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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Processo contra Lula é mais político e ideológico do que construído sobre as bases do direito público. iHU, entrevista especial com Roberto Romano

Por: Patricia Fachin | Edição: Vitor Necchi | 22 Janeiro 2018

O professor de Ética e Filosofia Roberto Romano era um crítico dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva. Na conjuntura atual, sai em defesa do ex-presidente, cujo recurso contra a condenação que recebeu em primeira instância por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro será julgado no dia 24 de janeiro. “Com o passar dos tempos, minha percepção, a partir do evidente abuso de autoridade movido contra o réu, é de que o processo é mais político e ideológico do que construído sobre as bases do direito público”, avalia.

Romano, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, lembra que existe equivalência entre acusação, defesa e magistratura nos julgamentos conduzidos por adequadas doutrinas do direito e da justiça. Se um dos ângulos for privilegiado, tal situação ocorrerá em detrimento dos outros. “No caso do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, a regra não está sendo obedecida”, critica. “Desde o início dos processos, em Curitiba, temos um juiz acusador, uma procuradoria parcial antes do exame público e rigoroso de provas, uma defesa acuada.” No entendimento do professor, “o comportamento da promotoria durante todo o procedimento que levou à condenação, por Sergio Moro, foi de militância política, não de serena defesa do interesse público”.

Conforme o professor, os interesses econômicos e políticos envolvidos neste caso “estão se revelando no atual governo da República”, entre eles corte nos direitos trabalhistas, atenuações do combate ao trabalho escravo, privatização de empresas públicas, ruína de agências financiadoras de pesquisa e de universidades públicas produtivas. “Se o setor democrático e progressista for vencido nas batalhas judiciais movidas a valores pouco jurídicos, o país real, o dos pobres, perderá quase tudo”, projeta Romano.

Roberto Romano é professor aposentado de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. Unesp, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o julgamento do ex-presidente Lula foi e está sendo conduzido na sua avaliação? Existem equívocos?
Roberto Romano – Em todo julgamento conduzido por adequadas doutrinas do direito e da justiça, existe equivalência entre acusação, defesa e magistratura. Se um dos ângulos for privilegiado, ele o será em detrimento dos outros. No caso do ex-presidente Luiz Inácio da Silva, a regra não está sendo obedecida. Desde o início dos processos, em Curitiba, temos um juiz acusador, uma procuradoria parcial antes do exame público e rigoroso de provas, uma defesa acuada. No lastimável ato político conhecido como “power point”, os acusadores exibiram pressa e parcialidade ideológica. O comportamento da promotoria durante todo o procedimento que levou à condenação, por Sergio Moro, foi de militância política, não de serena defesa do interesse público. Concepções pessoais substituíram a coleta e o exame de provas, acusações foram edificadas de preferência sobre a delação premiada, com os “colaboradores” presos, sua pessoa e famílias ameaçadas.

Como processado durante a ditadura de 1964, reconheci na Lava Jato vários procedimentos que, aliás, são identificáveis em práticas mundiais nada recomendáveis, pois exigem que o réu prove sua inocência. No Estado de direito, que se afasta da exceção, cabe ao Estado provar a culpa e, não raro, bem entendida a missão do Ministério Público, a inocência. Como observador frio, mas tendo experiências de processos políticos contra mim, me preocupou muito o movimento, em nome da Justiça, contra o político mais popular dos tempos recentes no Brasil. Digo tais coisas com a consciência livre, pois desde longa data tenho sido crítico severo do presidente e de seu partido.
IHU On-Line – Os juristas brasileiros têm se dividido na avaliação jurídica da condenação do ex-presidente. Alguns inclusive afirmam que a condenação é política e não jurídica. Qual sua avaliação?
Roberto Romano – Com o passar dos tempos, minha percepção, a partir do evidente abuso de autoridade movido contra o réu, é de que o processo é mais político e ideológico do que construído sobre as bases do direito público.

IHU On-Line – Em termos jurídicos, quais são as disputas envolvidas no julgamento do ex-presidente?
Roberto Romano – Setores políticos que se apoderaram do poder, com a destituição da presidente eleita, interesses empresariais (entre eles, os mais fortes residem no agronegócio e nas finanças), partidos políticos movidos pelo oportunismo, parcelas do Ministério Público que exacerbam as suas prerrogativas e assumem atitude de arrogante salvacionismo. Além, diga-se, de uma parcialidade gritante do Judiciário. Processos contra políticos corruptos regionais e nacionais dormitam nas gavetas. A celeridade funciona apenas em função de um setor, o progressista. A campanha ideológica levada por grupos que operam na Justiça está dando o tom da propaganda mais reacionária. No Brasil, hoje, ser crítico das instituições tornou-se sinônimo de “comunismo”. O convívio democrático foi banido, sine ira et studio, por indivíduos que deveriam zelar por ele.

IHU On-Line – De outro lado, quais são os interesses políticos envolvidos neste caso?
Roberto Romano – Os interesses econômicos e políticos estão se revelando no atual governo da República. O corte nos direitos trabalhistas, as atenuações do combate ao trabalho escravo, a privatização máxima das empresas públicas (ameaçando inclusive o que no jargão geopolítico se chama “defesa nacional”, haja vista a venda da CPFL à China), o lucro de empresas que não se transformam em investimentos no Brasil, a ruína de agências financiadoras de pesquisa e de universidades públicas produtivas, o apoio ao capital que investe em “ensino” privado etc. Se o setor democrático e progressista for vencido nas batalhas judiciais movidas a valores pouco jurídicos, o país real, o dos pobres, perderá quase tudo. Por tal motivo que o nome de Luiz Inácio da Silva está em crescente alta nas camadas populares e, mesmo, na classe média urbana.

IHU On-Line – Alguns juristas têm defendido que faltam provas para uma possível condenação do ex-presidente. Nesse caso, ele poderia ou não ser condenado por indícios?
Roberto Romano – Tudo o que observo, com cautela máxima, conduz a tal conclusão. O que lamento muito, pois sou dos poucos acadêmicos que saíram em defesa do Ministério Público, (recorde-se o episódio da PEC 37, durante o qual escrevi o artigo que pode ser lido neste link). Defendo o Ministério Público, mas respeito a defesa e a independência da magistratura. O último item exige que o juiz seja independente de suas próprias convicções políticas no ato de julgar.
IHU On-Line – Diante do que foi apurado na Lava Jato até o momento, o que seria um tratamento juridicamente adequado do caso do ex-presidente Lula, na sua avaliação?
Roberto Romano – Seria preciso isenção ideológica dos três setores (promotoria, magistratura, defesa), exame rigoroso de provas e testemunhos, presunção de inocência. Tais itens não estão sendo seguidos na íntegra durante o processo.

IHU On-Line – Como a população em geral tem reagido ao julgamento do ex-presidente Lula?
Roberto Romano – Dividida. A maioria considera o processo uma perseguição ao político que soube, ao lado de conviver com o grande capital, abrir sendas para que milhões deixassem a pobreza extrema. Parte da opinião pública considera o ex-presidente Luiz Inácio digno das acusações e condenações. Note-se a desmesura entre os que condenam e apoiam o político em questão. A maioria esmagadora não o julga culpado. Existem segmentos sociais que se imaginam “superiores” à população pobre. Recordo os que lutaram contra a abertura de uma estação de metrô em bairro “nobre” de São Paulo, porque não queriam, perto de si, “gente diferenciada”. Tal atitude terrível é dirigida contra Luiz Inácio da Silva.

Quando ele ainda era candidato à presidência, contra Collor, eu estava numa fila no Aeroporto de Cumbica. Chegou um comandante de companhia aérea aos gritos: “Cometeram um atentado contra o Lula!”. Com as perguntas, veio a boçalidade da classe dominante: ”Jogaram um Aurélio na sua cabeça”. Com indignação, repliquei: “Foi de fato um atentado, porque o Aurélio, como dicionário, é deficiente, ajuda apenas os que possuem parco domínio da língua”. Precisei sair às pressas da fila, dado o comportamento “civil” dos presentes. Sempre me lembro do caso, quando seguidores de Lula, pouco inclinados à diversidade democrática, me insultam na internet e nas redes “sociais”.

IHU On-Line – Como o resultado do julgamento do ex-presidente no TRF-4 deve influenciar as eleições presidenciais deste ano? Que perspectivas o senhor vislumbra para o cenário eleitoral?
Roberto Romano – Se Luiz Inácio da Silva for definitivamente condenado e incluído no rol da Lei da Ficha Limpa, com muita probabilidade o grupo que hoje está no poder federal terá uma oportunidade de apresentar candidaturas que, apoiadas em setores da mídia, conseguirão arrebanhar votos suficientes para se instalar no Planalto. As esquerdas perderão um baluarte estratégico, e o Partido dos Trabalhadores entrará numa crise gravíssima. Luiz Inácio é praticamente a única liderança nacional nos dias de hoje, para a esquerda e para a direita. A manutenção dos partidos corruptos e antiéticos no comando do país aumentará as tensões sociais, as repressões, as exigências de empresários pouco interessados no interesse nacional, mas em seus lucros momentâneos. O Estado e a sociedade no Brasil entrarão numa anomia inédita. E em tal clima, desaparecerão todos os resquícios de legalidade e de direito.

 Lula é praticamente a única liderança nacional nos dias de hoje, para a esquerda e para a direita
IHU On-Line – Alguns têm defendido que o Judiciário brasileiro enfrenta uma crise. O senhor concorda com essa leitura? Quais diria que são as causas dessa crise e o que seria uma maneira de solucioná-la? 
Roberto Romano – O modelo napoleônico, que serviu para edificar o Judiciário no Brasil, não tem mais sentido. A notória subserviência do setor ao Executivo está sendo visada pelo Legislativo, quando este último se arma contra operações policiais e do Ministério Público que processam seus membros mais proeminentes. As denúncias dos privilégios (incluindo os salariais) do Judiciário, as propostas de leis contra o abuso de autoridade, os choques entre a Câmara, o Senado e o STF, tudo prenuncia um desastre iminente. A pretensão de tutelar a sociedade e o Estado, demonstrada à exaustão pelos salvacionistas do Ministério Público, está levando a política para as barras dos tribunais, deles fazendo um item a mais na crise geral brasileira.

IHU On-Line – Que mudanças o senhor percebe na antiga e na nova geração de juízes e promotores brasileiros? Que concepções jurídicas e teóricas acerca da função do direito e da justiça caracterizam e diferenciam essas gerações?
Roberto Romano – Parte dos promotores e juízes, os jovens, assumem fortemente os pressupostos da common law, por eles aprendido em Harvard e outros centros universitários. Eles esquecem as raízes do direito romano, que moldam nosso arcabouço jurídico. E se prepararam tecnicamente para agir nos parâmetros de tribunais ingleses ou norte-americanos. Esquecem o detalhe que muda tudo: naqueles países, há uma fortaleza inquestionável do Legislativo e do Executivo, sem hegemonias periclitantes como no Brasil. Aplicar aqui procedimentos eficazes naquelas terras significa operar em terreno cediço: obter vitórias sem considerar o peso real do Legislativo e do Executivo, e a dependência que deles tem a Justiça, é ganhar batalhas, mas perder o conflito mais amplo. Não por acaso, sempre que se fala em Lava Jato, a operação Mãos Limpas é recordada: as bases do direito romano vigoram aqui e na Itália, o trato dos políticos e a massa da população, lá e aqui, são similares. Os juízes e promotores não têm massas para liderar, daí a exacerbação de seu autoritarismo, apoiado por um número diminuto de próceres ideológicos, desprovidos da legitimidade popular.

IHU On-Line – Por quais razões o senhor assinou o manifesto em defesa da candidatura do ex-presidente Lula?
Roberto Romano – Porque o atual estado de genocídio brasileiro (basta pensar no caso da luta contra o trabalho escravo) conduz à conclusão que nenhuma força política que apoia o status quo poderá deter o retrocesso civilizatório imposto desde a posse de Michel Temer. Casos como o suicídio forçado do reitor Cancellier da UFSC [Universidade Federal de Santa Catarina], o evidente abuso do poder pelas autoridades judiciais e de polícia, a negação de todo presunção de inocência ao reitor, as humilhações torturantes que sofreu, sem que nenhum poder federal (no Executivo sobretudo) apresentasse obstáculos ao arbítrio e depois a invasão da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], com prisões espetaculosas e sem sentido jurídico, me levaram a apoiar um movimento que tende a opor alguma resistência a semelhante estado de exceção.

IHU On-Line – Por que a possibilidade de o ex-presidente não participar do processo eleitoral de 2018 poderia “produzir explosão”?
Roberto Romano – Massas famintas e desprovidas de direitos caminham para a caótica desesperança. Com a vitória das atuais forças que comandam o país, aumentará exponencialmente a crise econômica, o desemprego (o exército de reserva que fez baixar o preço nacional da mão de obra). A fuga de capitais. Os signos da catástrofe são evidentes. Não é necessário ser nenhuma Cassandra para os visualizar no horizonte. A política das toupeiras, ou avestruzes, conduz apenas ao desastre.

IHU On-Line – O que se poderia esperar de um eventual terceiro governo Lula neste momento do país? Quais seriam as consequências políticas, especialmente à esquerda, de um novo governo Lula?
Roberto Romano – Os governos de Luiz Inácio da Silva foram de conciliação nacional. Ele errou muito ao não mudar aspectos relevantes da política econômica. Também errou ao manter tratos pouco republicanos com lideranças oligárquicas que desprezam o povo. Se tais rumos forem atenuados ou corrigidos, poderemos pensar em novos parâmetros políticos nacionais. Mas podem ter certeza: se não estiver com o Pai Abraão – dada a minha idade e condições de saúde –, estarei sempre a postos para criticar seus passos errôneos (apesar dos ataques de seus seguidores menos democráticos) ou apoiar seus acertos.

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