Juízes, respeitem a cidadania!
Historicamente, muitos magistrados usaram a lei como instrumento de opressão e tirania
*Roberto Romano,
O Estado de S.Paulo
16 Fevereiro 2018 | 03h06
16 Fevereiro 2018 | 03h06
A campanha contra
a corrupção atinge décadas de existência, no mundo e no Brasil.
Fenômeno social, político, econômico, suas causas e seus resultados têm
muitos sentidos. Erro é o entender com análises que o cindem entre o bem
e mal, o aceitável e o proibido. Oportunismos vários recortam a vida
coletiva de maneira maniqueísta: o nosso lado nunca sofre erros; já o
canto oposto... responde por tudo o que dissolve os laços éticos. Tais
indignações sempre são seletivas. Pode nosso parceiro cometer as piores
vilanias, ele encontrará desculpas em nossas almas. Mas as hostes
inimigas, mesmo em caso de pecadilho, transformam-no no agente de
Lúcifer.
Se escutamos fanáticos que agem segundo slogans, pouco podemos
reclamar do seu primarismo. Seitas seguem líderes de modo apaixonado.
Basta que sejam ouvidas falas contrárias às do agrupamento, logo os
gestos se tornam agressivos. O pensamento exige diálogo entre diferentes
(a mesmice impede saberes novos), mas o sectário nada capta sobre
realidades complexas. Preocupa, no entanto, encontrar pessoas que
deveriam dedicar-se à reflexão, mas aceitam esquemas binários. Elas
racionalizam fatos, dão aos parceiros frases para justificar táticas
hediondas.
Baseado em tal constatação, Jean-Paul Sartre distingue o filósofo
do ideólogo. O primeiro busca o verdadeiro, o segundo dispensa a busca
factual e lógica. O próprio Sartre agiu com as duas faces, a filosófica e
a ideológica. A primeira, ao investigar a liberdade, os atos
intencionais da consciência. A segunda, ao defender regimes como o da
União Soviética. Mas ele se ergueu contra a invasão da Hungria em 1956. O
mesmo indivíduo pode assumir certa atitude, depois outra. Imaginemos
povos inteiros, cuja oscilação entre o pacífico e o truculento, o moral e
o criminoso, conduz às guerras.
A campanha contra a corrupção exige cautelas. Na História temos
casos de indivíduos que, ao guerrear o que julgavam corrupto, foram
vencidos. O símbolo dos justiceiros encontra-se em Savonarola, “profeta
desarmado”. Quando vencia, massas o seguiam, ébrias de certezas. Ai dos
pecadores! Acabou na fogueira e a República seguiu costumes de antanho. A
frase maquiavélica sobre o monge não é exata: suas armas estavam na
mente dos que o idolatravam. Quando popular, o dominicano não precisava
mover exércitos. A massa crente, ruidosa como o vendaval, servia-lhe
como arma.
No Brasil, surgem inúmeros profetas, sobretudo no Judiciário,
líderes da campanha em prol da pureza radical. Quase nenhum deles
recorda a experiência do irado monge. Usam a receptividade do tema em
estratos da população para atacar corruptos, reais ou supostos. Olvidam o
fato notório: a fama aparece e some em pouco tempo. Uma sociedade
abriga os mais contraditórios interesses e causas. Em determinado
instante, certo tema ocupa as mentes e os corações. Quando surge outra
ameaça, o interesse público a teme e amplia.
Todos os que estudaram a famosa Operação Mãos Limpas conhecem o
seu instante de glória, quando muitos políticos foram presos, expulsos
da vida oficial. Mas depois vieram as réplicas. Juízes e promotores
perderam apoio, a Grande Causa foi obliterada pelo ramerrão político ou
eleitoral. Partidos foram destroçados. Mas outros, tão corrompidos
quanto, surgiram para controlar o Legislativo e o Executivo. E tutto rimane come sempre...
Magistrados fundaram partidos que poucos votos tiveram. Hoje eles andam
pelo mundo para explicar o seu fracasso. Poucos atores da Mani Pulite
criticaram a si mesmos, pois, como é “evidente”, a culpa da hecatombe
corrupta deveria ser atribuída aos outros, os ardilosos que agem nas
sombras... Outra nota do fanatismo: ele é orgulhoso, deseja para si a
perfeição plena. Os defeitos, ora, encontram-se nos terrenos alheios...
O Judiciário brasileiro procura se defender das críticas a ele
enviadas pelos diversos setores políticos, sociais, ideológicos,
econômicos. As reações contra magistrados a eles soam como crimes de
lesa-majestade... divina. Tal atitude foi resumida pela ministra Cármen
Lúcia ao inaugurar o atual ano de trabalho. “Não há civilização nacional
enquanto o direito não assume a forma imperativa, traduzindo-se em lei.
A lei é, pois, a divisória entre a moral e a barbárie”.
O nobre Rui Barbosa que nos desculpe, mas é árduo identificar
plenamente “lei” e “juízes”. Da Ágora que condenou Sócrates aos
tribunais de exceção do século 20 (e do 21...), muitos e muitos juízes
usaram a lei como instrumento de opressão e tirania. É recomendável a
leitura do livro tremendo de Eric Voegelin, Hitler e os Alemães.
No Brasil da era Vargas e do regime imposto em 1964, juízes em grande
quantidade “aplicaram imperativamente as leis” de modo inclemente e
desumano. Tais normas ofendiam o Direito, a liberdade, a dignidade dos
governados. Cito um correto comentário ao discurso da magistrada: ela
não mencionou, mas o Poder Judiciário, “com frequência crescente,
descumpre as leis, criando-as à revelia do Congresso, instituição
moldada para legislar. (...) As decisões da Justiça devem ser
respeitadas. Mas é igualmente certo que, em primeiro lugar, quem deve
respeitar a lei é o juiz. O fundamento para o respeito às decisões
judiciais não é a autoridade do magistrado, como se sua voz tivesse um
valor especial por si só. A decisão da Justiça tem seu fundamento na
lei, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo” (O Estado de S. Paulo, A responsabilidade do Judiciário, 2/2/2018, A3).
As ordens do Supremo Tribunal Federal são atenuadas mesmo por
instâncias inferiores do Judiciário. O caso da Súmula Vinculante de
número 11 é claro. Enquanto tal situação permanecer, e o cidadão for
humilhado pelo poder sem peias de juízes, sempre que ouvirmos suas falas
com ataques à vida social brasileira, devemos proclamar: medice, cura te ipsum (médico, cura a ti próprio)!
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros Estados da razão
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