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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Quando a CNBB partilha a mesa com os algozes em vez das vítimas

Quando a CNBB partilha a mesa com os algozes em vez das vítimas

Revista ihu on-line

15 Fevereiro 2018

CNBB lançou a Campanha da Fraternidade 2018 que tem como tema a violência. Uma ausência marcante: não estavam as vítimas da violência na solenidade. Em vez disso, a estrela da festa foi a chefe do Poder Judiciário, um dos maiores promotores da violência contra os pobres no país. Ao lado do presidente da CNBB, na mesa do evento, a chefe de um sistema que fez do Brasil o país com a terceira maior população carcerária do mundo, sendo metade ela composta por jovens de 18 a 29 anos, 64% negros e 40% presos “provisórios”, sem condenação judicial. Enquanto rolava a entrevista, tornou-se público que um juiz de São Paulo mandou para a cadeia uma mãe com um bebê de dois dias.

O artigo é de Mauro Lopes, jornalista, publicado no blog Caminho Prá Casa, 15-02-2018.

Dá pra imaginar o Papa Francisco lançando uma campanha mundial contra a violência e deixando de convidar as vítimas, ignorando-as? Ou ainda: o Papa lançando tal campanha ao lado daqueles que promovem a violência contra os pobres?

Pois foi o que aconteceu na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil nesta Quarta-Feira de Cinzas (14), que marca a abertura da Quaresma -nesta data é lançada desde 1964 no Brasil a Campanha da Fraternidade, pela CNBB. O tema da campanha de 2018 é exatamente a violência, sob o lema “Fraternidade e a superação da violência”.

As vítimas da violência não estavam na sede da CNBB na solenidade de início da Campanha. A direção da entidades dos bispos convidou a presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, para ser a grande estrela do momento e em seu site explicitou a escolha da Conferência: “O presidente da entidade, cardeal Sergio da Rocha, e o secretário-geral, dom Leonardo Steiner, receberam autoridades para o evento”.

Nada das vítimas da violência. Não estavam na sede da CNBB indígenas ou negros e negras, mulheres, sem teto, sem terra, moradores de rua; igualmente não estavam os líderes da Pastoral Carcerária, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ou da Comissão Pastoral da Terra (CPT), todos organismos vinculados à conferência episcopal brasileira.

Estava -por convite da CNBB- a chefe do Poder Judiciário, um dos maiores protagonistas da violência no país.

Quase no mesmo instante em que dom Sérgio da Rocha confraternizava alegremente com Cármen Lúcia veio a público a notícia de que um juiz -membro do Poder Judiciário da presidenta do STF- mandara para o cárcere uma mãe e seu bebê de apenas dois dias. 

A noticia é de torcer o coração:

“Uma mãe está presa com o filho de apenas dois dias na carceragem do 8º Distrito Policial, no Brás, em São Paulo. Jessica Monteiro, de 24 anos, e o marido Oziel Gomes da Silva, de 48 anos, foram detidos por tráfico de drogas na ultima sexta-feira. Ela foi autuada em flagrante com cerca de 90 gramas de maconha. As informações são da Rádio CBN.

A decisão foi tomada no plantão da audiência de custódia de São Paulo, em pleno domingo de carnaval, quando a então futura mãe entrou em trabalho de parto e foi escoltada até o Hospital Municipal Inácio Proença de Gouveia, onde deu à luz o menino Henrico. O advogado Paulo Henrique Guimarães Barbezane compareceu à audiência representando Jéssica, amparado pelo comunicado policial de que ela havia dado entrada no hospital.

A Promotora Ana Laura Ribeiro Teixeira Martins, pediu a prisão. Detalhe: a representante do Ministério Público está grávida. Coube então ao juiz Claudio Salvetti D’Angelo decidir pela prisão, ignorando as circunstâncias do parto e o fato dela ser ré primária. Em consulta à internet, é possível constatar no histórico do magistrado outro episódio envolvendo violação à prerrogativa da advocacia, como, por exemplo, em 2009, quando a OAB de Itapevi fez um desagravo público contra o juiz por ofender um advogado. No caso de Jéssica, quem a representou na audiência de custódia e pediu sua soltura é o advogado Paulo Henrique Guimarães Barbezane.

A cela para a qual Jéssica e seu filho de dias foram enviados possui cerca de dois metros quadrados, está suja, com mau cheiro, em uma espuma no chão com alguns cobertores. Após passarem dias nesse lugar, ambos foram transferidos para uma penitenciária, que, pelo menos, tem espaço para mães de recém nascidos.” [leia aqui a íntegra da notícia]

Os dirigentes da CNBB e a presidenta do STF poderiam argumentar que o caso é uma exceção. Mas não é. Há uma política deliberada encarceramento em massa praticada pelo Judiciário -e a Pastoral Carcerária da CNBB tem denunciado o fato há anos.

Encarceramento em massa dos pobres, por óbvio, pois os ricos estão imunes ao sistema prisional.

Esta política do Judiciário, em aliança com os representantes dos ricos que controlam o Executivo, o Legislativo e o aparato de mídias de massa fez com que o Brasil tenha alcançado, segundo dados oficiais divulgados em dezembro último, o triste posto de país com a terceira maior população carcerária no planeta: 726 mil presos. À frente do Brasil (que tem 207 milhões de habitantes), apenas os Estados Unidos (com 323 milhões de habitantes) e a China (1,3 bilhão).

Quem são os 726 mil presos? Mais da metade dessa população carcerária é de jovens de 18 a 29 anos; 64% são negros; 40% são presos “provisórios”, mandados para as cadeias por juízes e juízas sem que tenham condenação judicial.

As mulheres são grandes vítimas do Judiciário e seu sistema de encarceramento em massa. São mantidas presas às milhares, sem que tenham cometido qualquer ato de violência. Elas são enviadas aos presídios por crimes como pequenos roubos, furtos e envolvimento duvidoso com o tráfico de drogas. Já são quase 40 mil mulheres presas, o que faz do Brasil o país com a quinta maior população carcerária feminina do mundo.

Se você considerou o caso de Jessica e seu bebê uma exceção, um “desvio”, uma “anormalidade” no sistema, coisa de juiz de primeira instância, o que dizer da sentença do juiz Nefi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de negar no final de maio de 2016 pedido de habeas corpus para colocar em liberdade uma mulher condenada a três anos, dois meses e 10 dias de prisão por ter furtado ovos de Páscoa e um quilo de frango? [leia aqui sobre a sentença e a situação das mulheres no sistema carcerário]

O que dizer da presidenta do mesmo STJ, Laurita Vaz, que no último recesso do Judiciário negou pedido para que uma lactante respondesse a processo em casa? A mulher, cujo filho mais novo tem um mês de idade, é ré primária e foi presa por portar míseros 8,5 gramas de maconha. Na decisão, a juíza escreveu que a mãe não conseguiu provar ser imprescindível para seus cinco filhos…

Ora, poderia arguir mais uma vez dom Sérgio da Rocha, ao defender o convite a Cármen Lúcia, tais exemplos não caracterizam o modus operandi do Poder Judiciário. Então, o que dizer, para além dos números brutais e dos casos estarrecedores apontados acima, da história da juíza Kenarik Boujikan, do Tribunal de Justiça de São Paulo, condenada a uma pena de censura pública por este mesmo tribunal por ter mandado soltar 11 presos que já haviam cumprido suas penas? Foi preciso que a condenação de Boujikan se tornasse um escândalo internacional, com repercussão até no Vaticano, para que o Conselho Nacional de Justiça revogasse a decisão em agosto de 2017.

O Poder Judiciário brasileiro é um agente de injustiça contra os pobres. Não merece ser chamado de Justiça, mas exclusivamente por seu nome próprio: Poder Judiciário.

A história do país registra milhares e milhares de indígenas, sem terra, sem teto, jovens negros, mulheres, pessoas da população LGTB despejadas de suas terras ou casas, escravizadas, torturadas e até mortas sem que os autores/mandantes tenham sido incomodados pelo Poder Judiciário.

O Pode Judiciário deu roupagem legal à escravidão, à repressão aos movimentos populares, operários, sindical, ao golpe de 1937, ao golpe de 1964, ao golpe de 2016.

Mas dom Sérgio da Rocha quis por bem convidar a chefe deste Poder Judiciário para o lançamento de uma Campanha da Fraternidade contra a violência. As vítimas foram barradas, a representante dos algozes estava na mesa principal.

Alguém imagina que isso aconteceria numa solenidade sobre o tema da violência no Vaticano sob Francisco? Pois o Papa prefere ir às cadeias, estar com os refugiados, com os líderes de movimentos sociais perseguidos, e não com as autoridades de um Judiciário que persegue os mais frágeis.

Mencionei num artigo recente o teólogo Jon Sobrino, um nome crucial para a teologia latino-americana. Ele escreveu um belo livro[1] sobre aquela que é essência do cristianismo, que tem como subtítulo: Ensaio a partir das vítimas. Jesus passou pela terra ao lado das “vítimas deste mundo” (p. 13), nunca seduzido pelas promessas e anúncios do Templo. A abertura da Campanha da Fraternidade apresenta uma questão à CNBB: ao lado de quem a Igreja deve estar? Das vítimas ou de seus algozes? O risco que se corre é aquele apontado por Sobrino: “Espero que não acabemos por nos perguntar ‘o que é feito das vítimas’”.

Esta questão esteve clara nos tempos em que a CNBB foi liderada por dom Hélder Câmara, dom Aloísio Lorscheider, dom Clemente Isnard ou dom Luciano Mendes de Almeida, por exemplo. Hoje está?

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