fica mais claro
quanto se compara o homem e o animal. “Entre os seus sentidos existe uma
determinada harmonia que nenhum deles domina os outros o bastante para dar a
lei do entendimento; pelo contrário, seu entendimento —orgão da razão— é o mais poderoso. Ele é um juiz não
corrompido nem subserviente diante das testemunhas; ele guarda inteira a sua
autoridade e a usa para se aperfeiçoar; ele combina todos os tipos de imagens e
sensações, porque ele nada sente fortemente”. (72) “Sensibilidade” doentia, no
entanto, não pode ser confundida com o impulso do artista, o entusiasmo.
A
questão do entusiasmo foi discutida nos últimos anos do século 20, sobretudo
durante e logo após as comemorações da Revolução Francêsa. O lado político e,
inclusive, a crítica de “fanatismo” endereçada aos jacobinos e outros radicais
de inspiração rousseoísta, foi acentuado então em demasia. Diderot pensa que o
entusiasmo é essencial ao poeta, ao pintor, ao artista fertil.
No
artigo "Eclectisme" (1755)
da Enciclopédia pode-se ler :
“Observarei, de passagem, que em poesia, pintura, eloquência, em música, é
impossível produzir algo sublime sem entusiasmo. Entusiasmo é o impulso
veemente do espírito pelo qual somos transportados para o meio dos objetos que
devemos representar; então vemos uma cena inteira que toma lugar em nossa
imaginação, como se ela fosse exterior a nós; e de fato ela está fora, pois
enquanto ela dura, todos os seres presentes são nadificados, e em seu lugar
nossas idéias tomam forma material; só percebemos nossas idéias; no entanto
nossas mãos tocam corpos, nossos olhos enxergam seres vivos, nossos ouvidos
escutam vozes. Se este estado não é a loucura, está bem próximo. Eis a razão
pela qual é preciso um sentido bem forte para contrabalançar o entusiasmo. O
entusiasmo só arrasta quando os espíritos estão preparados e submetidos pela
força da razão; é um princípio que os poetas jamais devem perder de vista em
suas ficções, e que os homens eloquentes devem sempre observar em seus
movimentos oratórios. Se predomina o entusiasmo
num trabalho, ele expande em todas as suas partes je ne sais quoi, algo gigantesco, incrível, enorme. Se é a
disposição habitual da alma, e o pendor adquirido ou natural do caráter,
mantemos discursos alternadamente insensatos e sublimes; somos levados a ações
de um heroismo estranho, que marcam ao mesmo tempo a grandeza, a força e a
desordem da alma. O entusiasmo toma mil formas diversas: um ve os céus abertos
sobre sua cabeça, o outros os infernos abrirem-se sob seus pés: este acredita
no meio dos espíritos celestes, ouve divinos concertos, é transportado; aquele
se endereça à furias, enxerga tochas alumiadas”. (73) Note-se a proximidade
entre entusiasmo e loucura: "Il y a
une fureur particulière qu'on appele fureur poétique; c'est l'enthousiasme."
(74) Mas o entusiasmo deve ser moderado pela razão. Mesmo uma ode “exige
qualidades não raro incompatíveis, grande juizo na organização e musa
ensandecida na execução”. (75)
Sensibilidade
e entusiasmo são modificados pelo juízo. Este enunciado diderotiano liga-se à
idéia de um "modèle intérieur."
A cópia da natureza tem seus encantos e méritos. Mas eles são de segunda ordem
para Diderot: “os homens excelentes na imitação são muito comuns; nada mais
raro que os sublimes na idéia” diz ele. Os copiadores da natureza param diante
da aparência do modelo : o artista sobe até à sua verdade : “Convenhamos pois
que a diferença entre o retratista e o homem de gênio consiste essencialmente
nisto, que o retratista fornece fielmente a Natureza como ela é e se fixa por
gosto no terceiro nível; enquanto vós que procurais a verdade, o primeiro
modelo, vosso esforço contínuo é de vos elevar ao segundo”. (76) Copiar,
retratar, não significa produzir arte em sentido próprio. Embora entusiasta dos
Antigos, Diderot era oposto à sua cópia. Assim também em relação à natureza.
Não se trata para ele de copiar “a bela natureza” como propõe Batteux,
criticado na Lettre sur les sourds et
muets. A bela natureza, não definida por Batteux, é para Diderot mesclada
pela civilização e pelas regras convencionais. Não existe a “bela natureza”,
ela é “uma entidade puramente ideal”. (77)
Em De la poésie dramatique apresenta-se por inteiro o "modèle idéal" produzido com
elementos da natureza, tendo em vista o máximo de perfeição possível. O modelo
apenas pode ser aproximado: “Se alguém imagina por homem de gosto um sujeito
que traz consigo a idéia geral do modelo ideal de toda perfeição, trata-se de
uma quimera”. Quando o modelo é produzido, tão humanamente quanto possível,
como ele pode ser imitado? O modelo está alí para ser modificado segundo as
circunstancias, alterado, reforçado, enfraquecido, distorcido, reduzido. “De
uma só imagem podem emanar uma infinita variedade de representações diferentes”
(78) O modelo ideal derivado da natureza, que restaura a unidade e a harmonia
nem sempre aparentes na natureza, é modificado pelo artista na sua imitação,
como é modificado pela natureza.
Segundo Jacques Chouillet, o
verdadeiro dilema diderotiano não reside em decidir pelos Antigos ou pela
natureza. O essencial é decidir entre a idéia e a coisa. Para Diderot a escolha
de uma grande idéia “é a condição de toda pintura”. E Chouillet cita o
comentário do filósofo sobre A Ressurreição de Lázaro de Vien: “recordais, meu
amigo, a Ressurreição de Rembrandt: esses discípulos afastados; esse Cristo que
reza; esta cabeça totalmente envolvida pelo veu fúnebre, da qual só se enxerga
o ápice e estes dois braços assustadores que saem do túmulo. Essas pessoas
daqui acreditam que basta arranjar as figuras. Elas não sabem que o primeiro
ponto importante é encontrar uma grande idéia, que é preciso deambular,
meditar, deixar de lado os pincéis e repousar até que a grande idéia tenha sido
encontrada”. E comenta Chouillet que o modelo assim posto visa aterrorizar,
segundo “as modalidades de um patético já definido por Dorval. Isto prova (…)
que o modelo ideal, tal como ele o concebe, mais responde às exigências de um
esquema dinâmico do que às normas da razão”. ([i])
O lugar em que Diderot mais
discute o modelo ideal, segundo Gilman confirmada pelas minhas leituras (RR),
encontra-se nas primeiras páginas do Salon
de 1767. Diderot se endereça a um “artista irônico” que desdenha a
intromissão do filósofo na sua operação técnica. Pergunta o pensador: “Se
tivesseis escolhido por modelo a mais bela mulher vossa conhecida, e tivesseis
pintado com o maior escrúpulo todos os encantos de seu rosto, acreditaríeis ter
representado a beleza? Se respondeis que sim, o último de vossos alunos vos
desmentirá, e vos dirá que fizestes um retrato. Mas há um retrato do rosto, um retrato
do olho, há um retrato do pescoço, da garganta, do ventre, do pém da mão, dos
artelhos, da unha, pois o que é um retrato senão a representação de um ser
individual qualquer?”.
Esse
passo é clássico nos debates sobre a arte. Trata-se do princípio relativo à
justa medida enquanto canon da
pintura e de outras artes. O conceito vem dos gregos, com a regrado “nada
demais” que alerta para a desmesura. (79)
O conceito da justa medida foi desenvolvido pelos estoicos, aceito pela
produção teórica desde Vitruvio, passando por Cicero até Luciano de Samosata e
Galeno, conservado pela escolástica e convertido em axioma por Alberti.
Trata-se da célebre receita sobre o consensus
partium, a conveniência. O principio é assim expresso por Galeno :
“experimentamos mentalmente como simétrico tudo o que se afasta igualmente dos
extremos”. A excessiva grandeza ou pequenez das partes destrói a harmonia do
todo. E outros critérios devem ser empregados. Helena ou Ifigênia não podem ser
pintadas com mãos de velhas ou enrugadas, Ganimedes com músculos de trabalhador
braçal.
Pintores
como Dürer enfrentaram o problema trazido pela “conveniência” na busca do
critério da beleza, não aceitando (a exemplo de Alberti e de Leonardo) a mescla
do masculino e do feminino, do obeso e do magro, as formas “lisas, cheias e
iguais” da juventude com as “desiguais, rugosas, torcidas e consumidas da
velhice”. Mas resta um problema: onde achar as proporções harmoniosas,
simétricas? Como é conseguida a boa proporção? Dürer indica que ela não deriva
de uma pessoa abstrata (“não pode ser tomada de um único ser humano, pois
ninguém no mundo tem em si toda a beleza” ) e torna-se preciso um processo de
seleção das partes que faça justiça aos dados naturais sem prender o artista a
nenhum caso particular. Dürer recorda a anedota batida do Renascimento, depois
ridicularizada por Bernini e por Francis Bacon. Zeuxis, quando lhe pediram que
pintasse Vênus ou Helena para a cidade de Crotona, empregou cinco ou sete moças formosas, selecionando a parte
mais bela de cada uma para as partes da pintura, chegando ao composto perfeito.
“Se desejas fazer uma figura boa, terás de tomar a cabeça de um, o peito, os
braços, as pernas, as mãos e os pés de outros…”. É o que aconselha Dürer. A
seleção, não tanto no modelo “zeuxiano”, mas a que consiste em tomar as medidas
de todas as partes de pessoas consideradas formosas, ajudaria na produção de
belas pinturas. Agora, o “método” Zeuxiano pode ser pensado como um
procedimento, um modelo racional e premeditado? Não, é a resposta de Dürer.
Deve o pintor saber, diz ele, que os “seus olhos, instruido pela ´arte´,
começarão a servir de norma”. (80 )
A
temática do todo e das partes, da síntese harmoniosa que gera a bela pintura,
foi questionada por analistas próximos à Encyclopédie. (81) Tome-se como
exemplo as considerações de Watelet (L´art de peindre, 1760), recolhidas
por Diderot: “Tudo destrói o conjunto numa figura supostamente perfeita; o
exercício, a paixão, o genero de vida, a doença; parece que existiu apenas um
homem, e só num instante, no qual o conjunto não tinha defeito: trata-se de
Adão ao sair das mãos divinas; mas não se pode dizer, tomando-se o conjunto num
ponto de vista mais pitoresco, que ele nunca foi destruído nem na natureza,
onde tudo é necessário, nem na arte, quando esta última sabe introduzir em suas
produções esta necessidade? Mas que sequência de observações, que trabalho esta
ciência não exige? Em troca, o sucesso da obra é assegurado. Esta necessidade
introduzida, vem o sublime…”. (82 )
A
passagem por Dürer e pela anedota de Zeuxis serve para definir o problema
trazido à tona por Diderot. Após enunciar a questão das partes, ele diz que “os
caracteres da individualidade são os menores, mais leves, mais fugitivos”. Ao
pintor, afirma Diderot: “Sentistes a diferença da coisa geral e da coisa
individual, até nas menores partes, pois não poderíeis me assegurar desde o
momento em que tomastes o pincel até hoje, de ter-vos sujeitado à imitação
rigorosa de um cabelo. Acrescentastes, suprimistes, sem que tivesseis feito uma
imagem primeira, uma cópia da verdade, mas um retrato ou uma cópia da cópia “phantasmatos
ouk aletheias” (o fantasma e não o que é verdadeiro, República, 598 b) (83 )
Quando
tiverdes feito tudo isto, continua Diderot, “estareis apenas no terceiro nível,
pois entre a verdade e a vossa pintura
terá havido a verdade ou o protótipo, seu fantasma subsistente que vos
serve de modelo, e a cópia que fazeis desta sombra mal terminada, desse
fantasma. Vossa linha não terá sido a verdadeira linha, a linha da beleza, a
linha ideal, mas uma linha qualquer alterada, deformada, retratística,
individual; e Fidias teria dito de vós: “Estais no terceiro nível depois da
bela mulher e da verdade”. Existe, entre a verdade e sua imagem, a bela mulher
individual escolhida por modelo —Mas, dir-me-á o artista que reflete antes de
contradizer, onde está pois este verdadeiro modelo, se ele não existe nem em
todo nem em parte na natureza; e podemos dizer da menor ou da melhor escolha phantasmatos
ouk aletheias? A isto, replicarei: —e quando eu poderei explicar isto,
não teríeis sentido menos a verdade do que vos disse? E seria menos verdadeiro
que, por um olho microscópico, a imitação rigorosa de uma unha, de um cabelo,
não fosse um retrato? Mostrarei que tendes este olho, e que deles vos servís
ininterruptamente”.
Inicia-se,
no prólogo do Salão de 1767, um
diálogo ao modo diderotiano/platônico: “Não concordais que todo ser, sobretudo
animado, tem suas funções, suas paixões determinadas na vida; e que com
exercício e tempo, estas funções se expandiram sobre toda a sua organização uma
alteração tão marcada às vezes, que ela faria adivinhar a função? Não
concordais que esta alteração não afeta apenas a massa geral, mas que é
impossível que ela afete a massa geral sem afetar cada parte tomada
separadamente? Não concordais que, tendo pintado fielmente tanto a alteração
própria da massa quanto a alteração consequente de cada uma de suas partes,
fizestes um retrato? Há pois uma coisa que não é aquela pintada por vós, e uma
coisa que haveis pintado que está entre o modelo primeiro e vossa cópia. Mas
onde está este modelo primeiro? —Um momento, por favor, e chegaremos alí,
talvez. Não concordais ainda que as partes moles interiores do animal, as
primeiras desenvolvidas, dispõem da forma das partes duras? Não concordais que
independentemente das funções cotidianas e habituais que teriam logo gasto os
que a Natureza teria superiormente feito, é impossível imaginar, entre tantas
causas que agem e reagem na formação, desenvolvimento, crescimento de uma certa
máquina tão complicada, um equilibrio tão rigoroso e tão contínuo, que nada
teria pecado em lado algum, nem por excesso nem por falta ?”.
Esse
último trecho traz elementos que devem ser melhor analisados. O sistema do
corpo humano pode ser um conjunto mecânico de partes, umas exteriores à demais.
Não raro Diderot segue sugestões de semelhante modelo, que vem especialmente do
século 17, tornado célebre nas filosofia cartesiana, hobbesiana, jansenista.
Mas como é seguidor das pesquisas médicas de seu tempo, ele envolve-se mais
fortemente no pensamento orgânico, cujo elemento essencial é o desenvolvimento
do ser vivo. No Sonho de d´Alembert, a sua visão do desenvolvimento dos
viventes atinge o ápice. Estudei tal ponto em livro publicado há tempos atrás.
(84) O homem é máquina, como enuncia La Mettrie, ou organismo vivo, ou máquina
viva? Este é um elemento que persegue a reflexão filosófica no século XVIII, e
recebe as maiores críticas do romantismo, no início do século XIX. Basta citar
o romance de Mary Shelley e os contos de Hoffman. Esta base teórica
controvertida é suposta pelos enunciados diderotianos sobre a arte. Se o homem
for máquina, apenas isto, ele será pintado de modo a ressaltar os seus
elementos parcelares, unidos com maestria pelo acaso da natureza. Se ele for
animal vivo, temos o renascimento da teleologia, com o trabalho da Providência
que dá um fim aos seres naturais.
O retrato de uma pessoa não
imita rigorosamente um modelo empírico. O artista, diz Diderot, “acrescenta
algo a ele, dele retira algo. Caso contrário haveria apenas a cópia de uma
cópia”. O modelo a ser seguido é o que o artista construiu na sua imaginação,
sendo puramente ideal, não limitado a qualquer ente preso de imediato da
natureza. Assim é conseguido o "vrai
modèle idéal de la beauté". Diderot materializa o pensamento
platônico. O ideal passa ao mundo imanente do artista, não permanece na
transcendência. É que se pode ler no Salon
de 1767: " Há um modelo original que não existe na natureza, e que
existe apenas vaga e confusamente na mente do artista. Entre a mais perfeita
produção natural e o modelo vago e original, há uma latitude na qual move-se o
artista”. Todo artista ou poeta possui seu "modèle intérieur." Onde está o modelo, pergunta o filósofo:
“No espírito, na mente, na imaginação mais ou menos vívida, no coração mais ou
menos terno do autor. Assim, o modelo interno não pode ser confundido com o
modelo exterior”.
O
belo não reside na imitação da natureza ou do modelo que se expõe na oficina do
artista, nem numa suposta “bela natureza”. O belo encontra-se no modelo ideal
formado na mente do artista. Segundo Platão o pintor reproduz a beleza
percebida antes de sua vida empírica, no
mundo das idéias, da qual mantem a lembrança. Diderot assume, sem o lado
místico do mundo ideal, a convicção de que o objeto trazido pelo pintor não
está no mundo sensível, mas no cérebro. (85) A arte é “coisa mental”, segundo a
expressão de Leonardo da Vinci. De início tem-se a coisa em si, impossível de
ser apreendida na concepção realista do materialismo ou segundo o idealismo
platônico. Depois vem o “fantasma subsistente” desse objeto. É tal emanação que
nós vemos e que é reproduzida pelo pintor, quando acredita copiar a realidade.
Segue-se a imagem que ele traça, a qual se relaciona com o invisível como as
aparências percebidas por nós.
Finalmente vem um terceiro nível, a copia do fantasma, o retrato.
Diderot admira Greuze porque apresenta o caráter insubstituível de um indivíduo
até em suas rugas. Este nível não é o mais elevado. Trata-se de uma “cópia da
cópia”, pois a imagem percebida já copia o real. O pintor deve visar a imagem
primeira. Para isso, é preciso que o pintor seja frio como o comediante
excelente. Se é sensível em demasia, perde-se nos encantos do objeto. Se o
artista deixa-se tomar pelo entusiasmo, e torna-se dominado pelo abalo de seus
nervos, fica apenas na primeira fase da retórica —se tomada esta última como
símile imperfeito da pintura— a marcada como inventio. Se deseja penetrar no terreno mais profundo,
o da composição ou dispositio, o artista precisa dominar a si mesmo para produzir
a ilusão (elocutio para o retor/gramático). Um quadro não é cópia. Já em 1751, na Carta sobre os Surdos e os Mudos,
Diderot enuncia que uma Noite de Vernet é mais bela do que
uma noite “verdadeira”. Como escreve
Laurent Versini, do qual retirei as análises anteriores, “a deusa da beleza que
o pintor parece desenhar segundo belas
mulheres, só existe em sua cabeça e a imagem da mulher amada também está alí
apenas: é o que diz a Refutação de Helvécio e o que dirá Um
amor de Swan. Dizendo tudo brevemente: o sublime não está na natureza,
mas no poeta (…) Talvez seja na História das Duas Indias que Diderot
fornece a expressão mais acabada dessa estética no capítulo sobre `Sobre as
belas artes e as letras´ (livro XIX). Partindo uma vez mais da idéia de que a
natureza é o ´modelo e uns e de outros´, explica que o grego corrigiu as suas
imperfeições ´e foi assim que ele se elevou gradativamente ao belo ideal, ou
seja, ao conceito de um ser que talvez seja possível, mas que não existe, pois
a natureza nada faz que seja perfeito”. (86)
Sempre é preciso notar o quanto a
leitura de um filósofo por outro é cheia de obstáculos semânticos e lógicos.
Goethe foi um grande admirador de Diderot, ao ponto de traduzir O
Sobrinho de Rameau num instante em que o pensador francês era atacado
como suposto pilar das “loucuras revolucionárias”. No caso da imitação da
natureza, o malentendido entre os dois pensadores é evidente.
Goethe
parte de um enunciado diderotiano: “Se as causas e os efeitos fossem evidentes
para nós, nada melhor teríamos a fazer do que representar os seres como eles
são. Mais perfeita seria a imitação e análoga às causas, mais estaríamos
satisfeitos”. Diderot conhecia a Suma Teológica. Nela, o pensador da
Igreja afirma o seguinte : “De dois modos pode uma coisa ser conhecida por si:
absolutamente, e não relativamente a nós; e absolutamente e relativamente a
nós. Pois qualquer proposição é conhecida por si, quando o predicado se inclui
em a noção do sujeito, p. ex.: O homem é
um animal, pertencendo animal à noção de homem. Se, portanto, for conhecido
de todos o que é o predicado e o sujeito, tal proposição será para todos
evidente; como se dá com os primeiros princípios da demonstração, cujos termos
— o ser e o não ser, o todo e a parte e semelhantes — são tão comuns que
ninguém os ignora. Mas, para quem não souber o que são o predicado e o sujeito,
a proposição não será evidente, embora o seja, considerada em si mesma. E por
isso, como diz Boécio, certas concepções de espírito são comuns e conhecidas
por si, mas só para os sapientes, como p. ex.: os seres incorpóreos não ocupam lugar. Digo, portanto, que a
proposição Deus existe, quanto à sua natureza, é evidente, pois o predicado se
identifica com o sujeito, sendo Deus o seu ser, como adiante se verá . Mas,
como não sabemos o que é Deus, ela não nos é por si evidente, mas deve ser
demonstrada, pelos efeitos mais conhecidos de nós e menos conhecidos por natureza. (…) Talvez quem ouve o nome de Deus não o
intelige como significando o ser, maior que o qual nada possa ser pensado;
pois, alguns acreditam ser Deus corpo. Porém, mesmo concedido que alguém
intelija o nome de Deus com tal significação, a saber, maior do que o qual nada
pode ser pensado, nem por isso daí se conclui que intelija a existência real do
que significa tal nome, senão só na apreensão do intelecto. Nem se poderia
afirmar que existe realmente, a menos que se não concedesse existir realmente
algum ser tal que não se possa conceber outro maior, o que não é concedido
pelos que negam a existência de Deus. (…) A existência da verdade em geral é
conhecida por si; mas a da primeira verdade não o é, relativamente a nós.”(87)
Deus não é conhecido de modo
evidente para nós. O que não implica que ele não o seja em si. Desse modo,
conhecer as causas e os efeitos de modo evidente é algo que se reserva apenas
ao Eterno. Diderot conhece a distinção entre a evidência “em si” e “para nós”.
Só Deus pode conhecer ao mesmo tempo, com evidência plena, as causas e os
efeitos. Os humanos jamais terão semelhante conhecimento. Justamente por tal
motivo Diderot constrói o enunciado repetido por Goethe no condicional: “se as
causas e os efeitos fossem evidentes para nós….” Ocorre que tanto o Diderot que
se recorda do tomismo quanto o Diderot materialista não aceitam que existam
“evidências” absolutas para nós no mundo empírico. Daí a insatisfação com as
cópias da natureza e o apelo ao modelo imaginado pelo artista.
Deixando
de lado esse aspecto importante, Goethe proclama que a tendência diderotiana
está em “confundir natureza e arte, enquanto a nossa preocupação deve ser a de
representar um e outro separados em seus efeitos. A natureza organiza um ser
vivo e indiferente. O artista organiza um ser morto mas que é importante, a
natureza, um que é real, o artista, um aparente”. (88) Como diz Roland Mortier,
“Goethe às vezes trata Diderot com excessiva severidade e, mesmo com alguma
injustiça”. (89 ) Mas de modo efetivo, o poeta alemão não desconhece em momento
algum os grandes méritos de Diderot, não lhe poupa a sua admiração, mas pensa
que o francês é limitado a um aspecto sempre vivaz da estética do século 18, a
confusão entre natureza e arte.
Diderot
afirma : “a natureza nada faz que seja incorreto”. Goethe o corrige: em, vez de
“incorreto”, ele grafa “inconsequente”, porque a incorreção “supõe regras
editadas pelo homem, enquanto a natureza, indiferente à fealdade como à beleza,
só age em função de leis orgânicas internas”. Goethe explica o erro diderotiano
por um aprofundamento insuficiente do problema e pela confusão de noções
diferentes. A principal confusão, a mais essencial e que vicia todo o sistema,
é a da natureza e da arte. A natureza cria o ser vivo e organiza o real. “O
artista não poderia rivalizar com ela, pois sua criação é apenas artifício; seu
papel é o de apegar às obras naturais uma significação, um pensamento, um ato
da alma. Chega-se à natureza pelo conhecimento de suas leis e à arte pelo gozo
desta mesma realidade. O artista, apesar de Diderot, poderá pois se permitir
ignorar a fisiologia e a patologia. O conhecimento não conduz à arte, as únicas
regras às quais aquela última deve submeter-se são as leis extraídas de sua
longa prática, com frequência é o gênio
que as dita”. (90) De qualquer modo, as críticas dirigidas por Goethe a
Diderot, bem fundadas ou não, constituem a base da Doutrina das Cores.
Quando
desejamos entender a proposta estética diderotiana é preciso discutir antes a
questão essencial que perpassa as Luzes. Refiro-me à tese considerada clássica
do predomínio do desenho sobre o colorido. Este ponto liga-se à idéia da
anamorfose como desafio aos intelectos e às sensibilidades. O que é uma
anamorfose? Trata-se de procedimento optico que esconde revelando e revela
escondendo. A técnica teve grande uso no período barroco, campo mesmo da
inversão de perspectivas que abrange o segredo e o desvelamento. O segredo é
arma do Estado, depois de ter sido arma predileta das corporações, para vigiar o
interior da sociedade e os seus inimigos externos. (91) Seria preciso
dissimular o que não pode ser visto imediatamente tanto pelos súditos quanto
pelos Estados concorrentes ou adversários. Os ritos da política foram
perfeitamente descritos por Shakespeare com este recurso, falando-se sobretudo
dos ritos dolorosos, como no golpe de Estado que depôs o rei Ricardo II da
Inglaterra. O poeta descreve, com o recurso da anamorfose, uma explosão de
tristeza nos olhos da rainha que pressente o destino do rei que perderá o trono. (92)
O segredo de Estado deve ser
mantido com dissimulação, seguindo o uso das anamorfoses. A própria
dissimulação é posta no jogo entre aparência e anamorfose. Veja-se a definição
do ato dissimulado por Torquato Acetto : “La dissimulazione è una industria di
non far veder le cose come sono. Si simula quello che non è, si dissimula
quello ch'è”. (93) Para bem dissimular é preciso bem saber a técnica da
anamorfose. O incauto a ser enganado deve perceber uma pintura confusa. Apenas
se dominar a arte da perspectiva, olhando a pintura por um ângulo certo, ele
perceberá o real que lhe foi intencional e maliciosamente escondido.(94)
Francis Bacon, no ensaio Of Simulation and Dissimulation,
mostra que a segunda é forma política ou
sabedoria. Cabe ao coração e à mente fortes “conhecer quando deve ser dita a
verdade, e fazê-lo. Pois se um homem tem esta penetração de juízo, através do
qual ele pode discernir quais coisas devem permanecer abertas, e quais
secretas, e o que deve ser mostrado em meia luz, e para quem e quando (estas
são, de fato, a arte do Estado, e as artes da vida, como Tacito as chama), para
ele, um hábito de dissimulação é uma pobreza”.
Se
as individualidades livres precisam tudo dissimular nos governos tirânicos,
estes últimos precisam ainda mais da dissimulação para apanhar seus inimigos
ocultos. Semelhante técnica foi muito utilizada durante todo o antigo Regime.
(95) As Luzes tiveram como programa atenuar ao máximo o seu emprego. Numa visão
política que salientou a visibilidade do poder, a dissimulação e a anamorfose
são pensadas como artifícios que potenciam a tirania dos soberanos. As técnicas
de “esconder revelando” e o uso excessivo das cores para dissimular o que é são
recusados pelos Philosophes. Se o artista usa tintas carregadas, tal tarefa
dissimula defeitos do desenho na idealização do quadro. Nessa operação as cores
em demasia servem enquanto máscara que esconde do observador as falhas
intelectuais do trabalho. Assim como a Critica da Razão Pura é uma espécie
de ascética da razão, com o indicativo do uso correto do intelecto e do diverso
da sensibilidade, impedindo a sofística metafísica, também na estética Kant, em
consonância com o século XVIII, busca uma ascética da pintura, praticada no
desenho. Este último permite passar do sensível ao inteligível, sem
dissimulação da sensibilidade e sem demasiado apego ao estritamente racional. O
desenho permite ao ser humano a libertação do olhar empírico. No traçado e nas
linhas puras o homem aprende os seus limites (ele não é um ser bruto, puramente
sensível, nem anjo puramente intelectual), treinando as suas mãos, fonte de
humanização. O desenho permite aos homens ultrapassar barreiras, postas por
eles mesmos, rumo a formas cada vez mais límpidas, horizontes sempre mais amplos.
O desenho permite denunciar o segredo, a dissimulação e a simulação dos poderes
dominantes não fundamentados na dignidade da pessoa humana.
O
primado do desenho, do traço leve sobre os demais componentes da percepção, foi
bastante aceito no século XVIII. Louis Hautecoeur, citado por Starobinski em 1789
ou o Emblemas da Razão (96) assim enuncia: “Eles —os artistas do
tempo que retornavam aos classicismo— desejavam atingir a beleza mais geral e
constante, e desse modo eliminavam tudo o que era apenas acidente, a cor e
mesmo a sombra; o desenho, ao contrário, que, circunscrevendo a forma, é o
elemento plástico mais intelectual, tornava-se o único importante e se reduzia
à indicação dos contornos; o desenho do traço, essa abstração, lhes parecia o
único meio razoável para realizar suas concepções”.
Vejamos
esse ponto em Kant, na Crítica do Juízo : “Todo interesse
corrompe o juizo de gosto e lhe retira sua imparcialidade, sobretudo quando ela
não coloca a finalidade antes do sentimento de prazer”. No § 42 pode-se ler : ”Possuimos uma
faculdade de juizo puramente estética para julgar formas, sem conceitos e
encontrar a satisfação no simples juizo;
fazemos de tal satisfação uma regra geral, sem que esse juizo seja motivado por
algum interesse e sem que se produza um”.
Um
gosto interessado é uma experiência parcial do olhar, de todos os sentidos. Ele
impede justamente a reflexão que possibilita a síntese que garante o juizo em
sua universalidade. Quando é a parte que se manifesta, na produção ou apreciação
do trabalho artístico, quando algumas faculdades são privilegiadas, o sujeito
se fragmenta, seu olhar e demais sentidos se despedaçam. “O gosto sempre permanece bárbaro, quando tem
precisão da mistura dos atrativos (Reiz) e das emoções para a satisfação”.
Os enfeites agradam ao homem não formado, satisfazem-no, mas não podem ser
vistos como belos, de imediato.
A
cor interessa aos sentidos e nisso reside o seu limite. “A maioria declara
belos em si mesmos uma simples cor, por exemplo o verde de um gramado, um
simples som (distinto da ressonância ou do barulho), por exemplo o de um
violino; entretanto, essas duas coisas parecem ter como principio apenas a
matéria das representações, isto é, apenas a sensação e, por isso, elas não
merecem outro nome a não ser o de agradáveis. Notar-se-á, no entanto, que tais
sensações de cor, bem como as de som, só podem ser consideradas belas com
justiça, na medida em que elas são puras; está aí uma determinação já relativa
à forma, e é também a única que pode ser comunicada universalmente com a
certeza de nossas representações”.
Temos
aí a visão cosmopolita da estética e da política, própria às Luzes. Toda
particularidade, toda imposição de uns sobre outros, todo domínio de certas
vontades sobre as demais é exorcizada. “Com efeito, não se pode admitir sem
obstáculo que a qualidade das sensações concorde em todos os sujeitos, e que
cada um considere de modo idêntico tal cor mais agradável do que outra, ou tal
som de um instrumento musical, mais agradável do que outro”.
O
desenho, forma pura, surge então como artifício para se instaurar a Paz
Perpétua na fruição do mundo : “O desenho é o essencial; nele não é o que apraz
à sensação, mas apenas o que agrada pela sua forma, que constitui para o gosto
a condição fundamental: As cores que iluminam o traço (Abriss) pertencem aos
enfeites; por certo, elas podem tornar o objeto mais vivo para a sensibilidade;
elas não poderiam torná-lo mais digno de ser contemplado e belo”.
“É o branco untuoso, igual sem
ser pálido nem esmaecido; é a mistura de vermelho e de azul que transpira
imperceptivelmente; é o sangue e a vida que causam o desespero do colorista”.
Tais frases foram escritas por Diderot para falar na dificuldade extrema para
se pintar as carnes humanas. (Ensaios sobre a Pintura, capítulo
II). E também: “é o desenho que dá
formas aos seres; é a cor que lhes dá a vida. Eis o sopro divino que os anima.
Somente os mestres na arte são bons juizes do desenho, mas todo mundo pode
julgar da cor”. (97) A cor expressa os pensamentos, os sentimentos, as emoções,
sobretudo quando se trata de pintar o rosto. Este último nos fascina porque
define “uma tela que se agita, se move, se estende, se distende, se colore, se
atenua segundo a multidão infinita das alternativas desse sopro leve e movel
que chamamos alma”. (Idem, capítulo II).
Conforme
o comentário de Baldine Saint Girons : “a doença, o medo ou a fadiga retiram o
sangue do rosto e deixam subsistir um branco mais ou menos azulado; a timidez,
a delicadeza ou o pudor enrubescem a pele que se torna por vezes vermelha, sob
efeito da tensão e da cólera. A própria sombra não poderia aparecer como o
premio da reflexão?”. (98) Tanto Kant quanto Diderot herdam uma percepção
anterior das cores e do desenho.
Segundo
Kant a pintura é uma arte da “aparência sensível”. Como plástica, ela exprime “as idéias graças às figuras
espaciais” perceptíveis pela vista. Na
imaginação existiria uma “idéia estética” mas a figura que constitue a sua
expressão é dada segundo a maniera pela qual a extensão corporal do objeto é
pintada no olho. A pintura ( arte da imagem e da forma) apresenta a aparência
sensível unida às idéias. Ela é a primeira arte da forma e da imagem “porque
está no principio de todas as demais artes da forma enquanto arte do desenho, e
porque ela pode penetrar bem mais antes na região das idéias e em acordo com
estas, estende mais do que é permitido às outras artes o campo da intuição”.
(CJ, § 53).
Para
os teóricos mais relevantes do século 18, a cor seria o fruto de um talento
inato, mais do que devido à formação técnica. Assim, o pintor que fundamentaria
o seu trabalho inteiro na cor e menos no desenho deveria receber a desconfiança
do público. Sigo ainda as análises de Saint Girons que se pergunta: a cor não
viria de um poder oculto e e perigoso, o do ilusionista e do mágico ?
Recordemos que a cor e a pintura entram na suspeita da simulação e da
dissimulação empregados pelos que desejam manter segredos, sejam eles reis ou
padres. Cores em demasia afastam os olhos das formas e das idéias. Tais
armadilhas foram empregadas pelos soberanos civís ou espirituais, reduzindo a
pintura à propaganda do Estado ou da Igreja.
O
regime do absolutismo real serviu como elemento de luta, inclusive na querela
do desenho e das cores. No reinado de Luiz XIV, os defensores da pintura de
Poussin, partidários do desenho e os defensores de Rubens, são apologetas da
cor e do gênio livres. (99) O partidário do desenho Dufresnoy expõe a cor como
“beleza enganadora e agradável” e também como astuciosa proxeneta, prostituta
astuciosa (subdola lena). Roger de Pile chama a cor um fardo cuja essência
é enganar, provocando os desejos do observador. Afastando-se do belo, a cor
evoca mais o sublime pela comoção que provoca. Temos o caminho para a percepção
teórica das cores pelos românticos, por Goethe e por Schopenhauer. (100)
Na Encyclopédie,
o artigo “desenho” discute a querela entre as cores e os esboços intelectuais.
A palavra desenho, enuncia Watelet, (101)
pode significar a produção que um artista expõe com ajuda de lápis ou
pena. É em tal sentido que se emprega a palavra, para designar uma das partes
essenciais da pintura. “Levantaram-se disputas muito vivas, nas quais se tratou
de estabelecer hierarquias e subordinação entre desenho e cor. Julga-se facilmente
que os mais sensíveis às belezas do colorido e menos ao desenho, ou eram amigos
de um pintor colorista, preferiam essa
parte brilhante da arte de pintar; os afetados diferentemente, ou acreditavam
comprometidos os hábeis desenhistas sustentaram o contrário. A que isso levaria
? O resultado comum das discussões produzidas pela parcialidade; elas não têm
solidez alguma; elas não contribuem para a perfeição das artes, nem ao bem
geral que todos, que usa seu espírito, deve ter em vista; elas só merecem ser
citadas como abuso do espírito. A imitação geral da natureza, o alvo da
pintura, consiste na imitação da forma dos corpos, e a na imitação de suas
cores. Querer decidir entre o desenho ou a cor, qual deles é o essencial para a
arte de pintar, é querer determinar entre a alma e o corpo humano, qual deles
contribui mais para a sua existência.”
O
desenho não dispensa o esboço. No italiano, o esboço significaria uma “espécie
de desenho desprovido de sombra, não acabado”. (102) O artista serve-se do
esboço para expressar “uma idéia que surge em sua imaginação”, movendo “todos
os meios à sua mão; o carvão, a pedra colorida, a pena, o pincel, tudo
igualmente”. Tudo concorre igualmente
para seu alvo. O esboço é a primeira idéia sobre um assunto. A indecisão no
ordenamento, a incorreção no desenho, assevera Watelet, a aversão pelo término
do trabalho, são coisas perigosas para o artista, sobretudo quando se trata de
aprendizes. É naquela encruzilhada que os defeitos podem parecer belos para os
espectadores, dada a sua pouca exigência. E conclui o verbete: “o artista deve
fazer um uso justo e moderado dos esboços; eles devem ser para ele apenas uma
ajuda para fixar idéias concebidas, quando aqueles idéias merecem ser
pintadas. Ele deve se precaver contra a
sedução das idéias numerosas, vagas e pouco raciocinadas (raisonnées) que
apresentam ordinariamente os esboços. Quanto mais ele se permitiu ser
independente, nada recusando do que apresenta ao seu espírito, mais ele deve
examinar rigorosamente essas produções libertinas quando deseja definir sua
composição, é pela regras desta parte da pintura, os preceitos da composição, e
no tribunal da razão e do juízo, que ele verá o fim das indecisões do amor
próprio, e decidir o justo mérito de seus esboços”.
Watelet
usa a metáfora também invocada por Kant para tratar o desenho. E ademais, ele
apela para a razão e para o juizo, o meio do artista se revelar imparcial em
relação a si mesmo, ao seu próprio trabalho. Outro ponto, é que Watelet não
considera útil o debate entre os seguidores do desenho e os que apreciam mais a
cor. (103)
A
Encyclopédie,
onde muitas vozes discordantes são ouvidas ao mesmo tempo, representa um
contributo para a troca de opiniões entre especialistas. Não se pode esquecer
que o próprio termo, as Luzes, liga-se ao impulso dos enciclopedistas dado ao
estudo da luz, das cores e das sombras.Embora seja simbólica a passagem da Luz
da ciência e das artes às trevas da superstição, a síntese dos saberes, nos
verbetes da coletânea, fundamenta-se em minucioso apanhado das teorias
científicas e práticas da época. Assim, não é possível abstrair os escritos
sobre o desenho dos dedicados às cores. E não é possível divorciar as
exposições daquelas últimas das técnicas picturais, retóricas, poéticas. O
verbete sobre as cores, a partir de Newton e de Buffon, expõe a sua origem,
combinações, elementos quimicos que as definem na ordem técnica (sobre o papel,
as paredes, etc) e assim possibilita um conhecimento que fundamenta o trabalho
estético a ser empregado na pintura. Watelet recusa a opção entre desenho e
cor. Diderot, como I. Kant, aceita o predomínio do desenho. Mas enxerga na
pintura algo mais do que o intelecto que traça os contornos das idéias. Nela
percebe a força do sublime, algo que surge no jogo entre clareza e escuridão,
com a força das cores.
Diderot
apega-se às formas do sublime para valorizar o enlace da luz e das sombras, o
modo obscuro exaltado no século 19 sob influência de Edmund Burke. Mas seu
entusiasmo com artistas que usam de modo magistral o colorido permanece
inquestionado ao longo dos Salões. (104) Mas o modelo almejado
por Diderot é o equilibrio entre desenho e colorido, algo que ele encontra em
Chardin e em vários outros pintores de seu tempo. Resta sua predileção pelo
claro/escuro, uma definida forma de pensar a luz e as cores muito diferente do
romanismo.
As
representações românticas exaltaram o final das Luzes e do desenho
excessivamente intelectual, no mesmo passo em que fizeram o elogio da Noite. O
caso de Novalis é o mais saliente. É do
poeta e filósofo o enunciado seguinte: “o jogo do olhar possui uma liberdade de
expressão extraordinária. Os demais jogos fisionômicos (…) são apenas
consoantes para as vogais dos olhos”. Seria importante recordar que entre os
românticos como Novalis e autores que vieram depois deles se estabelece todo um
rendilhado inter-textual. Basta citar Mallarmé (“o colorido das vogais
corresponde a uma evolução progressiva de nossos sentidos mais elevados.
Caminhamos, assim, para a síntese das sensações”) e Nietzsche: “…saber dar um
sentido à sucessão das vogais e ditongos, vê-los se colorir, irisar-se com os
mais delicados tons, os mais ricos, pelo simples fato de sua sucessão…” (Para
Além do Bem e do Mal).
Em
Novalis a passagem das letras às cores é matizada: “Poderíamos dizer dos olhos
que são um teclado de luzes. Assim como a garganta opera com entonações mais
altas ou baixas (as vogais), o olho se exprime por meio de clarões mais ou
menos fortes ou fracos. Não seriam as côres as consoantes da luz?”. Tanto
Novalis, quanto Mallarmé e Nietzsche falam num campo irisado pela intuição da
sinestesia, comum ao movimento romântico de todos os matizes. Mas as hipóteses
sobre a sinestesia descem mais abaixo, chegam aos pressentimentos de René Ghil,
no livro intitulado Traité du Verbe : “que surjam agora as côres das vogais, soando
o mistério primordial. Coloridas assim se provam, para meus olhos isentos de
enceguecimento anterior, as cinco: A (negro), E (branco), I (azul), O
(vermelho), U (amarelo), na extremamente calma beleza dos cinco lugares onde o
mundo se espraia ao sol; mas o A estranho abafa dos outros a própria glória,
pois sendo o deserto, ele implica todas as presenças”.
Hoffman,
na Kleisleriana, fala das carnações
do som, com seu odor, a propósito do clarinete tenor. E diz mais ainda: “Não é
tanto no sonho, mas no estado de delírio que precede o sono, e particularmente
quando ouvi muita música, que percebo certa concordância entre as côres, os
sons e os perfumes. Parece-me, então, que todos eles se manifestam de maneira
misteriosa, e igual, na luz solar, para se fundir num maravilhoso concerto…”.
Théophile Gautier ouviu e viu notas em pianoforte, vermelhas e azuis.
Baudelaire experimentou transformações mentais entre notas de música e cálculos
aritméticos. (105 )
Evidentemente
as intuições românticas sobre a sinestesia têm origem em data muito recuada no
tempo. No século das Luzes, o cravo ocular do Padre Castel deslanchou a corrida e o debate sobre a passagem dos olhos aos ouvidos, algo que
interessa ao estudo médico e filosófico dos surdos. Esta iniciativa
apresenta-se ao longo de todas as discussões sobre os sentidos, da vista aos
ouvidos, que suscitaram a publicação da Carta sobre os Surdos e os Mudos.
Diderot trata a questão de modo irônico nas Jóias Indiscretas. (106)
Na
Carta
sobre os Surdos e Mudos, após a descrição do impacto causado pelo cravo
ocular sobre o surdo em análise, Diderot recorda um livro anterior, a Carta
sobre os cegos e cita o exemplo do espelho para os deprovidos do
recurso visual. (107) O surdo, diante do cravo ocular, imagina que seu inventor
também é surdo e mudo, e imagina que a máquina lhe serviria para conversar com
as outras pessoas: cada um dos matizes “tinha no teclado o valor de uma das
letras do alfabeto, e que por meio dos toques e da agilidade dos dedos, ele
combinava essas letras, formava com ela palavras, frases, enfim todo um
discurso em cores”. (108) A interpretação do surdo é mais sagaz do que se
imagina, diz Diderot. Pois ela permite compreender um pouco mais a experiência
de toda pessoa que enxerga os quadros de uma galeria de pintura, pois todas se
experimentam como se fossem surdas “examinando mudos que se entretêm sobre
assuntos que lhes são conhecidos. Este ponto de vista é um daqueles sob os
quais sempre olhei os quadros que me foram apresentados; e eu constatei que se
tratava de um meio seguro de conhecer suas ações anfibológicas e seus
movimentos equívocos: de ser prontamente afetado pela frieza ou pelo tumulto de
um fato mal ordenado ou de uma conversação mal instituída; e de captar, em uma
cena pintada em cores, todos os vícios de um jogo languescente ou forçado”.
(109)
A
técnica do surdo permite, portanto, indicar no quadro…a maneira. Existem as
maneiras cerimoniais, as maneiras demagógicas, as maneiras que evidenciam
decadência do gosto ético e estético. O procedimento diderotiano que visa
denunciar as maneiras na pintura é o mesmo no Sobrinho de Rameau, na Religiosa,
nas Jóias
indiscretas e sobretudo em Jacques o Fatalista, para denunciar
o artifício da ordem, cuja anamorfose simula a imensa desordem do mundo social
que envolve os indivíduos livres. Uma tecnologia do desvendamento é movida
contra o segredo pictural, social e político. O traço ético invade as
dobraduras da estética, impondo a esta última parâmetros a ela estranhos. Dessa
moléstia diderotiana o pensamento que se quer democrático e socialista, nos
séculos 19 e 20, permaneceu adoecido, sem remissão.
Mas
Diderot –e nisso reside o seu maior interesse em nossos dias— um exemplo de pensador
das Luzes, ao tratar da estética também não teme elevar a palavra de ordem que,
radicalizada pelo romantismo, é a contra-partida do ideário iluminista: “Sede
tenebrosos!”. E arremata: “A clareza é boa para convencer; ela nada vale para
emocionar. A clareza, de qualquer maneira que ela seja entendida, prejudica o
entusiasmo”. (Salão de 1767). De
acordo com essa palavra de ordem, a paleta dos pintores escureceu, um exemplo
disso é Goya, homem das luzes e ao mesmo tempo crítico do mundo burguês e do poderio
imperial.
Não
apenas na pintura, mas na retórica, o estilo claro perde terreno com o avanço
do século 18. Edmund Burke, sempre ele, mostra que a falta de vivacidade é
marca do pensamento claro, tornando-o incapaz de mover a imaginação. Ele é incapaz
de comunicar afetos. E Milton é um lugar preferido para mostrar o quanto Satan
move a imaginação e o terror, justamente porque ele encarna “um excesso de
esplendor obscurecido”. Aqui temos o paradoxo. Ver o negro é cair, diz Saint
Girons, numa não visão. Sempre é bom recordar o início da Grande Lógica de Hegel na
qual se diz que se temos a luz pura, nada enxergamos e se temos a obscuridade
pura, também nada vemos.
Nas
doutrinas gregas sobre a arte e a poesia, além da tragédia, fala-se numa
“vertigem tenebrosa” (skotodine), a obscuridade em que se
mergulha, com a impressão de uma queda. A visão do negro não é necessariamente
causa da vertigem, mas a acompanha. A vertigem momentânea é sempre unida à uma
“depravação no exercício da vista” a um desarranjo situado na retina, diz o
artigo da Encyclopédie de Diderot. “Ninguém ignora que, quando temos os
olhos fechados, a menos que não se gire com rapidez sobre si mesmo e que se
descreva um pequeno circulo, não se tem o risco de vertigem, e esta observação
introduz o costume de fechar os olhos dos animais que devem mover os moinhos”.
Apesar
disso, o encanto do sublime reside, para Diderot e para outros autores do
século 18, antes do reinado soturno do romantismo, na luz, que nos traz
encantamento e esplendor que nos atordoa. Como no caso do comentário de Diderot
diante do quadro de Chardin : “ o que é esta perdiz? Não vedes? É uma perdiz. E
isto? Um perdiz ainda…”. (Salão de 1769). (110 )
Parece-me,
diz Diderot nos Pensamentos esparsos sobre a pintura, que Rembrandt poderia ter
escrito abaixo de suas composições: Per
foramen vidit et pinxit (Ele viu pelo buraco da fechadura e pintou). Sem
isso, não se entende como sombras tão fortes podem envolver uma figura tão
vigorosamente iluminada. Mas os objetos são feitos para serem vistos por
buracos? Se a luz forte desce bruscamente e atravessa as trevas de uma caverna,
é um acidente do qual permito a imitação do artista, mas jamais suportarei que
ele faça disto uma regra. Pelos reflexos, a luz primitiva pode se dobrar sobre
si mesma e tornar-se mais forte por acidente. Exemplo: ao mesmo tempo que a luz
primitiva cai sobre um objeto, este objeto pode ainda receber o reflexo de uma
parede branca. Pergunto se o objeto não deve ter então o esplendor maior do que
a luz primitiva. Pode ocorrer, pois, e por acidente, que a luz primitiva não
seja a mais forte na composição.
Em
Diderot, como indiquei acima,
apresenta-se a recusa do rococó. É lugar comum indicar a crítica
endereçada por ele a Boucher. Este seria “o inimigo mais mortal do silêncio (…)
ele está entre as mais graciosas marionetes do mundo e tocará à iluminura. Pois
bem, meu amigo! No momento em que Boucher deixou de ser artista ele foi nomeado
o primeiro pintor do rei”. (111) Embora não aceitando a pintura de Boucher,
Diderot sabe perfeitamente que o gosto representado pelo pintor ainda apresenta
muito apelo. Como escreve Jacques Chouillet, em Fragonard continua a presença
de Boucher no Salão de 1765. Embora admire Fragonard devido ao quadro Coresus,
nele enxerga a permanência do rococó. O que haveria na recusa do mencionado
estilo em Diderot? Um autor que luta contra as maneira e apregoa a moral
burguesa no romance e no teatro, também marca a sua análise da pintura por
semelhante viés. Daí a sua indulgência para com o pintor Greuze e suas cenas
patéticas de moral familiar. Trata-se de uma concepção de “intimidade” ignorada
pelas artes e também pelas políticas do Antigo Regime.
Uma
inspeção atraente desse ponto encontra-se em Leo Spitzer, justamente quando
comenta um poema de Voltaire, bom testemunho dos limites entre o período rococo
e as novas formas “burguesas” de percepção intelectual e de sensibilidade
artística. Ao discutir a poesia inscrita na Carta XXXIII, Les vous et les Tus
(1730), Spitzer expõe a essência do rococó afirmando que nele o indivíduo
“encontra-se ambientado num intérieur cheio de coisas: a
multidão de objetos pequenos, graciosos (´des fragiles merveilles´). No período exaltou-se a percepção das
“grandiosas linhas arquitetônicas, claras e ininterruptas”, fazendo transcender
o homem com o apelo ao seu senso de grandeza e imortalidade. Tal quadro, no século dezoito, se estilhaçou “em muitas curvas doces que
envolvem terna e confortavelmente o corpo humano.” Os objetos, assim, chegam a
se tornarem tirânicos.”. (112 )
Spitzer
desenvolve a célebre análise de um quadro exposto por Boucher cujo tema é
Madame Pompadour. Diante daquela pintura o observador é atingido “pela riqueza
dos objetos que enchem a salinha, até o ponto de transbordar sobre o seu corpo,
numa profusão de rosinhas que tombam em cascata ao longo do vestido de brocado
que continua a ondulação das almofadas, dos drapeados, dos móveis ondulantes.
De uma parte os objetos são vistos como extensões da figura em seu quarto, de
outra parte a figura torna-se ela mesma ornamento, um bibelot humano.”. Tal
interior deve forçosamente “usurpar a vida intima de quem o habita. Os objetos
primeiramente amáveis e protetores podem, ao impor sua própria lei, tornam-se
tirânicos. É típico da pintura do século 18 o fato de que o rosto humano, o
qual torna humano o homem, tende a ser eclipsado pela curva do corpo que se
adapta às linhas do aposento. Os lineamentos tornam-se sempre mais privados de
expressão, até a evaporar-se numa linha vaga, rosada, como em La
chemise enlevée de Fragonard, ou a cristalização num perfil negro. Como
nas silhouettes.”.
Os traçados entre escuro e claro eram
estratégicos na reflexão sobre a pintura, antes de Diderot. Em um autor
preocupado ao mesmo tempo com as artes pictóricas, o teatro, a poesia, a lingua
e a passagem de todas aquelas artes, uma na outra, interessa muito recordar o
quanto é dramática a concepção diderotiana do clair/obscur.
A
principal tarefa dessa oposição é “impedir o olho de se perder, fixando-o sobre
certos objetos”. Assim, alguns grandes fortes contrastes de luz e sombra são
preferíveis à multiplicidade de pequenos, os quais tendem a produzir o efeito
dispersivo conhecido como papillotage. (113) Assim, o efeito
claro/escuro é um meio de unidade para o efeito dramático da própria natureza.
Assim, na passagem seguinte, citada por Fried: “Nossos passos se detêm
involuntáriamente; nossos olhares passeiam pela tela mágica e gritamos: ´como é
belo este quadro!´. Parece que consideraríamos a natureza como o resultado da
arte; e recíprocamente, se ocorre que o pintor nos repete o mesmo encanto na
tela, parece que olharíamos os efeitos da arte como os da natureza. Não é no
Salão, é no fundo de uma floresta, entre as montanhas que o sol sombreia e ilumina,
que Loutherbourg e Vernet são grandes”.
(Ensaios
sobre a Pintura). (114 )
Ou
então: “Assim como a cor geral de um quadro, a luz geral tem o seu tom. Ela é
forte e viva, quanto mais as sombras são limitadas, decididas e negras. Afastai
sucessivamente a luz de um corpo e enfraquecereis sucessivamente seu brilho e
sombra. Afastai-a mais ainda e vereis a cor de um corpo assumir um tom monótono
e sua sombra se acabará. No crepúsculo, não há mais quase efeito de luz
sensível, não há mais quase nenhuma sombra particular discernível”. Seria bom
recordar aqui uma nota histórica de filosofia. Hegel, leitor atento de Diderot
e doutrinário que tentou pensar a estética na escala da cultura, rumo ao saber
filosófico, autônomo diante de toda sensibilidade, diz exatamente o que é
enunciado pelo enciclopedista em mais do que célebre enunciado : “quando a
filosofia pinta seu cinza sobre cinza, uma forma de vida envelheceu e ela não
se deixa rejuvenescer com cinza sobre cinza, mas apenas conhecer. O pássaro de
Minerva só levanta seu vôo no crepúsculo”. Quanto mais cinza, mais próximo da
Razão, mais longe da sensibilidade corpórea. Mais monótono, diria Diderot…
Mas
o francês amplia sua análise, da luz à sombra: “Meu amigo, as sombras também
têm suas cores. Observai atentamente os limites e mesmo a massa da sombra de um
corpo branco; e discernireis aí uma infinidade de pontos negros e brancos
interpostos. A sombra de um corpo vermelho tinge-se de vermelho; parece que a
luz, ferindo o escarlate, se desprende dele e carrega com ela moléculas. A
sombra de um corpo com a carne da pele forma um débil tom amarelado. A sombra
do corpo azul toma uma nuança de azul; e as sombras e os corpos refletem-se uns
sobre os outros”. A polêmica contra o rococó, na pena diderotiana, o conduz a
acentuar o ponto de vista como ato privilegiado do pintor diante do observador.
A tarefa do artista é atingir a alma do observador por intermédio de seus
olhos. (115 ) A obrigação de um pintor é
atrair (attirer, appeler) e depois deter (arrêter) para finalmente
prender (attacher) quem observa um quadro. Mas não de modo a tombar na
caricatura para agradar o observador. “Eu não poderia suportar as caricaturas,
seja no belo, seja no feio, porque a bondade e a perversidade podem ser
igualmente exageradas”. (116 ) E nos Ensaios sobre a Pintura afirma-se
que “O tom geral da cor pode ser fraco, sem ser falso. O tom geral da cor pode
ser fraco sem que a harmonia seja destruída; pelo contrário, é o vigor do
colorido que é difícil aliar com a harmonia. Fazer o branco e fazer luminoso,
saõ duas coisas muito diversas. Tudo sendo igual, aliás, entre duas
composições, a mais luminosa agradará seguramente, bem mais, é a diferença
entre o dia e a noite. Qual é então, no meu entender, o grande colorista? É o
que tomou o tom da natureza e dos objetos bem iluminados, e que soube
harmonizar seu quadro. Existem caricaturas de cor como de desenho; e toda
caricatura é de péssimo gosto”. (117)
Pode-se aventar a idéia, sugerida por Fried (118) segundo a qual Diderot, com
outros escritores do século 18, propõe um retorno à verdade e à natureza,
contra o maneirismo do rococó.
Retomo
a descrição de Spitzer, cujo assunto é o rococó na paleta de Boucher. Ele
enuncia que o quarto pintado, tendo no seu núcleo Madame Pompadour coberta de
rosinhas, como se fosse um bibelot humano, e no qual os objetos dominam o corpo
humano, integram a essência do rococó. A passagem faz recordar o desconforto
diderotiano com o seu novo robe de chambre, o qual lhe retira toda livre
intimidade, recobre seu próprio corpo com uma carapaça desconfortável. (119 )
“Ao se deformar de modo singular, a roupa perde seu estauto de objeto
impessoal, gelado. O tempo se deposita e anima secretamente a vestimenta que se faz para a pessoa. A roupa nova é como
se fosse uma violência feita à identidade pessoal”. (120 ) O que significaria
“intimidade” para Diderot, e qual o significado dessa noção no período mais
importante do rococó? Fala-se com frequência no enciclopedista como propositor
do drama burguês e de uma visão burguêsa da arte e da vida. É preciso atentar
para o fato de que Diderot é um escritor urbano nada afeito à corte ou aos seus
arredores. (121 ) Se existe autor que levou a sério a crítica de Rosseau à
sociedade por ele conhecida, trata-se de Diderot. Tanto na Religiosa quanto no Sobrinho
de Rameau são expostas as mazelas do indivíduo que vive “segundo a
opinião dos outros, sendo de seu juízo apenas que ele extrai o sentimento de
sua própria existência”. (122) Nesta
medida, seus escritos movem-se no clima da chamada sociedade civil burguêsa,
dividida entre um lado público e outro privado, mas a atitude do filósofo é bem
elucidada em sua exclamação impaciente, grafada em se tratando de Madame de la
Carlière e da “inconsequência do juízo do público sobre nossas ações
particulares” : o público, “esta multidão imbecil que nos julga”. (123 ) Tanto
a Religiosa
quanto o Sobrinho são espécies de marionetes movidas pelos fios da
opinião pública.
A
sociedade do Antigo Regime onde se expandiu o rococó é aglomeração refinada de
máscaras. Os trabalhos diderotianos desnudam permanentemente, à semelhança de
Rousseau, a dissimulação mascarada que nela define os papéis. De certo modo, o
coletivo da corte é ao mesmo tempo lugar onde todos estão mascarados e onde
ninguém possui intimidade. Tudo está à mostra, tudo é exibido. Os indivíduos
somem sob a denominação de seus títulos, seus palacetes, sua ordem social
imutável. E nenhum deles goza de existência autônoma diante do rei ou de sua
própria família. Como diz Ladurie, a sociologia saint-simoniana, exemplar da
ordem aristocrática, “ampara-se na biologia: ninguém se torna duque ou
príncipe, nasce assim; já se é uma ou outra coisa ao sair do ventre da mãe, e
mesmo lá dentro. Uma princesa dá à luz um duque, uma raínha dá à luz um príncipe”.(124
)
Vale
a pena, no entanto, matizar esta atitude, embora seja ela dominante entre
nobres do século dezoito. Como indica Pierre Serna (125 ) “é errado supor que a
aplicação das provas de nobreza, a conservação das árvores genealógicas, a
insistência no valor do sangue, sejam atitudes que vêm do passado. São, isso
sim, bem mais atuais no século XVIII, segundo Ellery Schalk, porquanto agora o
sangue é o único elemento que os pode
enobrecer. No século XVI, a nobreza era vista como um ofício ou uma função
militar, mais do que como um valor transmitido por via hereditária. A nobreza
identificava-se com a carreira das armas. Passados duzentos anos, em pleno
século XVIII, a percepção modificou-se completamente. A nobreza já não tem uma
atividade fixa. Pode, sem propriamente se exceder, escolher a sua própria
profissão (…) Resta-lhe o berço, que determina a partir de agora uma diferença
que ´ninguém pensa contestar, no seio da nobreza, desde que a tolerância do
exercicio de atividades economicas não seja posta em causa pelos plebeus de
forma aguerrida; desde que os nobres não impeçam o exercício de certas
profissões aos não nobres´”. (126 )
Assim,
nas representações nobres do século dezoito, a função pública do indivíduo
é-lhe conatural, ele a exerce diante de todos. E sem ela, o indivíduo é
impensável. A conversa da corte alimenta o ser dos sujeitos e o sujeita por sua
vez. “A sociedade européia moderna, em seus primórdios, era mais hierárquica, e
acima de tudo, mais ostensivamente hierárquica do que a nossa. Os tratados têm
muito a dizer sobre a necessidade de se incluir ´todo grupo de pessoas´na
conversação, mas nem é preciso dizer que esse grupo excluía algumas das pessoas
fisicamente presentes, em especial os criados”. (127 )
Na
França sobretudo, a conversa era uma questão de Estado, regulada por
determinações rígidas. Percebe-se tal ponto ao comparar a conversa da
Inglaterra do século XVIII e a da França saida do século XVII : “A conversação
francêsa tinha o odor da corte, ao passo que a inglêsa ainda possuia um
cheirinho do campo”. Burke assinala ainda a mudança naquela rigidez, ao longo
do século XVIII. A referida mudança corresponde à passagem da hegemonia
absoluta de Versalhes para a cidade de Paris, lugar dos philosophes e das novas
relações sociais burguêsas. E nelas, o elemento da intimidade é fundamental.
De
fato, a questão da vida íntima surge primordialmente devido ao aumento das
cidades, à nova urbanística e ao anonimato concomitante. “O problema social
levantado pela população de Londres e de Paris era o seguinte: como viver com
desconhecidos? Como ser desconhecido no meio de desconhecidos? O problema
social trazido pelas novas formas de densidade urbana era o de saber onde esses
desconhecidos poderiam ser cotidianamente visíveis, de tal modo que se pudesse
formar imagens das diferentes categorias de desconhecidos. O antigo lugar de
reunião, a praça com múltiplos usos, foi trocado pelo espaço concebido como um
monumento em si (Paris) ou como um museu da natureza (Londres). Os desconhecidos
não teriam, sem dúvida, colocado semelhante problema —dever inspirar confiança no quadro dos
encontros cotidianos—, se a estrutura hierárquica dos grupos sociais tivesse
sido deixada intacta. As imagens do nível, do dever, da deferência mútua, no
interior de uma tal hierarquia, teriam fornecido modêlos às pessoas para
aqueles encontros. A hierarquia serve talvez de eixo referencial para a crença.
Mas a economia da grande cidade, associada às mudanças demográficas,
enfraqueceu a hierarquia enquanto metro das relações entre desconhecidos. E
quando a hierarquia tornou-se incapaz de determinar o encontro com
desconhecidos, o problema do público foi posto”. (128 )
E
quem seriam os indivíduos mais proeminentes no mundo definido com império dos
anônimos? Os burgueses, a classe sem nome e que tem apenas um número para ser
indicada, o Terceiro Estado. O clero no Antigo Regime possuia atribuições
especiais, visto que nele residia a fonte derradeira da legitimidade estatal e
da ordem civil. O rei era ungido pelas mãos do clero. A nobreza, antes ligada
às armas e agora separada do povo pela marca do sangue, mantinha o culto do rei
absoluto. O Terceiro Estado pagava impostos, era humilhado pelos que possuiam
títulos e eram reconhecidos pelo nome de família.
Em
estudo antigo, mas ainda agora poderoso inspirador de análises, Bernard
Groethuysen mostra o “lugar” do Terceiro Estado na sociedade do Antigo Regime.
Na verdade, tratava-se de um “não lugar”. Enquanto a Igreja nomeava e mantinha todos os seus desvelos pelos
nobres (“os grandes”) e os pobres (“presença de Jesus sofredor”), o Terceiro
Estado não tinha espaço na pastoral eclesiástica, como não tinha lugar no mundo
do Estado. “Os grandes e os pobres na legenda cristã, terão cada um deles
títulos que devem valer. Mas onde estão os títulos do burguês? Deus não lhe
comunicou uma parcela de seu poder, e a vida burguesa não se parece, em nada, à
vida que levou o Filho de Deus no mundo. O burguês também não participa das
´grandezas da pobreza segundo as máximas desse mundo. Ele é um viajante no
mundo cristão, um homem sem nascimento”. (129 )
Mas
é o mesmo burguês que, pela audácia nos campos do negócios, pela ascensão
econômica, pelo cuidado que emprega na aquisição de saberes, e pela frenética
busca de espaço urbano em favor de seu estilo novo de vida, irá apressar todas
as políticas urbanísticas asseguradas pelo Estado definido pelo Antigo Regime.
Trata-se então do “homem novo que a burguesia dos tempos modernos poderá opor
ao antigo, concebido pela Igreja. Este homem novo deu provas de seu valor. É a
sua própria existência que será o seu supremo argumento. Ele provou o que só a
vida pode testemunhar: ao viver como o faz, ele tornou-se vencedor. Existem
cidades e cidades florescentes; existe o bem estar que se espalha por toda
parte onde é possível desenvolver as forças próprias. Existe a felicidade que
um Deus ciumento não parece mais guardar para o Além, desde que seus filhos
souberam conduzir-se como homens racionais (raisonnables) e
empreendedores. Há o mundo que ele criou e que testemunha em seu favor. Este
mundo lhe pertence. Ele não é obra dos devotos. Ele o criou apesar dos devotos,
que lhe diziam da vacuidade dos esforços humanos diante da morte. Ele acreditou
na vida, e venceu.”.
A
nova classe, anônima e desprovida de relevância para a Igreja e para o Estado
absolutistas, forma a cidade e o aparelho estatal segundo a sua norma: secular,
sem concessões para a transcendência religiosa ou política. Os sinais dessa
nova hegemonia aparecem na vida urbana e nos edifícios. “Ouvia-se em toda parte
o fragor do cinzel e do martelo, e mesmo a noite não bastava para a pressa dos
que fazem construir casas soberbas. As ruas só ofereciam à visão madeiras que
eram polidas, mármores cortados. Empilhava-se andar sobre andar, como se o
desejo fosse construir uma parede de proteção contra a morte”. Este juízo sobre
a cidade de Paris foi emitido por um devoto, contrário à atividade frenética da
burguesia por volta de 1772. Grothuysen o cita, para terminar seu bonito livro
dizendo: “o burguês confiou em suas próprias forças, tornou-se o dono do
mundo”. (130)
Nesse
império dos anônimos existiam os arrivistas, os que tinham chegado mais
recentemente ao comércio, às praças, à universal compra e venda de si mesmo e
de mercadorias, ou da mercadoria do próprio corpo e alma. E no mar das
máscaras, como identificar os indivíduos confiáveis e os perigosos? Ainda não
existia o recurso ideado pelo filósofo Fichte, a carteira de identidade com o
retrato e as determinações pessoais do seu portador. (131 )
No século dezoito nenhuma
técnica policial ou filosófica permitia identificar com segurança os sujeitos
que circulavam nas ruas, nos cafés, nas praças. “As condições materiais”,
segundo Richard Sennett “empurravam as pessoas a colocar em questão a aparência
alheia e sua incerteza sobre tal ponto não era algo emocionalmente neutro. O
medo dos outros —percebido como strangers—
levou os cidadãos a adotar máximas como a de Chesterfield: ´não é possível manter o suficiente segredo
em assuntos privados´. O próprio receio das mudanças na ordem material
aumentava seus efeitos: os ´desconhecidos´ não mais podiam ser ´situados´por
sua condição material. Como uma tal humanidade, tão incerta, pode ter criado
uma sociedade tão profundamente sociável? Como, e com quais instrumentos, os
homens do século XVIII conseguiram construir suas relações sociais?”.(132)
Os
textos diderotianos surgem nessa encruzilhada entre a sociabilidade do Antigo
Regime e a dos novos tempos burgueses. Ao denunciar a velha sociedade como um
coletivo de máscaras ridículas ou sinistras —basta comparar o Sobrinho
de Rameau à Religiosa— o filósofo buscou equacionar o vínculo dos
indivíduos com a família e demais instituições sociais, no âmbito da cidade.
Diderot não expulsa a máscara da vida pública e particular, mas a submete, como
ao artista de teatro e os pintores, à regras que devem ser assumidas e
modificadas pela imaginação, criando-se o modelo ideal a ser oferecido pelas
individualidades ao coletivo e nos trato inter-subjetivos. No comentário de
Carmen Iglesias: “Diderot realiza uma defesa apaixonada do que chama o ser
verdadeiro. Este ser verdadeiro não é mostrar as coisas como são no interior da
natureza, dirá Diderot, (´qualquer idiota é espontâneo´, como diz um moralista
de nossos dias, Chesterton), mas que é ´a conformidade das ações, do discurso,
do rosto, da voz, do movimento e do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo
poeta e amiúde exagerado pelo artista. Aqui reside a maravilha (…) Queremos
que, incluído no tormento mais cruel, o homem guarde seu caráter de homem, a
dignidade de sua espécie. Qual é o efeito deste esforço heróico? Distrair a dor
e temperá-la´”. (133 )
Num
mundo em que os papéis e as máscaras são dissolvidos na impessoalidade, e que
opera em sentido oposto ao do Antigo Regime (nele os nobres tinham nome de
familia e nele se escondiam, exibindo em público apenas o que era decoroso para
a sua condição social) Diderot abre o campo para que os indivíduos inventem
seus papéis e suas máscaras, mas pautados pelas regras da arte que permite às
pessoas o ato de conviver. “Poder-se-ia
afirmar”, adianta Carmen Iglésias, “que Diderot aceita a mentira na mesma
medida em que renuncia a conhecer a verdade absoluta e que, portanto, agora se
trata de (…) aceitar compromissos com uma realidade que não é transparente. Da
atualidade dessa atitude (…) pode-se recordar em nossos dias o debate sobre a
escolha e a responsabilidade das próprias ações propugnados pelo
existencialismo”. Quem não aceita o real e o deseja moldar ao seu jeito, acaba
se promovendo ao papel de responsável por tudo, quando tornou-se responsável
por nada. Acusar as “estruturas” é um jeito de não assumir nenhum compromisso.
Assim Diderot amaldiçoa os que só apontam para a aranha despótica no fundo da
teia política e retiram qualquer esperança de mudanças do Estado e da
sociedade.
O
homem pode ser aperfeiçoado. Mas na vida “tudo tem um preço”. Assim, “quando a
Senhora de La Carlière quer fixar sua relação amorosa e, por extensão, pois o
faz diante de testemunhas, suas relações sociais, sobre a mais estrita
sinceridade de sentimentos, sem desculpar mentiras ou enganos, obtem apenas a
infelicidade própria e a das pessoas que amava. Pluralidade, contradição,
interpretação, assunção de máscaras, são inevitáveis no jogo da vida, segundo
Diderot”. (134 ) É nesse ponto que o ideal de franqueza assume em Diderot um
estatuto ético e estético. E temos a razão mais profunda de sua recusa da
“maneira” e do rococó.
Amélia
Valcárcel, em instigante livro sobre as difíceis relações entre ética e
estética expõe os dilemas sentidos pela filosofia moderna, seja para definir
paradigmas éticos seja para não falsear a estética, sobretudo quando esta
última é reduzida à propaganda de massas. (135) Os dilemas filosóficos,
finamente delineados pela autora, não prescindem de uma inspeção no século 18,
sobretudo no pensamento de Diderot. A passagem, nele, de um campo ao outro da
vida humana —arte, moral, ciência e técnica— acompanha a sua tentativa de
“traduzir” um sentido aos demais, e vice-versa. A tradução pode ter fracassado,
como sempre ocorre no ofício dos traidores.
Mas nos textos diderotianos encontram-se materiais de sobra para novas
tentativas, frutíferas. Esforços têm sido empreendidos nessa trilha. (136 ) O
certo é que no plano ético e político as análises propostas por Diderot sobre o
Estado, a Religião, a Sociedade trouxeram muitas pistas para os espíritos
livres da modernidade. Se os trabalhos que ele empreendeu no campo estético
tiveram resultado parecido, trata-se de algo a melhor investigar.
Notas
(1) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis,
a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo, Ed.
Perspectiva, 1971), em especial as p. 162-165.
(2)
“Ora, se innanzi a me nulla s´aombra,/non ti maravigliar più che
de´cieli/che l ´uno all´altro raggio no ingombra. /A sofferir tormenti e caldi
e geli/simili corpi la virtù dispone/che, come fa, no vuol ch´anoi si sveli.”
Cf. La
Divina Commedia, “Purgatorio” ( 3, 31ss), a cura de Natalino Sapegno
(Firenze, La Nuova Italia Ed., 1956), p.25.
(3) Citado por Leonel Ribeiro dos Santos, Metáforas da Razão, ou economia
do pensar kantiano (Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 514.
(4) Cf. Crocker, L. Diderot’s
Chaotic Order. Approach to a synthesis (Princeton,University Press)1974. E
também Maria Laura Magalhães Gomes: “Diderot e o sentido político da educação
matemática”, in Revista Brasileira de História da Educação. Número 7, jan/juin
2004, p. 75 e seguintes.
(5)
Citado em Romano, Roberto: “Marx e a tradução”, in Armando Boito e
outros (Ed.) : A obra teórica de Marx,
atualidade, problemas e interpretações (Campinas, Cemarx-IFCH-Xamã Ed.)
2002, segunda edição, p. 46 e seguintes.
(6) Diderot citado por Romano, Roberto : “Marx e a tradução”, ed. cit.
p. 46 – 47.
(7) Cf. Versini, Laurent : “Introdução” à
seleção dos Salões in Diderot,
oeuvres, T. IV, Esthétique- Théatre (Paris, Robert Laffont, 1996),
páginas 7 e 8 e p. 171 ss. Farei uso constante daquela excelente análise ao
longo deste texto.
(8) Cf.
Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot (São Paulo, Unicamp
Ed. 1997), página 82, nota 3.
(9)
Re-editado em 1990: Paris, Aux Amateurs de Livres Ed.
(10)
Toutes les emblèmes (1558-1564). Há edição recente em espanhol:
Alciato.
Emblemas. Manuel Montero e Mario Soria (ed.). Madrid, Ed. Nacional,
1975).
(11)
De humane physiognomia (1586). Della Porta dedicou-se à
criptografia e à optica, além da fisiognomia, arte de “conhecer” as pessoas
pelos traços da face.
(12) Description historique et critique de l
´Italie ou nouveaux mémoires sur l´état actuel de son Gouvernement, des
Sciences, des Arts, du Commerce, de la Population & de l ´histoire
naturelle. Nouvelle Édition (Paris, Delalain, MDCCLXX). Uso o texto editado
eletrônicamente pela Biblioteca Nacional de França (Coleção Gallica).
(13)
Cf. “Critique d´Art” in Oeuvres complètes (Paris, Robert
Laffont, 1980), p. 603 e ss. Gita May, Diderot et Baudelaire: critiques d'art (
Paris/ Genève, Minard/Droz, 1957), p.
109 e 120. Hiddleston, J. A. :
Baudelaire and the Art of Memory (Gloucestershire, Clarendon Press,
1999) recorda que o Salon de 1845, como aliás é bem notado pela crítica, retoma o
modelo dos Salões diderotianos.Cf. Hiddleston, p. 262.
(14)
Os quais reconhecem a presença de Diderot no campo da literatura e da
crítica de arte. “Imagino Fragonard saído da mesma forma que Diderot. Nos dois,
o mesmo fogo, mesmo brilho. Uma página de Fragonard é como uma pintura de
Diderot. (…) quadros de família, enternecimento da natureza, liberdade de um
conto livre. Os dois usufruindo da forma precisa, absoluta, do pensamento e da
linha. Diderot, conversador sublime maior do que escritor; Fragonard, mais
desenhista que pintor. Homens do primeiro movimento, do
pensamento jogado totalmente vivo e
nascendo diante dos olhos ou da idéia”. Cf. Journal. Mémoires de la Vie
litteraire, I (1851-1865) (Paris, Robert Laffont, 1989), p. 494
(15)
Cf. Balcou, J. : Le dossier Fréron. Correspondances et
documents (Genève, Droz, 1975).
(16)
Pierre Lepape: Diderot (Paris, Flammarion, 1991)
p.234
(17)
Cf. Phaedrus 264 c in Plato I (London, Harvard University
Press, 1983) Loeb Classical Library, Trad. Fowler H.N. ). Página 528.
(18) Diderot, Denis: Mémoires pour Catherine II,
citado por Anthony Strugnell: Diderot´ s politics. A Study of the
Evolution of Diderot´s Political Tought After The Encyclopédie. (The
Hague, Martinus Nijhoff, 1973), p. 137.
(19)
Chouillet, Jacques : Diderot, poète de l ´énergie (Paris,
PUF, 1984), p. 299.
(20) Maria Sylvia Carvalho Franco, em
trabalhos inéditos sobre a Filosofia grega e o Renascimento, elaborou
longamente este aspecto do pensamento ocidental. Os manuscritos da autora, aos
quais tive acesso, trazem os nexos entre a imagem e a escrita, sobretudo no
pensamento platônico e nos seus seguidores da Renascença inglêsa e italiana. Os
referidos manuscritos estão em fase de finalização e breve serão publicados
pela Editora Perspectiva de São Paulo.
(21)
“Humano capiti ceruicem pictor
equinam/ iungere si uelit et uarias
inducere plumas/ undique conlatis membris, ut turpiter atrum /desinat in piscem
mulier formosa superne, /spectatum admissi risum teneatis, amici? /Credite,
Pisones, isti tabulae fore librum /persimilem, cuius, uelut aegri somnia, uanae
/fingentur species, ut nec pes nec caput uni /reddatur formae. Pictoribus atque
poetis / quidlibet audendi semper fuit
aequa potestas.” “De arte poetica” in Le
Opere di Quinto Orazio Flacco, a cura di Tito Colamarino e Domenico Bo
(Torino, UTET, 1978), p.534
(22) “Ut pictura poesis”. O dito célebre,
conhecido desde Simonides de Cós, é lembrado por Diderot. Mais estratégico, no
entanto, nos seus textos, é o conjunto de enunciados que seguem na pena de
Horácio: “Existem quadros que golpeiam mais tua atenção, se observados mais de
perto e outros, se vistos um pouco longe. Um ama a penumbra, o outro, que não
teme o olhar aguçado de um conhecedor, quer ser posto em plena luz. Este
agradou uma vez apenas, e aquela agradará mesmo que revisto dez vezes.”.
Horácio, op. cit. p. 556-557.
(23)
Aules Persius Flaccus : Saturarum liber, V. “E premido pela
razão, luta para se deixar vencer”.
(24)
Para uma análise aproximada desses problemas, cf. Hayes, Julie C. :
“Sequence and Simultaneity in Diderot's Promenade Vernet and Leçons de
clavecin”. Eighteenth-Century Studies (The Johns Hopkins University Press)
V. 29, Número 3, 1996, pp. 291-305.
(25) Diderot não segue o dito horaciano
sem críticas. “Tous nos petits littérateurs (…) repètent tous les jours le seul
hemistiche d´Horace qu´ils sachent: ´Ut pictura poesis erit´. Mas, segue
Diderot, “Ut poesis pictura non erit” (Cf.
Oeuvres complètes de Diderot por Assezat J. e Tourneux, M. (ed.) (Paris, Garnier, 1875-1877), T.
XII, 123-4 e XI, 107). O enunciado horaciano não pode ser assumido
literalmente. O problema fora sentido no Renascimento,
como diz Robert J. Clemens : “The catch
phrase, ut pictura poesis,
(…) was taken up and exploited uncritically, with painting and poetry becoming
not only sisters, but twin sisters. Only in 1666 did Le Moine De
l'art des devises recall Da Vinci and twice point out that emblems or
paintings differ from poems in that the sense of the former may be grasped in a
moment rather than during a slower unfolding. Yet the Renaissance assembled
every possible argument to identify the poetic and pictorial endeavors, which
finally led Lessing to assemble every possible counterargument and write the Laokoön.
Another catch phrase rooted in the minds of Renaissance humanists was that aphorism
attributed by Plutarch to Simonides to the effect that painting is mute poetry
and poetry a speaking picture. This phrase held a particular meaning to the
emblematists, and they echoed it willingly. Henry Hawkins urged the readers of
the Devout
Heart, his version of Etienne Luzvic's French emblem book, "If you
eye wel and marke these silent Poesies, give ear to these speaking
pictures." Remarking on a meaning he read into an emblem of Vaenius, Le
Roy de Gomberville qualifies, "Si j'entends bien son langage muet." Barthélemy Aneau tells us that he decided
to help the Lyonese printer Bonhomme make use of some plates lying about the
print shop: "Alors je estimant que sans cause n'avoient esté faites, je
luy promis que de muetes et mortes, je les rendrois parlantes et vives, leur
inspirant âme par vive poésie." William Camden quotes the statement of
Simonides and judges the pictorial element as dominant in the device and
rebus." Cf. Picta Poesis: Literary and Humanistic Theory in
Renaissance Emblem Books (Roma, Edizioni di storia e letteratura,
1960), p. 174-175.
(26) Virgilio, Eneida, IV, 79:
“Suspensos aos lábios do orador”. Esta apreciação do texto platônico como peça
teatral pode ser acrescida pelo uso frequente, por Diderot, de Luciano de
Samosata, cuja letra diáfana conduz a sátira e o debate moral até o limite do
insuportável. Em Silêncio e Ruído, a
sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997) analisei o
nexo entre os escritos diderotianos e os textos lucianescos. Na época em que o
livro foi publicado eu não tinha em mãos o clássico de Jay Chapman. Ali
constatei o quanto ele é importante para a análise conjunta de Luciano, Platão,
Diderot. Por exemplo: “The reader of Lucian's dialogue on 'The Household
Philosopher' should turn to Diderot's essay called 'Le Neveu de Rameau,'(…). In it Diderot describes his conversations
with a needy adventurer, a little brother to the rich, whom he has met
occasionally in the public gardens, and who describes his own functions,
methods, passions, and ideals as a diner-out, music-master, entertainer, and
slave in the houses of the great. Diderot makes no reference to antiquity, yet
his essay brings out a very striking resemblance between the social systems of
Rome under the Cæsars and of France under Louis XIV and Louis XV. Though
Diderot has no ferocity and is tiresome, he has a power of his own which
competes with Lucian. One feels, after reading 'Le Neveu de Rameau,' that the art, the morality, the music, the
architecture, the manners, the ideals, the unconscious superfine degradations
of the age of Louis XV have been poured into our understanding. We need no
other commentary, no other indoctrination, no better psychological analysis of
that age than we have here in the rambling talk of this talented, disillusioned,
tatter-brained, middleaged, sycophant.”. Cf. Lucian, Plato and Greek Morals
(Houghton, Mifflin Company, 1931), p. 73-74.
(27)
Cf. Scott, B. : “Strategies of happiness. Painting and Stage in
Diderot”, French Forum, v. 29, 2004.
(28) Seznec, Jean: Essais sur Diderot et l
´antiquité (Oxford, Clarendon Press, 1957), p. 123, nota 65.
(29)
La Religieuse, segundo Diderot, é “a contrapartida de Jacques
le
Fataliste. Ele é pleno de quadros patéticos. Ele é
muito interessante e todo o interesse é reunido na personagem que fala. Estou
bem seguro de que ele afligirá mais aos vossos leitores do Jacques os fez rir;
donde poderia ocorrer que eles desejassem mais cedo o seu final. Ele é
intitulado A Religiosa; e não creio que jamais se tenha escrito sátira
mais amedrontadora dos conventos. É um texto para ser folheada
ininterruptamente pelos pintores; e se a vaidade não se opusesse, sua
verdadeira epígrafe seria a seguinte: Son pittor anch ´io”. Carta
a Meister (27/09/1780), in Versini, L. : Correspondance de Diderot
(Paris, Robert Laffont, 1997), p. 1309. Cf. Proust Jacques: «La fête chez Rousseau et chez Diderot» (1970), in l'Objet
et le le texte. Pour une poétique de la
prose française du XVIII siècle (Genève,
Droz, 1980). Segundo Proust, Diderot extrai de Richardson o dom de fazer ver, e
recomenda a leitura do mesmo Richardson aos pintores e poetas. Para se entender
a suposta epígrafe que Diderot daria à Religiosa, Proust indica o Salão
de 1759 no qual Diderot mostra detestar Os Cartuxos em Meditação de
Jeannet, O quadro “não traz nada do silêncio, nada do selvagem, nada
que lembre a justiça divina, nenhuma idéia, nenhuma adoração profunda, nenhum
recolhimento interior, nenhum terror, nenhum extase” (p. 150).
(30) Cf. Strugnell, Anthony: “La voix du
sage dans l´Histoire des Deux Indes”, in Colloque du Bicentenaire 2-5 septembre, 1984.
Textes réunis par Peter France et Anthony Strugnell (Edimburgh, University
Press, 1985), p. 36.
(31) La Religieuse, Ed. Pléiade, p. 354 e
359. Cf. Kofman, Sarah: Séductions. De Sartre a Heraclite
(Paris, Galilée, 1990), p. 18.
(32) Cf. Caplan, Jay: Framed Narratives. Diderot´s
genealogy of beholder (Minneapolis, University of Minnesota Press,
1985), p. 49. Jay cita Dumarsais- Fontanier : “A hypotipose é palavra grega que
significa imagem, quadro. É quando nas descrições pinta-se os quais dos quais se fala, como se
o tivessesmos atualmente diante dos olhos” Les tropes (Genève, Slatkine
Reprints, 1967), volume 1, p. 151.
(33) “En lisant Diderot”, in Regarder,
écouter, lire (Paris, Plon, 1993), p. 74 –76. Sartre recusou o
estruturalismo porque aquele movimento aposentou o sujeito (segundo
Levi-Strauss, os seus pressupostos antropológicos estariam norteados por um
“transcendental sem sujeito transcendental”) e porque ele teria posto peso
demasiado na sincronia, contra a diacronia do pensamento dialético. E para
dramatizar sua recusa, disse que se recusava voltar à lanterna mágica, depois
da invenção do cinema. Com bastante atraso, Strauss devolve a pelota e aplica
sua verve para desqualificar Diderot, visto por muitos comentadores como uma
espécie de João Batista de Kant e do sujeito transcendental (ainda
recentemente, cf. Paolo Quintili). O problema exposto por Diderot, Sartre e
pelo próprio Levi-Strauss, encontra-se nas águas mais profundas da filosofia
ocidental, no problema cujos icones maiores são Heráclito e Parmênides. A
filosofia, tal como é conhecida, não conseguiu e não conseguirá sem duras penas
“resolver” aqueles reptos à inteligência humana. Cobrar a solução apenas de
Diderot, dele caçoando como o faz Strauss, é prova de microcefalia. Tais
questões nunca foram endereçadas por ele a…Rousseau. Et pour cause….
(34)Todo este comentário sobre A
Religiosa de Rivette e as controvérsias surgidas quando ele chegou ao
público é extraído do artigo de Jean-Claude Bonnet, ”Revoir la Religieuse” in
Proust, Jacques e Fontenay, E. de : Interpreter Diderot aujourd´hui,
Colloque de Cerisy (Paris, Le Sycomore, 1984), p. 59 e seguintes.
(35)
Sempre é bom recordar as palavras de Loyalty Cru, ditas há bom tempo
atrás: Diderot “had sincerely believed,
with Richardson, in sexual morality, and yet had found, in the peculiar notions
entertained on this subject in Tahiti, a proof of ‘the inconvenience there is
in attaching moral ideas to certain physical actions which do not admit of
any.’ He had not only preached, but lived up to, a gospel of benevolence and
philanthropy, and, on the other hand, denied all merit, virtue and moral
responsibility with Jacques the Fatalist, and depicted in Rameau's nephew a sort of
Nietzschean avant la lettre, who
deliberately lived ‘beyond good and evil’ and professed a distressingly
plausible creed of selfishness and immorality.” Cf. Loyalty Cru. R. Diderot
as disciple of English Thougth (Columbia, University Pressa, 1913) p.
397.
(36)
“Diderot é um dos principais expoentes da filosofia da mobilidade
no século XVIII. Enquanto seu modo de
pesquisar é estritamente empírico, há nele o desejo perpétuo de transcender o
que é racionalmente captável”. Spitzer, Leo: Linguistics and Literary History,
Essays in Stylistics (Princeton, University Pressm 1948), p. 135.
(37)
Algo importante na análise da Religiosa feita por Leo Spitzer no
livro que acabei de citar na nota anterior. A freira lésbica age como hipócrita:
enquando fala coisas santas e afetuosas, acaricia as partes da sua dirigida.
(38)
Proust, Jacques: “De l ´Encyclopédie au Neveu de Rameau: l ´objet et le
texte” in Recherches nouvelles sur quelques écrivains des Lumières (Genève,
Droz, 1972), p. 102.
(39) A
insistência no símile entre pintura e grafia do romance, que já vem do próprio
Diderot quando se refere à Religiosa, nasceu muito cedo nos comentadores
daquela obra. “Jacques o Fatalista e A Religiosa são dois romances dos
quais o primeiro oferece uma grande variedade de traços e de idéia, sob uma
forma simples, nova e original. O outro é um grande quadro cheio de alma e de
paixão, do toque mais puro…”Meister, Aux manes de Diderot (Londres,
Valland, 1788), p. 28-29.
(40) Para essa denúncia dos conventos e
das instituições religiosas, cf. Dirschel, Klaus: Der Roman der Philosophen.
Diderot-Rousseau-Voltaire (Tubingen, Gunther Narr Verlag, 1985), p.
102.
(41)
Georges Daniel, op. cit. que refere-se a um trecho
do Salão
de 1767, num instante em que Diderot comenta um péssimo quadro de
Lépicié.
(42)
A exposição hegeliana é uma das mais argutas, quando se trata de seguir
o caminho da técnica usada pelas Luzes, com o alvo de dissolver as antigas
certezas metafísicas e a religião que as inspiram. A intelecção figurada no Sobrinho
de Rameau é “espírito invisível e imperceptível, insinua-se em todas as
partes nobres e as penetra, se apodera
bem cedo de suas vísceras e de todos os membros do idolo inconsciente e ´uma
bela manhã, dá uma cotovelada no sujeito e patratás,
o idolo tombou´, uma bela manhã, cujo meio dia não é rubro de sangue se a
infecção penetrou todos os orgãos da vida espiritual…” “As Luzes”, Fenomenologia
do Espírito. Uso a tradução de J. Hyppolite : La Phénomenologie de l ´Esprit,
T.II (Paris, Aubier-Montaigne, 1941), T. II,
páginas 98-99.
(43)
Roberto Romano: Prefácio à excelente tradução de Jacques, o Fatalista in Obras
de Diderot (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2007). Cf. Loyalty Cru, R.
“…the esthetic feeling, according to Diderot, resolves itself into two classes
of elements: first, the unconscious or subconscious perception of some
mathematical relations existing between certain lines, or colors, or sounds;
secondly, the associations which in our minds are connected with those
harmonies of lines, colors, or sounds. His theory, though perhaps it affected a
little too much empiricism, was remarkable in that it sought a subjective
instead of an objective explanation of the esthetic judgment. His early work in
acoustics, and his later Eléments
d'harmonie, published under the name of the musician Bemetzrieder,
sufficiently prove that he knew a great deal about the physical causes of
musical pleasure, while his Essai sur la
peinture shows a great degree of familiarity with the technique of color
and design. As for the associations which so largely contribute to the true
appreciation of artistic works of every kind, the suggestiveness which enhances
the pleasure of harmonies perceived by the organs of sense, the whole body of
Diderot's art criticism witnesses that he never lost sight of it.”. Diderot
as disciple of the English Thought (Columbia, University Pressa, 1913),
p. 407-408.
(44)Georges May, citado por Arthur Wilson:
Diderot. Sa vie et son oeuvre (Paris, Laffont-Ramsay, 1985), p. 436.
(45)
E que a mais elevada poesia persegue sem sucesso: “Werd´ich zum
Augenblicke sagen: /Verweile doch! du bist so schön! /Dann magst du mich in
Fesseln schlagen,/ Dann will ich gern zu Grunde gehn!/ Dann mag die Totenglocke
schallen,/Dann bist du deines Dienstes frei,/Die Uhr mag stehn, der Zeiger
fallen,/Es sei die Welt fúr mich vorbei!” Fausto. Ed. Henri Lichtenberger
(Paris, Ed. Montaigne, 1932), p.55.
(46)
Szondi, Peter: “Tableau and coup de théatre” New Literary History, 11
(Winter/1980), p. 340.
(47) Segundo Roger Kemp, Diderot evoca a
família sempre sob uma luz sombria, intransigente, cupida, possessiva. Cf. Diderot
et le roman (Paris, Seuil, 1964) p. 120. Cf. também Edmiston, W. F. : Diderot
and the family. A conflict of nature and law. (Saratoga, Anma Libri,
1985), p. 149.
(48) Catrysse, Jean: Diderot et la mystification
(Paris, A.G. Nizet, 1970), p. 288.
(49) Jean-François, o sobrinho, vive num
mundo “sem segredos, numa sociedade sem reverso, cujos costumes se exibem em
plena luz do dia. ´Eu sou o palhaço de Bertin e de muitos outros, o vosso
talvez neste instante (…) Incontestavelmente, na sociedade do século XVIIIe, o
‘miserável’, sobretudo o que mostra uma tão profunda avesão por tudo o que
ameaça a ordem estabelecida, só tem como arma as fofocas que ela faz circular.
Ele pode mesmo se embalar com a ilusão que as coloca para servir uma espécie de
justiça imanente da qual é instrumento…”. Daniel, Georges: Fatalité du secret et Fatalité du
Bavardage au XVIIIe siècle. La marquise de Merteuil et Jean-François Rameau
(Paris, Nizet, 1966).
(50)
Gianluigi Goggi: “Diderot et Médee dépeçant le viel Éson” in Colloque
International Diderot (Paris,
Aux Amateurs des Livres, 1985), p. 178.
(51)
Cf. Diderot, ou la philosophie de la séduction (Paris, Albin
Michel, 1997), p. 85.
(52)
Schmitt cita o Plano de Uma Universidade para a Rússia,
escrito por Diderot, também cita Beazée, N.,
mas a essência do referido encontra-se no texto de Diderot. Cf. Schmitt,
op. cit. p. 87 e seguintes.
(52)
Goggi, op. cit. p. 179.
(53)
Thomas M. Kavanagh: Esthetics of the Moment: Literature and Art
in the French Enlightenment (Philadelphia, University of Pennsylvania
Press, 1996).
(54)
Citado por Roberto Romano: Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot.
Ed. cit. páginas 41 e 42.
(55) Lettre sur les aveugles (Paris, Gallimard, Pléiade, 1951), páginas 814 e 815. Cf. a excelente tradução de J. Guinsburg, na Editora Perspectiva.
(56) Encyclopédie
raisonnée des Arts et des metiers (CDRom-Macintosh).
(57) Salon de 1765, edição Versini,
Laurent : Diderot Oeuvres, T. IV, (Paris, Robert Laffont,1996), páginas
311 e 312.
(58)
Kanavagh, op. cit. “Os quadros da Religiosa, os gestos com frequência
exagerados dos personagens, as cenas quie dependem para sua força afetiva dos
efeitos do claro escuro, deveriam ser aproximadas de alguns artigos dos Salões.
A
Religiosa
é sem dúvida o romance mais ‘ acabado’ dentre os compostos por Diderot. Mas ele
também é o mais passional, o mais diretamente expressivo. O movimento na ação
como no estilo é uma das suas qualidades dominantes, e é um movimento que se
une à uma grande economia na técnica narrativa (…) A Religiosa é sem dúvida um
romance composto de quadros expressivos”.
Cartwright, Michael: Diderot critique de l ´art et le problème de
l ´Expression. In Diderot Studies, número 13 (Genève,
Droz, 1969), p. 232.
(59)
Este quadro foi adquirido pela imperatriz Catarina 2, servindo Diderot
como intermediário da compra.
(60)
“It was not so much the nude as the déshabillé
with which Diderot had a quarrel; and in this he represented an important
movement which was taking place in the evolution of French taste after 1750.
The advent of sensibility and the progress of philosophy were gradually driving
out of public favor the amiable levity, the delightfully artificial art of the
disciples of Watteau. In condemning the pastorals of Boucher he stood not only
for morality, but for the new tendency of public opinion which called for more
truth and nature in painting as in the other arts. There was much in the
realism of Chardin and in the wonderfully lifelike portraits of La Tour that
appealed to him; but his ideal was best realized by Greuze, as is shown by his
enthusiastic praises of everything he produced: humble settings, familiar
scenes, the faithful imitation of natural objects, pathetic intentions, all the
elements that go to the making of a "popular" piece were actually to
be found in each of the pictures of Greuze; as Diderot had meant to put them,
and thought that he had put them, in his own plays.” Loyalty Cru, R. Diderot as
disciple…ed. cit. p. 410.
(61)
Cf., para o texto indicado, as Obras de Diderot, tradução
Guinsburg, J. (São Paulo, Ed.
Perspectiva, 2000), páginas 263 e seguintes.
(62)
Uma análise relevante deste ponto encontra-se em Modica, Massime: Il
sistema delle arti. Batteaux et Diderot (Palermo, Centro Internazionale
Studi di Estetica, 1987).
(66)
Salão de 1765, in Oeuvres V (Ed. Versini), página 291.
Esta lembrança foi-me trazida pela análise de Margaret Gilman: The Idea of Poetry in France: From Houdar de
la Motte to Baudelaire (Harvard University Press, 1958), página 282. Usarei
muito este livro, já antigo segundo os parâmetros da burocracia acadêmica, mas
extremamente útil. Sempre que possível remeterei o leitor para as suas páginas.
Caso contrário, saiba-se que devo-lhe muito das observações seguintes.
(67)
Cicero, Dos deveres, III, 31:
“Isto elogia a época, não o homem”.
(68)
Salão de 1767 in Oeuvres V (Ed. Versini), páginas
710-711. Gilman, op. cit. p. 48.
(69) Paradoxo
sobre o comediante, citado por Gilmar, op. cit. p. 50.
(70) Second
Entretien sur le Fils naturel, também citado por Gilmar, p. 50.
(71)
Essai sur Claude et Néron. Gilman, p. 53.
(72)
Cf. Chouillet, Jacques : l ´Esthétique des Lumières (Paris,
PUF, 1974). P. 24-26. A questão do classicismo é abordada de modos diversos,
mas torna-se muito difícil enquadrar Diderot sob aquela denominação. Para o
campo em debate, cf. os textos inaugurais de Bray, René: La formation de la doctrine
classique (Paris, Hachette, 1927) e La doctrine classique en France
(Paris, Nizet, 1957); Folkierski,
Wladyslaw: Entre le classicisme et le romantisme (Cracovie/Paris, E.
Champion, 1925); Grappin, Pierre: La théorie du génie dans le préclassicisme
allemand (Paris, PUF, 1952); Bates, Walter Jackson: From
classic to Romantic (Cambridge, Harvard University Press, 1946). Becq,
Annie: Genèse de l ´Esthétique française moderne: de la raison classique à l
´imagination créatrice (Pisa,
Pacini, 1984).
(73) "C'est qu'être sensible est une chose, et sentir est une autre. L'une
est une affaire d'âme, l'autre une affaire de jugement."
(74) Lettres
à Sophie Volland. Gilmar, p. 54.
(75) Encyclopédie, artigo “Ecletisme”. Edição
CD-Rom, Macintosh.
(76)
Encyclopédie, artigo
"Fureur". Sempre sigo, nestes passos, o livro de Gilmar. Cf. op. cit.
p. 283. L'enthousiasme est le germe de
toutes les grandes choses, bonnes ou mauvaises."(Encyclopédie, artigo “Théosophes”. )
(77)
"Réflexions sur l'ode",
citado por Gilman, p. 283.
(78) Citado por Yvon Belaval: L´Esthétique sans paradoxe de Diderot
(Paris, Gallimard, 1950), p. 94 e 95.
(79) Salão
de 1767, citado por Gilman, p. 283.
(80)
Citado por Gilman, p. 284.
(81)
Um excelente estudo sobre o tema encontra-se no artigo de Lambros
Couloubaritsis: “L´un comme mesure de toutes choses”, in La Mesure. Instruments et philosophies. Editor : Jean-Claude
Beaune (Paris, Champ Vallon Ed., 1994),
p. 197 e seguintes. O livro inteiro (La
mesure) é útil para o debate sobre o problema.
(82)
Toda a passagem acima foi extraída por mim da biografia de Albert Dürer,
escrita por Erwin Panofsky: Vida y arte
de Alberto Durero (Madrid, Alianza Ed., 1982), p. 286-287.
(83)
E pelo próprio Diderot: “Apeles (…) despojou as mais belas mulheres da
Grécia para compor os encantos particulares a cada uma o modelo da beleza….”
Citado por Morin, Robert : Diderot et l ´imagination (Paris,
Les Belles Lettres, 1987), p. 179.
(84)
Citado por Fried, Michael: Absortion and theatricality. Painting and
beholder in the age of Diderot. (London, University of Chicago Press,
1980), p. 86.
(85) Diderot modifica um pouco o texto,
mantendo o sentido. “Examine este ponto preciso: em vista de qual desses dois
fins a pintura foi feita em cada caso? É em vista de imitar o que é, tal como
ele é, ou de imitar o fantasma tal como ele aparece. enquanto imitação de uma aparência ou de uma
verdade? De um fantasma…”. Uso como base a tradução de Paul Shorey : The Republic in Plato in twelve volumes, Loeb VI, II (Harvard University Press,
1970), p. 431.
(86)
Romano, Roberto: Moral e ciência.
A monstruosidade no século XVIII. (São Paulo, Senac Ed., 2003). Já em Silêncio e Ruído, a sátira em Denis Diderot
(São Paulo, Ed. Unicamp, 1997), este ponto é discutido.
(87)
No pensamento de Diderot, “poder-se-ia dizer que o cérebro do homem
funciona não como um registro de imagem
exata de um mundo considerado verdade metafísica, mas criando sua própria
imagem. Para cada homem, o mundo externo tel como percebido depende ao mesmo
tempo dos orgãos do sentido e da maneira pela qual o cérebro integra os
eventos. O mundo externo parece, assim, ser uma criação do sistema nervoso”.
Stenger, Gerhardt, op. cit. p. 87. Cf. Baertschi,
Bernard: Les rapports de l âme et du corps. Descartes, Diderot et Maine de Biran
(Paris, Vrin, 1992), p. 101 e seguintes.
(88)
Versini, Laurent: Denis Diderot alias Frère Tonpla
(Paris, Hachette, 1996), pp. 183-185. “A natureza estabelece entre todos os
objetos uma espécie de temperamento que é preciso imitar (…) a pintura, por
assim dizer, tem o seu sol, que não é o do universo” (L´Art de peindre de
Watelet, citado por Stenger, Gerhardt: Nature et liberté chez Diderot, après
l´Encyclopédie, ed. cit. p. 54. Ou o enunciado de Diderot referido pelo
mesmo Stenger: “”Iluminai vossos objetos segundo o vosso Sol, que não é o da
natureza; sede o discípulo do arco iris, mas não o seu escravo”. Cf. no mesmo
livro de Stenger, a página 49: “o modelo ideal não existe antes de sua
concepção pelo artista, este último não o descobre, ele o constrói a partir da
natureza fenomenal que o envolve: ´Toda composição digna de elogio é em tudo e
em toda parte de acordo com a natureza; é preciso que eu possa dizer: ´não vi
este fenômeno, mas ele existe´. O artista é convidado a contemplar o mundo
ideal que traz em si mesmo, e não em objetos exteriores”.
(89) Suma, q.2, cito a tradução de
Alexandre Correia: http://sumateologica.permanencia.org.br/
(90)
Goethe, “L´Essai sur la peinture” de Diderot, traduit e accompagné des
remarques. Tradução francêsa de P. Ducolombier, Gazette des Beaux-Arts, nov.
1969, pp. 292-293. Cf. Proust, Jacques: Lectures de Diderot (Paris, A.
Colin, 1974), pp. 44-46.
(91) Cf. Diderot en Allemagne, 1750-1850
(Paris, PUF, 1954), p. 314.
(92) Mortier, op. cit. p. 314 e 315.
(93)Cf. Jean-Pierre Chrétien-Goni:
“Institutio arcanae: théorie de l´institution du secret et fondement de la
politique inLazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´État
(PUF, Paris,1992), p.135 e seguintes.
(94)
“Each substance of a grief hath twenty shadows,/ Which shows like grief
itself, but is not so;/ For sorrow's eye, glazed with blinding tears,/ Divides
one thing entire to many objects;/ Like perspectives which, rightly gaz'd
upon,/ Show nothing but confusion; ey'd awry,/ Distinguish form..”(Ricardo
II, ato II, cena 2). O grande estudo de Jurgis Baltrusaitis, Anamorphes
ou les perspectives depravées. (Paris, Flammarion, 1997) é a referência
obrigatória nessa análise.
(95) Torquato Acetto : Della dissimulazione onesta,
no site http://www.intratext.com/X/ITA1000.HTM
(96)
Em Diderot, um magnífico tratamento da dissimulação encontra-se
sobretudo na Religiosa. Trata-se de um verdadeiro tratado daquela arte,
tanto no desempenho de Simonin quanto no da sua família e no modus
operandi das enclausuradas, sobretudo das superioras que estabelecem
seu poder em detrimento das dirigidas. Cf. La Religieuse, Ed. Pléiade, p. 238.
Uma análise percuciente do problema da dissimulação naquele romance e na escrita
de Diderot pode ser encontrada em Kofman, op. cit. p. 17-18.
(97)Cf. Romano, Roberto : “Reflexões sobre
impostos e Raison d´État” in Revista
de Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, p. 75 – 96: http://www.mackenzie.com.br/editoramackenzie/revistas/economia/eco2n2.htm
(98)
São Paulo, Ed. Companhia das Letras.
(99)
Cf. “Ensaios sobre a pintura”. Obras de Diderot, volume 2, trad. J.
Guinsburg (SP, Perspectiva, 2000), p. 167.
(100)
Saint Girons, Baldine : Fiat lux, une philosophie du sublime
(Paris, Quai voltaire, 1993), p. 193 e ss.
(101)
Cf. Saint Girons, op. cit. p. 196 e ss.
(102)
Discuto esse ponto no meu livro Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo
(SP, Ed. Unesp, 1997).
(103) Watelet, Claude Henri: literato e
desenhista. Autor de um poema intitulado “A arte de pintar”, precedido pelo
texto “Reflexões sobre as diferentes partes da pintura”. Com aqueles trabalhos
foi aceito na Academia Real de Pintura. Escreveu romances e comédias e
introduziu na França o jardim inglês. “Receveur général des finances” em
Orleans, era ligado aos financistas e aos filósofos. Vários verbetes sobre
estética da Encyclopédie foram redigidos por ele. Adquiriu fama de
equivocidade no trato das finanças, mas sempre foi bem acolhido nos salões
intelectuais e artísticos de seu tempo. Cf. Viguerie, J. : Histoire et dictionnaire du temps
des Lumières. 1715-1789. (Paris, Robert Laffont, 1995), p. 1452.
(104) A definição indicada por Watelet vem
do Vocabolario
degli Accademici della Crusca de 1612.
(105)
Diderot analisa o esboço também em outro ponto de vista, o do público
que vai aos Salões. As pessoas apegam-se aos esboços, ao improvisado e sem
acabamento porque estimulam a contemplação: “O esboço nos prende tão
fortemente, talvez, porque sendo indeterminado, deixa mais liberdade para nossa
imaginação e alí enxerga tudo o que lhe apraz. É a história das crianças que
olham as nuvens, e todos nós somos assim, aproximadamente. É o caso da música
vocal e da música instrumental. Ouvimos o que diz aquela; fazemos esta dizer o
que desejamos”. Citado por Stenger, Gerhadt: Nature et liberté chez Diderot
après l´Encyclopédie (Paris, Universitas, 1994), p. 83, nota 104.
(106) "Este homem ( Chardin) é o maior colorista no Salão, e talvez um dos
maiores coloristas em toda a arte da pintura. Não posso perdoar aquele
impertinente Webb por ter redigido um tratado sobre arte sem mencionar um só francês.
Nem posso perdorar Hogarthor ter dito que a escola francêsa sequer possui um
colorista medíocre! O senhor mente, Sr. Hogarth ! É superficialidade ou
ignorância de sua parte. (…) Hogarth
ainda viveu por mais dois anos, Ele esteve na França ; e nos últimos trinta
anos Chardin foi um grande colorista " (X, 303)” Salon de 1765, citado por
Loyalty Cru, R. op. cit. p. 412-413.
(107)
Cf. Hayter, A. : Opium and the romantic imagination,
citado em Roberto Romano: “A indiscreta falta de charme da Universidade”. Lux
in Tenebris (Campinas, Ed. Unicamp, 1987), p. 94 e 95.
(108) “Fort
bien. Il n'est pas que vous n'ayez entendu parler ou peut-être même que vous
n'ayez vu un certain clavecin où il avait diapasoné les couleurs selon
l'échelle des sons, et sur lequel il prétendait exécuter pour les yeux une
sonate, un allegro, un presto, un adagio, un Cantabile, aussi agréables que ces
pièces bien faites le sont pour les oreilles - J'ai fait mieux. Un jour je lui
proposai de me traduire dans un menuet de sons et il s'en tira fort
bien."". . . j'accompagnai les dames dans leur appartement. Après
avoir traversé plusieurs pièces, nous entrâmes dans un cabinet,grand et bien
éclairé, au milieu duquel il y avait un clavecin. Madame s'assit, promena ses
doigts sur le clavier, les yeux attachés sur l'intérieur de la caisse, et dit d'un air satisfait:-
Je le crois d'accord. Et moi je me disais tout bas : je crois qu'elle rêve ;
car je n'ai pas entendu de son... -...je veux que ma fontange soit verte et or.
Trouvez moi le reste."la plus jeune pressa les touches et fit sortir un
rayon blanc, jaune , un cramoisi, un vert, d'une main et de l'autre un bleu et
un violet. -ce n'est pas celà, dit la maîtresse d'un ton impatient : adoucissez
moi ces nuances. "la femme de chambre toucha de nouveau, blanc, citron, bleu
turc, ponceau, couleur de rose, aurore et noir. . .. - Encore pis ! dit la
maîtresse. Celà est à excéder. Faites le dessus. La femme de chambre obéit ; et
il en résulta : blanc, orangé, bleu pâle, couleur de chair, soufre et
gris.".Cf. Les Bijoux indiscrets, ed.
Jean Hervez (Paris, Bibliotheque des curiuex, 1920), p. 85- 86.
(109)
Carta
sobre os cegos. Trad. J. Guinsburg, Obras de Diderot (SP, Ed.
Perspectiva, 2000), volume 2, p. 98 e seguintes.
(110)
Carta sobre os surdos e
mudos, trad. J.
Guinsburg, ed. cit. p. 100 e seguintes.
(111) Carta sobre os surdos, trad. J.
Guinsburg, p. 101-102.
(112) Ao lado do contido classicismo
anacrônico de Winckelman, Diderot conhecia as teses inglêsas sobre o ilimitado
sublime, em especial o exposto por Edmund Burke. Para o Salão de 1767 ele
examinou atentamente as Investigações sobre o Belo e o Sublime
(1757). Cf. May, Gita: “Diderot and Burke: a study in aesthetic affinity”. Publications
of the Modern Language Association of America (Menasha, Wisconsin; New
York) 1960, número 75, pp. 527-539. Cf.
também Saint Girons, Baldine, op. cit. p. 542. E também Versini,
Laurent : Denis Diderot alias Frère Tonpla, ed. cit. p. 180.
(113)
Citado por Jacques Chouillet: Diderot poète de l´énergie (Paris, PUF, 1984), p. 188.
(114) Cf. Spitzer, Leo : “´L´explication de
Text´ aplicatta à Voltaire” in Critica stilistica e semantica storica.
(Bari, Laterza, 1966), pp. 194-195. Vale a pena comparar a estrutura analisada
por Spitzer com a descrição do relacionamento entre seu corpo, sua vida e sua
vestimenta predileta, por Diderot, a propósito de seu robe de chambre. A
vestimenta nova cumpre o papel dos objetos preciosos no quadro de Boucher e no
rococó. Ela abafa a vida de quem a carrega, enquanto a antiga se apegava aos
movimentos do corpo vivo. Diderot, pode-se dizer, sente-se um bibelot
humano com a novidade que lhe foi imposta. Para um critico de Boucher e do
rococó, nada mais esperado…
(115)
Cf. Michael Fried: Absortion and theatricality. Painting and
beholder in the age of Diderot. E. cit. p. 87.
(116)
Cf. Obras de Diderot, trad. J. Guinsburg, volume 2 (Estética), p. 173 e
p. 174.
(117) Assumo a tese de Fried, op. cit. p. 92.
(118) Citado por Fried, op. cit. p. 98.
(119)
Cf. “Essais sur la peinture” in Oeuvres esthétiques, na Edição
de P. Vernière (Paris, Garnier, 1988),
p. 678,
(120)
op.cit. p. 102.
(121) Cf. “Lamentações sobre meu velho
robe”, trad. J. Guinsburg, in Obras de Diderot, volume 2, p. 225 e
seguintes.
(122)
Salaün, Franck: L´ordre des moeurs, essai sur la place du
materialisme dans la société française du XVIIIe siècle, 1734-1784.
(Paris, Kimé,1996), p. 262.
(123)
Desenvolvo esta idéia no “Prefácio” à excelente tradução brasileira
executada por J. Guinsburg, do Sobrinho de Rameau (São Paulo,
Perspectiva, 2006).
(124)
Discours sur l ´origine et les fondements de l ´inégalité parmi les
hommes (Paris, Garnier, 1989), p. 78.
(125)
Citado por Georges Dulac, “Diderot et la Compagnie des Indes” , Diz-Huitième
siècle, número 26, 1994, p. 180. Neste artigo, Dulac mostra distinguem
entre o sentido de opinião pública (política) para Diderot, e opinião
particular. Dulac não diz, mas a última forma de “opinião” leva à violência
intersubjetiva e que permanece no âmbito da animalidade, tal como descrita no Sobrinho
de Rameau. O autor prefere indicar a opinião política, como base do
governo legítimo, tal como exposta na História das Duas Indias (nos trechos
devidos ao filósofo): “a opinião pública, numa nação que pensa e fala, é a
regra do governo: ele jamais deve afrontá-la sem razões públicas, nem
contrariá-la…”. Pensées détachées. Contributions à l ´Histoire des deux Indes,
Goggi, G. (Ed.) (Siena, 1976), p. 105. Dulac, p. 189.
(125)
Cf. Saint-Simon ou o sistema da Corte (RJ, Civilização Brasileira,
2004), p.
(126)
“O Militar” in in Vovelle, Michel (ed.) O Homem do Iluminismo (Lisboa, Ed. Presença, 1997), p. 65 e
ss.
(127) Serna cita o estudo de E. Schalk: From
valor to pedigree. Ideas of nobility in France in the sixteenth and seventeenth
centuries (New Jersey, Princeton University Press, 1986), p. 219-220.
(128) Cf. Peter Burke : A arte da conversação
(São Paulo, Ed. Unesp, 1993), p. 123. Também: Roger Chartier: “O homem de
Letras”, in Vovelle, Michel (ed.) O Homem do Iluminismo, ed. cit. p. 133 e seguintes.
(129)
Richard Sennett: The Fall of Public Man. Uso a
tradução francêsa : Les tyrannies de l´intimité (Paris, Seuil, 1979), p. 54 e p.
55. Há uma tradução para o português, da Editora Companhia das Letras.
(130) Cf. Bernard Groethuysen: Origines
de l´esprit bourgeois en France. (Paris, Gallimard, 1927), p.170 e p.
171.
(131) Groethuysen, op. cit. p. 295.
(132)
O jovem Hegel se horroriza com as medidas preconizadas por Fichte para
controlar os indivíduos malfeitores, citando os enunciados do filósofo sobre “o
aperfeiçoamento da polícia que previne toda a massa de crimes possíveis num
Estado imperfeito”. No caso dos falsifadores de dinheiro e de títulos
financeiros, há a exigência de que todos os que passam adiante tais papéis
devem apresentar uma peça de identidade, incluindo o seu local de moradia, etc.
A identidade seria providenciada pelas autoridades, sendo que o tal recurso
permitiria, em pouco tempo, reconhecer o indivíduo, sem apelo a fichas e outros
procedimentos demorados. Na identidade encontrar-se-ia a descrição real da
pessoa ou um retrato “para as pessoas importantes que podem pagá-lo”. Fichte
desce aos detalhes sobre o tipo de papel a ser empregado na confecção da
carteira e outras medidas técnicas. Cf. Hegel, G.W.F. : Diferença entre os sistemas
filosóficos de Fichte e de Schelling (1801), na tradução francêsa de
Marcel Méry: Premières Publications (Paris, Ophrys, 1952), p. 132.
(133)
Op. cit. p. 58.
(134)
Maria Carmen Iglesias: “La máscara y el signo: modelos ilustrados” in
Carlos Castilla del Pino (ed.) El discurso de la mentira (Madrid,
Alianza, 1988), p.84-85.
(135) Carmen Iglesias, op. cit. p. 108.
(136)
Cf. Valcárcel, Amelia: Ética
contra Estética (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2005), trad. Newton Cunha,
Prefácio Roberto Romano.
(137) É o caso, entre muitos, de Alain Ménil. Consulte-se a sua edição
dos escritos sobre o teatro de Diderot, onde o tema da ética e da estética se
entrecruzam permenantemente. Cf. Ménil, Alain: Écrits sur le théatre de Diderot (Paris, Ed. Pocket, 1995).
[i] Cf. Chouillet,
Jacques : La formation des idées esthétiques de Diderot (Paris, Armand
Colin, 1973), p. 520.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.