O que a prisão de uma gestante com 40g de maconha revela sobre o sistema carcerário brasileiro
Janaina Garcia
Do UOL, em São Paulo
A negativa da Justiça em conceder liberdade domiciliar a uma gestante
de 24 anos presa com 27 papelotes de maconha (cerca de 40 gramas) no
último final de semana, em São Paulo, contrastou com decisões recentes
do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre tráfico ou sobre a cessão de
penas alternativas a mães com filhos pequenos, caso da ex-primeira-dama
do Estado do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo. Para especialistas ouvidos pelo UOL, o caso revela conservadorismo e seletividade do Judiciário.
Mãe de outro menino de 3 anos, Jéssica Monteiro, 24, deu à luz Henrico no último domingo, em um hospital público de São Paulo, e divide com ele desde então uma cela de dois metros quadrados. O parto ocorreu horas depois de uma audiência de custódia converter a prisão em flagrante da mãe em prisão preventiva.
Para o juiz Claudio Salvetti D'Angelo, tanto Jéssica quanto o
marido, Oziel Gomes da Silva, preso com ela portando 37 papelotes de
maconha (pouco mais de 55 gramas) e 40 mini-tubos de cocaína (8,6
gramas), apresentam "acentuada periculosidade" e não deviam ser soltos. A
prisão domiciliar requerida pela defesa foi negada.
Não foi
este o entendimento do STF em caso semelhante julgado no último dia 8.
Na ocasião, o ministro Celso de Mello concedeu via liminar o direito à
prisão domiciliar a uma mulher que, mãe de um bebê de 11 meses, havia
sido presa em flagrante no Rio Grande do Sul com 50 gramas de cocaína.
Antes, a reclusão dela havia sido mantida em audiência de custódia e
confirmada pelo Tribunal de Justiça gaúcho e pelo STJ (Superior Tribunal
de Justiça).
No despacho, o ministro citou que, com mudanças feitas no Código de
Processo Penal pelo Estatuto da Primeira Infância, em 2016, o Judiciário
deveria evitar a decretação de prisão preventiva a grávidas e mães de
crianças de até 12 anos.
Adriana Ancelmo, mulher do
ex-governador Sérgio Cabral, foi presa por crime diferente, condenada
pela 7ª Vara Federal do Rio a 18 anos de prisão por associação criminosa
e lavagem de dinheiro em um desdobramento da Lava Jato no Rio. Mas
também foi beneficiada pelo entendimento do STF -no caso, do ministro
Gilmar Mendes- de que merecia a prisão domiciliar para cuidar dos
filhos, o mais novo com 11 anos.
"Judiciário é muito conservador", afirma defensora pública
Para a defensora pública estadual Maíra Coraci Diniz, que atua na
questão carcerária no Estado de São Paulo, ainda que o Código de
Processo Penal ofereça garantias a mães presas com filhos de até 12
anos, "o Judiciário ainda é muito conservador e acredita que a única
resposta estatal é o encarceramento".
"Há um custo social muito
grande em se manterem aprisionadas mães de crianças pequenas – e no
período de vida em que a criança mais precisa do acompanhamento
materno", disse. "Mais do que penalizar uma mãe, o Estado tem que
garantir os direitos de um filho, e, depois, pensar na pena dela. O que
vemos, no entanto, é que nem sempre essas legislações que trazem
alternativas às penas são cumpridas".
A defensora observou que,
no caso de mulheres presas, a maioria é pobre, responde por tráfico de
drogas e vem de famílias desestruturadas. Um estudo feito em 2016 pela
Defensoria no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha (Grande
São Paulo), revelou que, das 1.588 presas naquele ano, na unidade, 60%
tinham até 29 anos, 80% não tinham advogado constituído, 65% se
declararam pardas ou pretas, 75,5% disseram ter filhos e 51% estavam
presas por tráfico.
"É urgente rever a lei de drogas, pois
muitos dos que se inserem na traficância o fazem por necessidade, e não
para enriquecer. Há um recorte discriminatório da Justiça que, muitas
vezes, acaba aprisionando vítimas", disse Maíra Coraci Diniz.
Segundo levantamento publicado mês passado pelo CNJ (Conselho
Nacional de Justiça), o Brasil tem 622 mulheres grávidas ou amamentando
vivendo em presídios -- 373 grávidas e 249 com seus filhos. Os dados
são do Cadastro Nacional de Presas Grávidas e Lactantes, idealizado pela
presidente do STF, ministra Cármen Lúcia.
"Vivemos uma situação de injustiças", aponta juíza
Juíza auxiliar do TJ-SP no Fórum da Barra Funda –onde a prisão de
Jéssica foi julgada na audiência de custódia –, Tatiane Moreira Lima
afirmou que, pela legislação em vigor, é necessário um local adequado
para o cumprimento da lei e para que os direitos da criança e da mãe
presa sejam minimamente assegurados.
"Temos em São Paulo
presídios femininos que possuem alas para mulheres gestantes e alas
maternas, não há falta de vagas. Geralmente, a mulher é levada do
hospital a essas unidades. Ocorre que, em regra, é mais fácil essa
transferência quando a mulher já está cumprindo a pena", destacou. "O
sistema penal ainda não tem esses locais para mães e gestantes em
delegacias, por exemplo".
Sobre a quantidade de drogas que a
Justiça apontou em casos como o de Jéssica, a magistrada reforçou o
entendimento da defensora no sentido de que mudanças na
política antidrogas considerem a proporcionalidade dos casos.
"O
tráfico de drogas é um crime hediondo e, em função disso, não admite
vários benefícios", explicou a juíza. "Embora sem violência, é um crime
em que não se observa apenas a quantidade de drogas, mas a própria
situação em que se deu a prisão. Vivemos hoje uma situação de muitas
injustiças –com Adrianas Ancelmos e outras tantas Marias que não têm
esse direito, mas aí é uma questão de se repensar a política criminal
das drogas", pontuou.
Justiça age com "seletividade escancarada", diz especialista
Outros dois casos recentes sobre acusação de tráfico, esses envolvendo
homens, também tiveram julgamento diferente do de Jessica. Em maio de
2015, o ministro do STF Luís Roberto Barroso,
determinou que fosse colocado em liberdade um homem flagrado com 69
gramas de maconha e preso havia sete meses no Presídio Central de Porto
Alegre.
Réu primário e com bons antecedentes, endereço fixo e
emprego, o rapaz foi beneficiado pelo entendimento de Barroso de que a
quantidade em questão figuraria consumo próprio, não tráfico.
No
mesmo ano, em seu voto em um recurso extraordinário que discutia a
constitucionalidade sobre a criminalização do porte de drogas para
consumo pessoal, Barroso citou o "alto custo para a sociedade". "O
modelo criminalizador e repressor produz um alto custo para a sociedade e
para o Estado, resultando em aumento da população carcerária, da
violência e da discriminação. (...) Atualmente, 1 em cada 2 mulheres e 1
em cada 4 homens presos no país estão atrás das grades por tráfico de
drogas", escreveu o ministro.
Já no ano passado, apontado com quantidade bem superior à de Jéssica, o
filho da presidente do TRE-MS (Tribunal Regional Eleitoral em Mato
Grosso do Sul), Tânia Garcia Freitas, foi beneficiado em três decisões
do Tribunal de Justiça do Estado com a transferência de presídio
estadual para clínica médica. Ele fora denunciado pela Promotoria por
porte de 129,9 quilos de maconha e 270 munições. A defesa de Breno
Fernando Solon Borges, 37, alegou que ele sofria de transtorno de
personalidade Borderline, o que afetaria sua sanidade mental.
Na
avaliação da pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública Giane Silvestre, casos como o de
Jéssica, em comparação aos de Adriana Ancelmo e do filho da
desembargadora de MS, revelam o que ela classifica como "seletividade
escancarada da Justiça".
"É uma seletividade escancarada onde
determinadas pessoas, com determinado perfil e classe social, conseguem a
obtenção de direitos assegurados pela lei, e outras não, mesmo na mesma
situação ou ainda mais vulneráveis", definiu. "O tráfico de pequena
quantidade é tratado com rigor diferente na execução da lei penal, ao
que parece, da corrupção de grandes montanhas de dinheiro. Isso é o que
escandaliza mais".
STF vai julgar prisão domiciliar a presas grávidas
No próximo dia 20, a 2ª Turma do STF tem como primeiro item da pauta de
discussões o habeas corpus coletivo da Defensoria Pública da União e
das defensorias estaduais em que é requerida a concessão de prisão
domiciliar a todas as mulheres grávidas do país que estejam presas
preventivamente.
Ajuizado em maio do ano passado e com o
ministro Ricardo Lewandowski como relator, o habeas corpus pede que a
medida seja aplicada a todas as mulheres que "ostentem a condição de
gestantes, puérperas (que pariram nos últimos 45 dias) ou mães com
filhos de até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias
crianças".
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