CHANCE À DEFESA
Defesa da defesa: O equilibrio entre acusar e defender
[Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo neste sábado ( 01/09)]
Com
o "mensalão" vieram à tona alguns pontos cediços do Estado brasileiro.
As origens do processo residem nos municípios e Estados, na
promiscuidade entre cofres oficiais e particulares, favores que abrem
gabinetes, lobbies conduzidos por deputados e senadores. A causa
relevante encontra-se no imenso poder do Executivo, pois as políticas
públicas são monopolizadas pelo Palácio do Planalto.
Os
congressistas "negociam" apoios em troca de recursos para as regiões.
Das verbas aos seus bolsos o espaço é pequeno. Educação, tecnologia,
segurança, cultura, a vida coletiva está presa à tutela da Presidência.
Como de praxe, no fracasso em face dos piores males, nomeia-se uma
vítima que deve lavar todos os pecados. É o que ocorre com a defesa dos
réus na famigerada Ação Penal 470.
Em razão do abuso de
prerrogativas aqui existente, a começar pela de foro, nenhum partido
político exibe ortodoxia puritana. Some a ética, a lei corre perigo.
Sábia definição das leis: "Teias de aranha que prendem os pequenos
insetos e liberam os grandes". A frase é de Anacharsis, contemporâneo do
regime democrático grego. Ele também indica na Ágora, lugar dos
julgamentos políticos, o espaço "onde todos se enganam mutuamente e
onde todos se enriquecem praticando o roubo".
Agostinho, ao
classificar os Estados sem justiça como quadrilhas, teve
predecessores... A justiça, diz Sócrates, "é como a caça escondida na
moita, ela escapa das mãos". Não existe, no tempo e nos espaço, justiça
absoluta. Daí a necessária e polifacetada mediação do promotor, do
juiz, da defesa. As três funções são essenciais par a o equilíbrio
instável que define o direito.
Justo Lipsio (Política ou sobre a
Doutrina Civil, 1594) critica a advocacia: "O mister de advogado é a
praga da Europa, banditismo permitido, concessum latrocinium". Os
habitantes da Utopia, diz Tomás Morus, "excluem da justiça, um
santuário, os perigosos advogados que se encarregam das piores causas,
usam a arte de colorir com o mais belo verniz e, com discursos
insidiosos, absolvem o culpado, condenam o inocente". Juan de Mariana
ataca o mundo jurídico, "massa de advogados ou procuradores que, por
suas tergiversações, prevaricações, seus prazos, vivem de algum modo da
miséria alheia" (De Rege). François Hotman, advogado e protestante,
deplora na Franco-Gália o aumento e o abuso dos processos ("ars
rabulatoria"). Thomas Hobbes ataca a advocacia: "Ofício da eloquência,
nele o mal e o bem, o honesto e o desonesto parecem maiores do que na
realidade, ele faz passar por justo o não justo" (De Cive).
Em
nossa era, o juiz Macklin Fleming afirma que na corrida pelo dinheiro a
advocacia perde o sentido profissional e gera insatisfação nos clientes
e angústia nos causídicos. A moeda dissolve a fé pública, destrói a
accountability. "Na busca do sucesso financeiro", diz o magistrado, "os
truques e ausência de franqueza, somados às distorções dos fatos,
aumentaram nos últimos tempos. Tais coisas foram acolhidas com tamanha
tolerância que os clientes, o público, e os próprios advogados, não têm
mais confiança na profissão" (Lawyers, Money, and Success: The
Consequences of Dollar Obsession, 1997). Na Escócia existe uma comissão
destinada a receber queixas contra os defensores - a Scottish Legal
Complaints Commission.
As invectivas dirigidas à defesa são
antigas, renitentes, amplas, duradouras e justificadas em boa medida.
Mas pensemos o que significa abolir a defesa.
Vejamos o que
ocorria na Grécia antiga. Ali, a pessoa assumia sua própria causa. Mas
nem todos tinham dinheiro para remunerar os sofistas que redigiam as
justificativas a serem lidas pelos réus. Surgiram os advogados na
própria Ágora (onde, segundo Platão, muitos juízes roncavam durante as
sessões) para garantir a defesa, salvando vidas e posses do arbítrio,
sobretudo político. O processo de Sócrates, no qual ele mesmo falou em
seu favor, mostra o perigo dos juízes que não têm, diante de si, a
defesa (cf. também o clássico de John Campbell Atrocious Judges, 1856).
Em Roma, antes dos césares, no Fórum eram defendidas as liberdade
públicas e privadas.
Na Bolonha medieval os advogados abriram a
via da moderna pesquisa contra soberanos autoritários. Nos séculos 17 e
18, as revoluções da Inglaterra, dos Estados Unidos, da França são
impensáveis sem eles.
No poder napoleônico e na Santa Aliança,
juízes e defesa perderam seu poder, a polícia era árbitro da morte, das
prisões, dos exílios. No século 20 a fraqueza da advocacia trouxe
desastres indizíveis. Recordemos os julgamentos de Vichy, os tribunais
sobre raça na Alemanha, os processos de Moscou. Quem defendeu os judeus
nos "crimes" de ordem racial? Quem defendeu os cidadãos caídos, sob
Stalin? Quem defendeu os presos da ditadura grega de 1967?
Quem
defende hoje os réus no Irã, na China, na Coreia comunista? Quem defende
os opositores em Cuba? Recordemos, na outra margem, os advogados de
Guantánamo, perseguidos por patrocinarem a causa de pessoas
"indefensáveis" (Mark P. Denbeaux , The Guantanamo Lawyers: Inside a
Prison Outside the Law, 2009).
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