12 Fevereiro 2018
Muito antes do notório julgamento de Galileu, o grande filósofo e médico do século XII Ibn Rushd (Averróis)
foi banido de sua casa em Córdoba e viu todos os seus livros serem
proibidos e queimados pelas autoridades religiosas islâmicas, que
denunciaram sua crença na existência da causalidade na ordem natural –
uma causalidade que ele considerava como independente da ação direta de
Deus no mundo. Como Edward J. Larson e Michael Ruse salientam em seu novo livro, On Faith and Science [Sobre fé e ciência] (Yale University Press, 321 páginas), os clérigos da Espanha
muçulmana temiam que, por conta própria, a razão, a lógica e a ciência
humanas poderiam possuir um poder que ameaçaria fazer com que Deus
parecesse desnecessário.
A reportagem é de John Farrell, publicada na revista Commonweal, 07-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esse medo permanece disseminado hoje entre os fiéis religiosos de todas as fés – especialmente nos Estados Unidos,
onde, por exemplo, a oposição à crença na evolução continua sendo muito
forte. Mas ele tem assombrado o debate sobre a tensão entre religião e
ciência há séculos.
Ibn Rushd, que morreu mais de um quarto de século antes do nascimento de São Tomás de Aquino,
pelo menos viveu o suficiente para voltar para casa do seu exílio, mas
sua obra nunca alcançou entre os muçulmanos a influência que teve na Europa cristã, onde foi traduzido e estudado nas novas universidades medievais. De fato, era tão grande o respeito de Aquino pelas explanações de Ibn Rushd sobre as obras de Aristóteles, que Tomás sempre se referia a ele como “O Comentarista”.
Subsequentemente, a ciência arraigou na Europa e floresceu durante a Revolução Científica, mas não sem vítimas causadas pelas mesmas tensões que haviam atormentado Ibn Rushd. O julgamento de Galileu assombrou a Igreja Católica durante séculos – tornando-a um alvo fácil para os protestantes que atacavam os papas após a Reforma e para os defensores do Iluminismo que detestavam qualquer autoridade religiosa que interferisse no progresso da ciência.
Na visão de Larson e Ruse, esse debate de longa data tem sido mal servido pelo chamado modelo de conflito que o caso Galileu simboliza,
e o objetivo deles nesse livro é argumentar que a relação entre ciência
e religião é mais complexa do que qualquer noção que tanto o conflito
quanto a complementaridade simplista permitem.
Larson, professor da cátedra Hugh e Hazel Darling em Direito na Pepperdine University, ganhou o Prêmio Pulitzer 1998 de História pelo seu livro Summer for the Gods: The Scopes Trial and America’s Continuing Debate Over Science and Religion. Ruse, professor da cátedra Lucyle T. Werkmeister e diretor do Programa de História e Filosofia da Ciência da Florida State University, foi conferencista Gifford
e é autor de diversos livros sobre a inter-relação entre ciência e fé.
Firme evolucionista e famoso conferencista, Ruse irritou alguns membros
da comunidade científica por ter colaborado em alguns livros com os
principais defensores do movimento de Design Inteligente nos Estados Unidos. Mas ele também gosta de entrar em atrito com seus leitores religiosos. Em uma recente conferência na Notre Dame University, eu o vi deixar de lado seu texto preparado sobre evolução e cristianismo para afirmar: “Vejam, Adão e Eva nunca existiram. Deixem isso para trás!”.
(Foto: Divulgação)
Em seus nove capítulos, On Faith and Science
perpassa a história da ciência e da filosofia, destacando as
descobertas que tiveram um impacto particular sobre a doutrina religiosa
ao longo dos últimos mil anos de cultura cristã e, em menor medida,
judaica e muçulmana.
No início do livro, os autores partem de onde Ibn Rushd
parou, com a ideia das leis independentes da natureza – ou, como os
escolásticos se referiam a ela, a doutrina das causas secundárias, sendo
que a causa primeira é Deus. A noção não deixou de receber críticas
entre os contemporâneos de Aquino, e, em 1277, o arcebispo de Paris condenou uma série de proposições associadas à nova filosofia natural.
A ideia de que o mundo opera de acordo com suas próprias leis e
regularidades continua sendo controversa no debate sobre a evolução
hoje, já que os defensores do Design Inteligente atacam
o consenso da ciência sobre a evolução darwiniana e insistem que a
intervenção direta de Deus na história da vida pode ser cientificamente
demonstrada.
Mas, como Larson e Ruse mostram nos dois primeiros capítulos que abrangem o desenvolvimento precoce da astronomia e da física – desde a Revolução Copernicana até a Revolução Quântica
–, essa noção deu seu fruto mais antecipado na ciência dos céus e dos
corpos em movimento. A Revolução Copernicana é muitas vezes descrita
como o primeiro grande choque que a ciência provocou à mentalidade
religiosa ocidental, em que o sistema heliocêntrico rebaixava a Terra em
relação à sua posição central e privilegiada no cosmos, tornando-a
apenas outro planeta que orbita ao redor do Sol.
Mas Larson e Ruse argumentam que o que realmente incomodou os tradicionalistas foi que Copérnico
usou o movimento circular natural dos planetas (incluindo a Terra) ao
redor do Sol para explicar os movimentos retrógrados dos outros
planetas, que periodicamente diminuíam de velocidade e revertiam a
direção antes de continuar seu curso.
Uma vez que se assumia que o Sol estava no centro do sistema, não era
mais preciso citar causas especiais (por exemplo, os anjos) para
explicar o que, aos antigos, parecia ser um fenômeno arbitrário. O
movimento retrógrado seguiu naturalmente as leis do movimento circular
em um sistema centrado no Sol.
Kepler, Galileu e, especialmente, Isaac Newton melhoraram o grande programa de Copérnico,
abrindo mão da insistência em órbitas perfeitamente circulares em favor
de órbitas elípticas, e descrevendo completamente a dinâmica dos
planetas com as leis do movimento e da gravitação universal de Newton.
Mas mesmo Newton, talvez incomodado com essa autossuficiência, insistia
que Deus ainda era necessário para ajustar ocasionalmente os movimentos
dos planetas, se algum deles ameaçasse se afastar do curso.
As leis da natureza nos céus eram uma coisa, mas a aplicação de tais
leis aos seres humanos era outra coisa. E, no terceiro capítulo, os
autores abordam o impacto da mecânica newtoniana sobre os conceitos de
mente e alma. A separação de Descartes entre uma mente imaterial e a
mecânica do corpo humano pode ser vista sob essa luz como uma espécie de
ataque preventivo para proteger o status exclusivo da alma. Se assim
foi, ela teve vida curta, já que o advento da evolução darwiniana
ameaçou colocar todo o humano sob o poder da seleção natural.
Aqui é onde permanece o verdadeiro conflito com a fé. O mecanismo da
seleção natural foi uma afronta suficiente aos fiéis do século XIX em
relação à criação especial de todas as espécies (incluindo os humanos).
Mas então, nas décadas seguintes e no século XX, veio a conscientização
gradual dos éons e éons de espécies extintas que viveram e morreram
muito antes da humanidade, juntamente com a crescente conscientização
sobre o desperdício e o sofrimento que esses éons passados envolviam.
Isso adicionou outra camada de verdadeira inquietação à crença na
providência divina.
Podemos chamar de bom um Deus que presidiu tal sofrimento gratuito?
Como alguns teólogos suspeitaram, até mesmo a tentativa mais
acomodatícia de encaixar o Deus da Bíblia com a evolução não conseguiria
livrar Deus quando se tratasse da existência generalizada do mal e do
sofrimento. Como disse o teólogo cristão evangélico John Schneider,
o mundo revelado pela evolução “descreve o passado planetário e
biológico como aquele em que biomas inteiros vieram e se foram de forma
aparentemente despropositada e brutal, e revela que o nosso passado é
apenas um deles” (“The Fall of ‘Augustinian Adam’”, em Zygon, novembro de 2012).
E, mais recentemente, os avanços feitos pela ciência cognitiva
parecem dar uma credibilidade adicional a um materialismo radical que,
na opinião dos autores, prejudica qualquer crença religiosa na
transcendência do espírito humano. A mente e a alma parecem ser os
subprodutos do cérebro. Se deve haver alguma reconciliação possível
entre ciência e fé aqui, escrevem eles, talvez ela possa ser encontrada
no campo da mecânica quântica, embora eles não aprofundem o assunto.
E a própria origem da humanidade – e das doutrinas teológicas
associadas a ela, principalmente o pecado original e a queda? Houve
tentativas de alguns teólogos católicos de acomodá-las em uma
perspectiva evolutiva, mas, até hoje, os pronunciamentos oficiais do
Vaticano continuam sendo muito gerais.
No nível pastoral, permanece muita confusão e mal-entendido sobre a ciência da evolução humana e suas implicações. O Catecismo não discute nada da evolução e continua tratando Adão e Eva como figuras históricas.
Talvez não seja surpreendente, então, que a imprensa popular continue
assumindo uma desconfiança geral em relação à ciência por parte da
Igreja. Roma não consegue superar o caso Galileu. Por exemplo, quando o Papa Francisco,
pouco depois de ser eleito, afirmou que não há nenhum conflito entre as
noções de criação e evolução, isso foi abordado como manchete de
primeira página em todo o mundo, mesmo que João Paulo II e Bento XVI tivessem dito o mesmo em muitas ocasiões.
Para não fechar com uma nota desencorajadora, Larson e Ruse
abordam o papel das lideranças religiosas na promoção de uma abordagem
mais protetora do ecossistema mundial cada vez mais frágil. Eles
ressaltam a Igreja Católica e, em particular, o Papa Francisco, que dedicou toda a sua encíclica Laudato si’
à defesa do mundo natural, e os esforços mundiais para reduzir as
emissões de carbono para combater os efeitos cada vez mais destrutivos
das mudanças climáticas. Eles também comparam as exortações do Papa
Francisco às de E. O. Wilson, de Harvard,
um ateu notório e também um notório defensor de uma visão de toda a
vida como um todo interconectado. Wilson expressou um grande respeito
pelos esforços do papa de se pronunciar em apoio ao consenso científico
sobre as mudanças climáticas.
Na opinião dos autores, tanto o papa quanto Wilson,
apesar de abordarem a questão a partir de tradições amplamente
diferentes, representam um caminho a seguir para ateus e crentes, para
juntos irem ao encontro dos desafios que a Mãe Natureza guarda para a humanidade.
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