Sociedade
Entrevista - João Carlos Jarochinski Silva
"O discurso de que os venezuelanos trouxeram o caos a Roraima é oportunista"
por Carol Scorce — publicado 09/02/2018 11h23
Para analista, oligarquias locais usam o preconceito para se livrar de críticas a respeito da precariedade dos serviços de saúde e segurança no estado
Agência Brasil
Ao menos mil venezuelanos cruzam o posto da Polícia Federal todos os dias em Pacaraima, na fronteira
Entre 2015 e 2016, quando a crise na Venezuela começou a ficar mais grave, o posto da Polícia Federal no município de Pacaraima, em Roraima, atendia, em média, 200 venezuelanos pedindo abrigo no Brasil todos os dias. Hoje, passam diariamente pelo local ao menos mil refugiados do país vizinho. Esse fluxo intenso ocorre em um estadoeconomicamente debilitado, com uma concentração populacional mínima, e uma imensa distância geográfica dos centros econômicos brasileiros.
João Carlos Jarochinski Silva, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), destaca que, apesar do fluxo intenso de entrada de venezuelanos no estado, a presença deles ainda é residual se levado em conta o tamanho da população local.
Ainda assim, diz Jarochinski, os imigrantes venezuelanos se tornaram bode expiatório das elites políticas de Roraima, que passaram a usar uma argumentação xenofóbica para tentar justificar a precariedade da saúde e da segurança locais.
CartaCapital: Qual é o contexto da questão imigratória na região Norte do País e, especificamente, em Roraima?
João Carlos Jarochinski Silva: A partir de 2010, com a entrada de haitianos, especialmente pelos estados do Acre e do Amazonas, renova-se o debate nacional sobre o tema dos estrangeiros. O primeiro aspecto que apareceu nessa época foi a entrada por fronteiras secas. Há um desconhecimento geral das fronteiras brasileiras, vistas como algo periférico e negativo, associadas ao tráfico de drogas, de armas e de pessoas. Quando falamos de imigrantes chegando pelas fronteiras, as pessoas já intuem que é algo ruim. Nos anos mais recentes, os haitianos saíram da cena, e agora é Roraima que está no epicentro da onda imigratória reforçando esse ponto de vista.
CC: E como as autoridades em Roraima lidam com questões como essa?
JCJS: Roraima é um estado novo, onde o velho coronelismo e o patriarcalismo político são muito fortes. Há um grande número de pessoas trabalhando em cargos comissionados. Na manutenção do patriarcalismo político é importante manter esses cargos públicos para manejar o eleitorado. Tudo isso num contexto populacional muito pequeno – pouco mais de meio milhão de habitantes. Para um deputado e um senador se elegerem, eles precisam de muito menos votos que um vereador em São Paulo. Esse universo restrito facilita também o domínio político. Os políticos sucateiam deliberadamente o serviço público para manter cargos com pouca tecnicidade.
CC: Além da questão econômica, qual outro aspecto explica a força das oligarquias em Roraima?
JCJS: Com a criação do estado, em 1988, começa a imigração de garimpo estimulada por grupos políticos. E se há incentivo de grupos políticos nesse movimento, há controle do fluxo, e isso serve para a formação de feudos políticos. Aqui, existem bairros que levam o nome dos políticos para onde os imigrantes trazidos por essas figuras foram levados.
O do grupo político do Ottomar Pinto se chama Pintolândia. O bairro para onde a leva trazida pelo senador Romero Jucá – que é natural de Pernambuco –, se chama Santa Tereza, porque a esposa dele na época era a Teresa Surita (atual prefeita de Boa Vista, capital do estado).
Agora, assistimos à chegada de pessoas desprovidas de direitos políticos, e a maneira política de lidar com essa população muda. A falta de direitos dificulta a representatividade dessas pessoas. Nesse contexto, do ponto de vista político, essas pessoas têm de ser tutoreadas. Quem tem voz política para pedir condições dignas para os imigrantes não são os imigrantes, é preciso outros grupos para reivindicar isso.
Com a chegada de um grupo politicamente desinteressante para as oligarquias regionais – porque não participam eleitoralmente –, começa o discurso de responsabilizar o estrangeiro por tudo de ruim que acontece.
CC: Como se dá esse discurso de responsabilização?
JCJS: A falta de segurança pública é um clássico. Ventila-se a informação de que a criminalidade aumentou, mas a base de dados aqui é pífia. Esse suposto aumento é atribuído aos venezuelanos, mas, mesmo nesses dados mal ajambrados, é possível observar que os imigrantes estão, em maioria, envolvidos em crimes de menor potencial sensível, como os frutos, onde não há violência.
Esse discurso superficial serviu para tirar o foco da incompetência da gestão penitenciária, por exemplo. Há um ano tivemos um massacre em uma das penitenciárias, o aumento das facções nos presídios. O fato é que o governo não consegue reeducar os presos, e nem ao menos retê-los. As fugas são constantes. Em uma das últimas fugas uma das autoridades públicas disse que a responsabilidade era da onda imigratória. A costa larga da imigração fica enorme nessas horas.
Hoje não temos um quadro de violência em função da imigração, mas se não forem tomadas medidas de inserção sociais eficientes, teremos, porque essas pessoas precisam sobreviver. O que temos hoje são abrigos muito precários. Isso foi tudo o que foi feito até agora pelo poder público.
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CC: O suposto aumento da violência é o principal foco do discurso?
JCJS: Nos serviços públicos de modo geral. As autoridades dizem que os imigrantes estão colapsando o sistema de saúde. Há problemas graves, mas eles sempre existiram. O ministro da Saúde, Ricardo Barros, é do mesmo partido da governadora, o Partido Progressista, e não existe articulação entre eles.
Nesse mesmo pacote, vem a ideia do medo biológico, de que os imigrantes estão trazendo doenças para o País. Deputados voltaram de uma reunião do Palácio do Planalto afirmando que o governo passaria a exigir carteira de vacinação para a entrada no País. Isso é impossível. Essas pessoas, muitas vezes, não têm sequer documentos. Faríamos como, então? Vacinaríamos todos na fronteira e montaríamos abrigos para as quarentenas? Tudo é discurso. Nada disso se esclarece.
Nossa fronteira com a Venezuela é de 2.199 quilômetros. Excluindo a parte de florestas, e mesmo nas cidades de Pacaraima e Santa Elena do Uairén, a fronteira é enorme e o controle impraticável. Não há necessidade de passar pelo posto da Polícia Federal. As pessoas passam porque querem se legalizar, buscam um situação legal de refúgio. O discurso de que os venezuelanos trouxeram o caos a Roraima é fácil e oportunista, já as autoridades dão respostas simplistas e ineficazes.
CC: Há um sentimento de que o imigrante é um invasor?
JCJS: O que traz essas pessoas aqui não é uma atração ao Brasil, mas uma debilidade tal do estado venezuelano. Elas estão sem remédios e alimentos. Os mecanismos de saída da Venezuela são muito precários. O sistema aéreo praticamente inexiste, e a alternativa é a rodoviária. As autoridades pregam que os venezuelanos são invasores, e isso se reproduz rua afora, mas a nossa população imigratória é residual.
CC: Não houve tentativas de tratar a questão imigratória do ponto de vista humanitário?
JCJS: Do ponto de vista social, os grupos políticos mais tradicionais pouco se envolveram. No início, a família Campos, que está à frente do governo do estado, tentou o discurso do coitado, numa perspectiva de acolhimento, mas essa receptividade não veio. O governo do estado tem problemas para lidar com as próprias finanças. Os salários dos servidores estão atrasados. Em um estado onde boa parte das famílias dependem do funcionalismo público, fica difícil defender investimento em programas sociais para a população imigrante. A reação xenófoba seria óbvia nesse caso.
Eles não conseguem aproveitar o potencial dessas pessoas, que em maioria são jovens com formação superior. O PIB de Roraima foi o que mais cresceu na região Norte, consequência das exportações para a Venezuela, que está com crise de abastecimento.
CC: O senhor acredita que esses grupos querem insuflar a xenofobia na população? Por quê?
JCJS: Grupos políticos que estão há vinte anos no controle do estado imbuem um discurso de preconceito e se isentam das suas responsabilidades de gestão pública. Em um momento que as pessoas estão extremamente insatisfeitas com a política, essas figuras emblemáticas se apropriam da questão imigratória para justificar a sua permanência.
O fato de os imigrantes serem venezuelanos é um prato cheio, porque esses grupos políticos são de direita e, gostem ou não, o modelo venezuelano se apresentou durante muito tempo, em especial na era Chaves, como um modelo politico contra-hegemônico. A falência desse modelo reforça a retórica desses grupos. Esse é um ponto (a crise na Venezuela) que constrange a esquerda brasileira, que tem dado pouca atenção à crise humanitária que os venezuelanos vivem no Brasil. Os imigrantes ficam em uma espécie de limbo de representação política.
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CC: O senhor acha que os imigrantes vão ser um tema para as eleições deste ano?
JCJS: Os grupos políticos tradicionais de Roraima estão assustados com o que pode acontecer nas eleições deste ano. Uma boa parte está respondendo processos pesados na justiça, como é caso do senador Romero Jucá. Eles não querem perder o foro privilegiado, e estão com índices de rejeição alto. Mas eles têm a máquina pública nas mãos e controlam uma boa parte dos cargos públicos comissionados, então a renovação não é automática, e nesse sentido poderemos ter uma renovação ainda mais conservadora, mais excludente. A questão imigratória vai predominar nas eleições aqui, a exemplo do que foi a campanha de Donald Trump, nos Estados Unidos.
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