16 Fevereiro 2018
"Escrevo esta carta aberta porque os noticiários deram
conta também de um fato significativo: a gravidez de Vossa Excelência.
Uma mulher grávida, promotora de justiça, pediu a um juiz de direito que
mantivesse presa uma outra mulher, que acabara de parir, levando
consigo seu rebento para o cárcere. Admitamos, parece ser enredo de um
novela de terror", escreve Roberto Tardelli, advogado e Procurador de Justiça Aposentado, em artigo publicado por Justificando, 15-02-2018.
Continua o procurador, "é assustador imaginar que a senhora,
justamente por se encontrar grávida, não tenha visto, com os olhos da
alma, o terror de uma mulher amamentar o filho que acabara de nascer,
num pedaço de espuma, entre cobertores velhos, num chão batido de uma
cela infecta. Não posso crer que esse momento lhe tenha também passado
despercebido."
Eis o artigo.
Eu não conheci V. Exa., quando ainda estava na carreira do Ministério Público, onde fiquei mais de trinta anos; caso tenhamos nos conhecido pessoalmente, perdão pelo lapso.
Li pelos jornais que Vossa Excelência requereu para que fosse mantida presa uma mulher, autuada em flagrante, trazendo consigo, segundo a polícia, noventa gramas de maconha, para fins de tráfico.
Na audiência de custódia, ela se fez representar apenas por seu
advogado, uma vez que estava dando a luz em um hospital público da
cidade; de lá, em função do pedido feito pelo Ministério Público,
representado por Vossa Excelência, e acatado pelo MM Juiz de Direito
que presidia o ato, foram a indiciada e seu rebento levados de volta à
carceragem. O bebê, bem o sabes, tinha apenas dois dias de vida. As
notícias dão conta de que a indiciada era primária e que, além daquele
criança, é mãe de uma outra, de três anos de idade.
Escrevo esta carta aberta porque os noticiários deram conta também de um fato significativo: a gravidez
de Vossa Excelência. Uma mulher grávida, promotora de justiça, pediu a
um juiz de direito que mantivesse presa uma outra mulher, que acabara de
parir, levando consigo seu rebento para o cárcere. Admitamos, parece
ser enredo de um novela de terror.
Fiquei estarrecido ao ler a notícia. Fiquei pensando como duas
mulheres podem ter gestações tão distintas, eis que o fruto de seu
ventre, prezada Promotora, nascerá em uma maternidade
de alto padrão e será recepcionado e festejado por parentes e amigos,
que lhe darão boas vindas. Sapatinhos, rosas ou azuis, na porta do
quarto, avisarão aos visitantes que ali nasceu uma criança linda e
saudável, que receberá de todos que a cercam todo amor e conforto.
Nessas maternidades,
a segurança é uma obsessão e nada de ruim acontecerá ao rebentos que
ali nascerem. É abaixo de zero o risco de alguém estranho, tenha a
autoridade que tiver, sair com um dos ocupantes do berçário em seus
braços. As enfermeiras são sorridentes e recebem carinhosamente pequenos
e merecidos mimos das famílias que acolhem, os médicos são pressurosos e
acolhedores.
A suíte onde Vossa Excelência se recuperará do parto tem ar
condicionado, TV, rede de wi-fi, a fim de orgulhosas mamães exibam ao
mundo o fruto da espera de nove meses. Papais também orgulhosos
distribuem charutos e sempre a camisa do time de coração é a primeira
foto que mandam para o grupo de amigos. Tudo é felicidade.
Não teve os luxos do nascimento de uma criança de classe média alta
e teve que se comportar, haja vista estivesse sob escolta policial, não
enfermagem, para atendê-la. Espero que não tenha sido algemada à cama e
acabou de ir amamentar seu filho no chão úmido e mofado de uma cadeia pública,
onde estava detida, porque não lhe foi reconhecido seu direito à
liberdade, seja por Vossa Excelência, seja pelo Juiz de Direito.
Há uma questão, senhora promotora, que supera a questão jurídica.
É assustador imaginar que a senhora, justamente por se encontrar grávida,
não tenha visto, com os olhos da alma, o terror de uma mulher amamentar
o filho que acabara de nascer, num pedaço de espuma, entre cobertores
velhos, num chão batido de uma cela infecta. Não posso crer que esse
momento lhe tenha também passado despercebido.
Não posso imaginar que alguém possa trazer consigo tanta ausência de
compaixão humana que tenha se permitido participar de uma situação, cuja
insensibilidade me traz as piores e mais amargas lembranças da
História.
Nas leituras que seu bom médico deve ter sugerido durante sua
gestação, certamente, alguma coisa existe – não é autoajuda – no sentido
de demonstrar que os primeiros momentos de vida de um ser humano são
cruciantes e que poderão ter consequências para o resto de sua vida.
Gente muito melhor do que qualquer jurista concurseiro que lhe tenha dado milhares de dicas, disse isso: Freud, Melanie Klein, John Bowlby.
Procure saber deles, que diriam certamente que teria sido menos
desumano que a senhora e o juiz que acolheu seu infeliz pedido atirassem
na mãe. A senhora, fique certa, contribuiu para uma enorme dor que essa
criança haverá de carregar por toda a vida. O terror da mãe
transmitiu-se ao filho, não sabia?
Enquanto a senhora há de amamentar teu filho ou tua filha em todas as
condições de conforto e segurança, livre do medo, livre do pavor de
alguém apartá-la da cria, sem o terror de ver grades de ferro à frente,
ela ficou com todos os pavores internalizados. Enquanto a senhora há de
desfrutar justa licença-maternidade, em que poderá se
dedicar exclusivamente a apresentar o mundo ao doce e bem-vindo recém
chegado filho ou filha, ela estará a dizer a seu filho que ele nasceu na
cadeia, nasceu preso, nasceu atrás de grades, nasceu encarcerado.
Seria duríssimo, mas inevitável se a falta cometida fosse de tamanha
gravidade que não se acenasse ao horizonte uma solução menos gravosa.
Mas, haveria de ser do conhecimento de Vossa Excelência, como deve ser
do Magistrado, que o STF de há muito pacificou essa
questão e essa mulher terá direito a penas restritivas. Isto é, jamais
poderia ter permanecido presa, pela singela razão de ter o direito de
ser posta em liberdade.
A senhora e seu Magistrado agiram com abuso de direito, percebe?
Permito-me dizer que aprendi, dentro do Ministério Público,
que não se pode fazer Justiça sem compaixão, sem amor pelo próximo, sem
respeito pelas pessoas. Caso se caia nessa cilada, somente se produzirá
terror, como esse que a senhora produziu. A Justiça Criminal, cara ex-colega promotora, se mede a partir do direito de liberdade.
Aliás, quem diz maravilhosamente sobre isso é também um ex-integrante do MPSP, Ministro Celso de Mello.
Sugiro que a senhora procure ler e estudar um pouco mais, um pouco além
desses manuais catastrofistas que colocam os promotores e juízes como
agentes de segurança pública, algo que nunca foram e nunca serão. Leia
mais humanistas, é evidente a falta que lhe fazem.
Pela mãe abusivamente presa, em algum momento, chegou a ver na
barriga dela a mesma barriga que é a sua? Em algum momento dessa tua
vida, conseguiu pensar que aquela mulher lhe é igual em tudo? Que o
fruto de vosso ventre nascerá como nasceu o dela? Que amamentará seu
filho como ela amamentou o dela? Que mecanismo mental foi esse que
quebrou uma identificação que haveria de ser imediata?
Onde, enfim, Vossa Excelência deixou a humanidade que deve legar a seu filho?
Com respeito,
Roberto Tardelli, Advogado e Procurador de Justiça Aposentado.
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