É possível que os nossos princípios éticos mudem com o passar do
tempo? Analisando a História da civilização ocidental, entendemos que
sim. A ética do homem se transformou e continuará se transformando. É o
que explica Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para isso, ele retoma a
origem da palavra, na Grécia Antiga. E chega aos problemas dos dias de
hoje na política brasileira. Confira a entrevista que Roberto Romano
concedeu a Página22 para a edição 72 “Poder”.
A ética tem como base os valores históricos e culturais? Como podemos analisar uma evolução da ética em nossas sociedades?
É preciso começar explicando a palavra “ética” que surgiu na Grécia como hexis e
significava “postura”. A Grécia era uma sociedade guerreira,
principalmente em Esparta. Meninos e meninas aprendiam desde cedo a ter
uma postura corporal correta para os exercícios militares. Se eles não
andassem, corressem e se movimentassem corretamente, colocariam a cidade
em risco porque a guerra exige pleno domínio do corpo. Se uma pessoa
não aprende a ter a postura correta desde jovem, nunca mais terá uma boa
postura.
Por metáfora, aquela ideia passou a ser a boa postura da mente: era
preciso aprender a raciocinar e ter valores corretos para que se
exercesse a cidadania. Então, passou a ser importante também ensinar os
meninos e meninas uma boa ética espiritual, de valores, a maneira de se
comportar.
Quem aprende a andar e pensar de forma correta faz isso
automaticamente depois. Mas uma pessoa que, quando criança, aprende a
desprezar quem é de outra cor ou condição social irá agir dessa maneira
por muito tempo porque essa é a forma como ela é. É preciso ter muito
cuidado com o automatismo, com a inconsciência da ética. O habito é um
dos piores tiranos que uma pessoa pode ter. Se habituar a uma forma de
agir é ser escravo dessa forma.
Como diferenciamos ética e moral?
A ética é um comportamento essencialmente coletivo e social. Não
existe ética individual. Ela existe na sociedade – seja boa ou má – e é
aprendida e modificada pela ação da própria sociedade. O indivíduo tem
um peso bastante relativo nessa modificação.
Sócrates proclama que prefere seguir a consciência dele aos costumes e
crenças da coletividade. Quando oferecem a ele a oportunidade de fugir
da condenação à morte, ele diz “Minha consciência exige que eu siga o
julgamento e responda pelas minhas ideias”. A moral é o campo do
indivíduo, de sua consciência diante da coletividade. O indivíduo pode
aceitar ou se revoltar contra a ética vigente em sua sociedade.
Se a ética vigente é devastar a natureza as pessoas que acham que
isso é normal e continuarão a fazê-lo automaticamente. As que adquirem
uma percepção de mundo diferente da sociedade onde ela vive, vai agir
moralmente. Durante o regime do nazismo na Alemanha, era normal sair às
ruas dizendo “Viva Hitler” e achar que as pessoas consideradas
inferiores, como negros e judeus, deveriam ser exterminadas. Agora,
moral eram os que se insurgiam contra isso.
Embora mais frágil porque há uma face do individual, a moral é mais
exigente e mais difícil. Se você está na Alemanha nazista e é branco de
olho azul, por que dizer que é errado matar ciganos ou homossexuais? A
moral exige muito mais coragem e lucidez do indivíduo.
Não é possível separar a ética da moral. A ética é o resultado de múltiplas ações morais que se tornaram coletivas.
Para falar de política, então, temos que falar tanto da ética tanto quanto da moral?
Sim. Por exemplo, na sociedade indiana pré-independência, a ética era
a da obediência aos ingleses, dos aristocratas que dividiam (e dividem
até hoje) a sociedade em castas. Gandhi assumiu atitudes de
desobediência e não-violência a partir de sua consciência moral. Gosto
muito do exemplo do sal. Era proibido de ser tocado e Gandhi pegou um
punhado. Seu gesto “eu não aceito essa ordem legal” foi repetido muitas
vezes. Até que se chegou à independência.
Como a noção de ética muda ao longo do tempo e das
sociedades? Por exemplo, na Índia independente criou-se outros códigos
de conduta social.
Johann Gottlieb Fichte, grande autor moral do século XIX e da
modernidade comparava o nascimento da reflexão ao choque. Quando você
está indo em uma direção e encontra o obstáculo, sente a necessidade de
mudar o caminho. Com a ética é assim. Você está mergulhado em
preconceito e tem um choque que obriga a repensar e reordenar todos os
seus valores.
Até o século XIX, havia um racismo tremendo na cultura. Dizia-se que
matemática era apenas para homens e brancos. Até que as pessoas se deram
conta de que havia mulheres e negros ótimos em cálculos. As pessoas com
caráter minimamente correto passaram a questionar ao tomar esse
“choque”. Outro choque é ser assaltado na rua. Você vive bem até que os
choques sociais te fazem pensar nas condições de vida na sua sociedade.
Não há mudança ética ou mudança moral sem a crise. O conceito de
crise não é totalmente negativo. Ele é importante para se pensar nas
questões da ética e da moral porque são em situações limites da vida
social em que propostas de renovação e de mudanças de comportamento
aparecem.
Na medicina grega hipocrática, a ideia de crise é o momento em que o
corpo está brigando com a morte. Pode reagir e sobreviver ou não. O
médico tem que saber muito bem e perceber os sinais positivos ou
negativos da crise. Assim também deveria fazer os políticos, os
professores, os jornalistas que têm o conhecimento mais aguçado que o
cidadão comum para perceber os sinais da crise e saber se são positivos
ou negativos.
Quais foram os momentos de crise da ética em nossa sociedade ocidental?
Temos pelo menos dois importantes. Um deles é a Renascimento (séculos
XIV a XVII) e a Reforma Protestante: A partir de Lutero, rompeu-se com a
ideia de que o homem tinha quer ser cristão e católico. A ruptura
obrigou a sociedade – e inclusive a própria Igreja Católica – a
repensar. Tanto que em seguida, a Igreja organiza a Contra-Reforma. O
Renascimento é o momento do surgimento do estado moderno e da
secularização também cultura, da moral e da ética.
No século XVII, debatia-se seriamente a possibilidade de uma
sociedade puramente ateia ter moral ou não. Até que se entendeu que para
ser ético e correto não era preciso ser necessariamente religioso.
O segundo momento é o século XVIII com a Revolução Francesa e a
independência dos Estados Unidos. A Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão traz justamente o direito do homem ter uma religião, mas sem o
direito de impô-la aos outros.
Foi nessa época que se consagrou um princípio fundamental na ética
até: o da responsabilidade dos governantes diante dos governados, também
chamado de accountability.
Na Revolução Puritana inglesa do século XVII se estabeleceu a accountability.
Os reis passaram a ter que prestar contas. Se não, poderiam ser
destituídos imediatamente. Esses princípios passaram para os Estados
Unidos e isso está estabelecido lá até hoje.
Havia na democracia de Atenas a dokimasia: quando uma pessoa
assumia um cargo público civil ou militar, era submetida a um exame e
só assumia o cargo se provasse competência técnica e de valores humanos,
éticos. No final da gestão era feito outro exame e uma prestação de
contas. No caso de um mandato ruim, havia multas e até perda da
cidadania e exílio. Foi baseada nessa prática que se criou na
Inglaterra do Século XVII a accountability.
Falta ao Brasil então a accountability?
Com certeza. A accountability estabeleceu o princípio do
estado democrático moderno, mas é algo que nós brasileiros não
conhecemos. Nunca nem fizemos uma revolução democrática. A inconfidência
mineira foi uma tentativa. Os homens do movimento, liam os autores da
Inglaterra, dos EUA. O estado de Portugal era absolutista, totalmente
contrário à prestação de contas. Acabaram com o movimento da
inconfidência. Durante a fase do Império se continuou a perseguir os
liberais e as pessoas com ideias que queriam estabelecer a república e
um governo democrático.
O século XIX foi o da imposição das armas pelo império de uma norma
de estado contra a democracia e o liberalismo. Então, nossa tradição é a
de não-responsabilização.
Nossa ética ainda hoje é a do absolutismo: quem está dentro do
aparelho do estado é superior, quem cidadão, não é nada. Prestar contas
hoje é impossível nos três poderes do Brasil. Em todas as repartições
públicas há um cartaz dizendo que insulto ao funcionário público é
crime! E não existe nada falando que insultar o cidadão é crime. Se
alguém te destrata na receita federal, você não pode fazer nada!
A lei da Transparência é um inicio de uma fiscalização dos brasileiros sobre o funcionalismo público?
Exatamente. Estamos caminhando a passos de tartaruga
para mudar essa configuração. Temos a Lei da Improbidade Administrativa
que segundo pesquisas do Ministério Público já consegue culpabilizar
pelo menos 40% dos impobros processados. É pouco, mas perto da quase
impunidade nenhuma anterior, é muito. E temos a Lei da Ficha Limpa. São
leis que estão começando a definir o novo padrão de comportamento dos
trabalhadores do estado e do público. Depois de se vivermos 500 anos sob
a ética da servidão, é muito difícil perceber uma outra situação. Temos
tentativas de mudanças que estão sendo bem sucedidas.
Voltando aos momentos de crise ética, ao fim da 2ª Guerra
Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) – então, recém-criada –
aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humano. Isso teria sido o
resultado de um momento de crise ética?
Isso foi um marco importante. A ONU ainda é um instrumento deficiente
na resolução de guerras, mas é um caminho. Em passos pequenos estamos
conseguindo mudar a ética planetária. Pouco a pouco se encontram novos
caminhos.
Em Leis, Platão diz que não existe Estado (pólis)
se nele as dores e alegrias dos indivíduos não forem as dores e
alegrias do coletivo e vice-versa. E não é automático que isso aconteça.
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