Flores

Flores
Flores

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O problema é a democracia? O retorno do antiliberalismo católico. Artigo de Massimo Faggioli

O problema é a democracia? O retorno do antiliberalismo católico. Artigo de Massimo Faggioli

Revista ihu on-line

15 Fevereiro 2018
“O fracasso dos católicos em defender a democracia e seu sonho de retornar à “era de ouro” da cristandade medieval foram fatores-chave no surgimento de regimes autoritários no século XX.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de Teologia e Estudos Religiosos na Villanova University, Estados Unidos. Seu último livro é Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century (Liturgical Press, 2017).

O artigo foi publicado no sítio Commonweal, 12-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Um dos desdobramentos mais preocupantes no atual debate sobre religião e política é a renovada caracterização da democracia liberal como uma ameaça à moral cristã maior do que qualquer outro sistema político. Não se trata apenas de um retorno da antiga doutrina legitimista de que sistemas e monarquias não democráticas são mais cristãos do que as democracias; ao contrário, é uma crise geral dos alinhamentos teológico-políticos do século XX.

O antiliberalismo católico está, mais uma vez, tentando lançar sérias dúvidas sobre a ideia de que a democracia e o cristianismo são até mesmo compatíveis. Esse é um sinal de que aquilo que Ross Douthat chamou de “a síntese João Paulo II” está em crise, ao mesmo tempo que demonstra também que João Paulo II não foi um papa neoconservador.

Em Tertio millennio adveniente (1994), sua carta apostólica que introduz a Igreja no terceiro milênio, João Paulo II escreveu: “Pensa-se frequentemente que o Concílio Vaticano II marque uma época nova na vida da Igreja. Isso é verdade, mas, ao mesmo tempo, é difícil não notar como a Assembleia conciliar muito auferiu das experiências e das reflexões do período precedente, especialmente do patrimônio do pensamento de Pio XII”.

Nesse legado, há também a mensagem de rádio do Papa Pio XII de dezembro de 1944, que o historiador francês Jean-Dominique Durand chamou de “batismo de democracia” do pontífice. Proferindo-o na véspera do último Natal durante a Segunda Guerra Mundial, Pio XII disse:

“Sob o sinistro brilho da guerra que os envolve, no ardor candente da fornalha em que estão aprisionados, os povos como que despertaram de um longo torpor. Eles puseram diante do Estado, diante dos governantes, uma atitude nova, interrogativa, crítica, desconfiada. Temperados por uma amarga experiência, eles se opõem com maior ímpeto aos monopólios de um poder ditatorial, inquestionável e intangível, e exigem um sistema de governo que seja mais compatível com a dignidade e a liberdade dos cidadãos.”

Pio XII citou a encíclica Libertas, de Leão XIII (1888), que afirmou que “não é vetado preferir um tipo de Estado regulado pela participação popular, salvando-se, porém, a doutrina católica sobre a origem e o exercício do poder público. Entre os vários tipos de Estado, contanto que sejam, por si sós, capazes de prover o bem-estar dos cidadãos, nenhum é reprovado pela Igreja; no entanto, ela espera aquilo que a natureza também ordena: que os Estados individuais se sustentem sem provocar dano a ninguém e, sobretudo, respeitem os direitos da Igreja”.

Menos de quatro meses após a morte de Pio XII, seu sucessor, João XXIII, anunciou o Concílio Vaticano II – cujos ensinamentos sobre a mensagem social e política da Igreja são frequentemente ignorados ou evitados pelos católicos que falam sobre a disposição da Igreja em relação à questão política, embora o Vaticano II faça parte da tradição católica e do ensino oficial da Igreja.

Para os neotradicionalistas, o problema é que o Vaticano II substancialmente redefiniu “os direitos da Igreja”. Ele elaborou uma teologia do mundo secular e fundamentou-a no “batismo de democracia” católico celebrado no fim da Segunda Guerra Mundial – acrescentando, ao mesmo tempo, novos elementos significativos a ela, especialmente a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e uma teologia da guerra e da paz pós-Hiroshima.

Com base na última encíclica de João XXIII, Pacem in terris (11 de abril de 1963), o Vaticano II inaugurou uma nova compreensão da visão católica do Estado-nação secular, da democracia e dos direitos individuais, especialmente na constituição pastoral Gaudium et spes e na declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae. Foi uma teologia que se desenvolveu a partir da derrota do totalitarismo e do autoritarismo (que, até a guerra, muitos católicos apoiavam) na Europa Ocidental e da rejeição do comunismo que dominava a Europa Oriental, a Rússia e a China.

A Igreja Católica chegou a um acordo com a nova ordem internacional, pós-colonial e liberal-democrática: ele era oficialmente pós-fascista e anticomunista, apesar do apoio institucional da Igreja a alguns regimes fascistas (Espanha, Portugal, América Latina) até mesmo após o fim do Vaticano II e apesar do fato de que milhões de católicos na Europa Ocidental terem votado em partidos comunistas.

O período pós-Vaticano II viu um desdobramento dessa mudança teológica e magisterial. Houve, por exemplo, a carta apostólica Octogesima adveniens (1971), de Paulo VI, que reconheceu o pluralismo de opções políticas para os católicos: “Reconhecendo muito embora a autonomia da realidade política, esforçar-se-ão os cristãos, solicitados a entrarem na ação política, por encontrar uma coerência entre as suas opções e o Evangelho e, dentro de um legítimo pluralismo, por dar um testemunho, pessoal e coletivo, da seriedade da sua fé, mediante um serviço eficaz e desinteressado para com os homens”.

Hoje, quase 60 anos após o anúncio do Vaticano II em 1959, os católicos devem se perguntar como sua Igreja pode orientá-los a entender suas opções políticas nesta nova “desordem” mundial, moldado, entre outras coisas: pelo 11 de setembro e pela insuficiência da ação militar no estabelecimento de um mundo mais seguro, pacífico e justo; pelo declínio da liderança mundial estadunidense e pela emergência de novos regimes autoritários (especialmente a China e a Rússia); pela paralisia do projeto europeu; pela incapacidade de abordar as crescentes lacunas na igualdade social e econômica, tanto globalmente, quanto dentro dos países individuais; e pela ascensão do populismo e do nacionalismo em resposta a uma nova oligarquia de tecnocratas-sem-fronteiras. Tudo isso está influenciando o modo como as pessoas mais jovens pensam sobre a democracia; as pesquisas mostram que os millennials não estão apenas menos interessados nela, mas também estão perdendo a fé nela como um sistema viável.

Os católicos mais jovens são tão pessimistas assim? Como o retorno do antiliberalismo os afeta especificamente? É importante notar que a versão de hoje do antiliberalismo católico não é a mesma que levou os católicos a votar nos fascistas na Itália ou nos nazistas na Alemanha. Até meados do século XX, o antiliberalismo católico assumia que o antirrepublicanismo e a oposição à democracia e à soberania popular – e, é claro, ao comunismo – eram as únicas posições católicas possíveis. A versão de hoje decorre das decepções das últimas décadas e desafiou suposições típicas do período entre o Vaticano II e o início do século XXI.

Um elemento importante do antiliberalismo católico contemporâneo tem a ver com o legado das “guerras culturais” – a conexão entre a democracia liberal e secular com ataques contra a santidade da vida. Agora, não há nenhuma dúvida de que os governos progressistas seculares se tornaram mais desdenhosos em relação à sensibilidade dos cidadãos que têm convicções religiosas, como demonstrado pelo recente furor sobre o programa de empregos de verão do governo canadense e um debate agitado sobre direitos, crenças, liberdades e o poder do Estado.

No entanto, isso também parece ser um esquecimento da história. Não me refiro a causas liberais bem conhecidas, como a oposição ao racismo, ao militarismo e ao antissemitismo (as causas que os regimes fascistas são conhecidos por apoiar). O que eu acho perturbador é a suposição de que a democracia liberal, simplesmente em virtude do liberalismo, deve ser culpada, por exemplo, pela legalização do aborto.

Em seu “Diário de Moscou”, por exemplo (dezembro de 1926 a janeiro de 1927), Walter Benjamin escreveu sobre a ruptura do casamento tradicional na antiga Rússia soviética como uma relíquia da época burguesa. Em 1936, a Rússia soviética sob Stalin também aprovou uma das mais rígidas políticas antiaborto do mundo, a fim de estimular a taxa de natalidade.

Do outro lado do espectro ideológico, os regimes autoritários e anticomunistas buscavam o apoio das hierarquias católicas legislando de acordo com as doutrinas da moral sexual católica. Uma das razões de crítica à Humanae vitae (1968), de Paulo VI, foi a consonância entre a proibição pré-Vaticano II da contracepção e a legislação de regimes autoritários e totalitários sobre o assunto.

A Humanae vitae foi comparada com a proibição legal da contracepção da era fascista e a correspondente censura de informações sobre o controle de natalidade. A rejeição católica à tecnologia médica moderna teve que lidar com o legado da rejeição secular e antifascista da política sexual e abortiva do regime pró-natalista de Mussolini, em que a proibição da contracepção era justificada pela necessidade de construção da nação.

Os católicos mais jovens que são atraídos pelo antiliberalismo e que desenvolveram uma sensibilidade para as questões da vida diferente da de seus pais e avós podem estar buscando um sistema alternativo que consagre os valores pró-vida. Mas eles também podem não estar notando as tragédias ocorridas nas mãos de líderes e movimentos não democráticos, inclusive aqueles relacionados às questões da vida. O ataque à santidade da vida, expressado em apoio ao aborto e à contracepção, não começou com a democracia liberal.

O ensino social católico dá aos católicos a capacidade de avaliar a crise moral e política de uma nação (e de uma democracia) sem rejeitar a ideia do Estado-nação e da legitimidade de uma autoridade política que seja pluralista, não confessional e respeitosa das identidades seculares e não cristãs ou pós-cristãs.

O que Tony Judt disse em sua última conferência pública em outubro de 2009 sobre a nossa necessidade de “pensar o Estado” também é uma necessidade urgente para os católicos hoje – particularmente no Ocidente, dada a contribuição da tradição intelectual e magisterial católica para as questões constitucionais e políticas dos últimos 100 anos.

Vale lembrar que o fracasso dos católicos em defender a democracia e seu sonho de retornar à “era de ouro” da cristandade medieval foram fatores-chave no surgimento de regimes autoritários no século XX.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.