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terça-feira, 28 de novembro de 2017

"Não queremos um sistema de desenvolvimento econômico que fomente gente desempregada, nem sem teto, nem sem terra", afirma Francisco. ihu/unisinos.

“Espero que este Congresso produza sinergia suficiente para propor linhas de ação concretas do ponto de vista dos trabalhadores, caminhos que nos conduzam a um desenvolvimento humano integral, sustentável e solidário”, escreve o Santo Padre o Papa Francisco, em carta publicada por Santa Sé, 23-11-2017. A tradução é de André Langer.

Eis a carta.

Venerável Irmão

Senhor Cardeal Peter K. A. Turkson

Prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral
O trabalho “condiciona o desenvolvimento não só econômico, mas também cultural e moral, das pessoas, da família, da sociedade
 
Nestes dias, os representantes de várias organizações sindicais e movimentos de trabalhadores se reuniram em Roma, convocados pelo Dicastério para o Serviço Humano Integral, para refletir e debater o tema “Da Populorum Progressio à Laudato Si’. O trabalho e o movimento dos trabalhadores no centro do desenvolvimento humano integral, sustentável e solidário”. Agradeço à Sua Eminência e aos colaboradores, e saúdo com carinho todos vocês.

O beato Paulo VI, em sua encíclica Populorum Progressio, disse que “o desenvolvimento [humano] não se reduz a um simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral”, isto é, promover toda a integridade da pessoa, e também todas as pessoas e povos [1]. E como “a pessoa floresce no trabalho” [2], a Doutrina Social da Igreja enfatizou, repetidas vezes, que esta não é uma questão entre tantas outras, mas a “chave essencial” de toda a questão social [3]. Com efeito, o trabalho “condiciona o desenvolvimento não só econômico, mas também cultural e moral, das pessoas, da família, da sociedade” [4].

O trabalho é mais do que um simples labor; é, acima de tudo, uma missão
 
Como base no florescimento humano, o trabalho é chave para o desenvolvimento espiritual. Segundo a tradição cristã, este é mais do que um simples labor; é, acima de tudo, uma missão. Colaboramos com a obra criadora de Deus, quando, por meio de nossas ações, cultivamos e protegemos a criação (cf. Gn 2, 15) [5]; participamos, no Espírito de Jesus, de sua missão redentora, quando, mediante a nossa atividade, alimentamos as nossas famílias e atendemos às necessidades do nosso próximo. Jesus, que “dedicou a maior parte de sua vida na terra à atividade manual junto de um banco de carpinteiro” [6] e dedicou seu ministério público a libertar as pessoas da doença, do sofrimento e da própria morte [7], convida-nos a seguir seus passos através do trabalho. Desta forma, “cada trabalhador é a mão de Cristo que continua a criar e a fazer o bem” [8].

O trabalho, além de ser essencial para o florescimento da pessoa, também é a chave para o desenvolvimento social. “Trabalhar com os outros e para os outros” [9], e o fruto deste trabalho “é uma ocasião de intercâmbio, de relações e de encontro” [10]. Todos os dias, milhões de pessoas cooperam para o desenvolvimento através de suas atividades manuais ou intelectuais, em grandes cidades ou em áreas rurais, com tarefas sofisticadas ou simples. Todas são expressão de um amor concreto para a promoção do bem comum, de um amor civil [11].

O trabalho não pode ser considerado uma mercadoria ou um mero instrumento na cadeia produtiva de bens e serviços
 
O trabalho não pode ser considerado uma mercadoria ou um mero instrumento na cadeia produtiva de bens e serviços [12], mas que, por ser primordial para o desenvolvimento, tem preferência em relação a qualquer outro fator de produção, incluindo o capital [13]. Daí o imperativo ético de “preservar as fontes de trabalho” [14], para criar novas à medida que a rentabilidade econômica cresce [15], bem como para garantir a dignidade do mesmo [16].

No entanto, como advertiu Paulo VI, não devemos exagerar a mística do trabalho. A pessoa “não é só trabalho”; existem outras necessidades humanas que precisamos cultivar e atender, como a família, os amigos e o descanso [17]. É importante, pois, lembrar que qualquer tarefa deve estar a serviço da pessoa e não a pessoa a serviço desta [18], o que implica que devemos questionar as estruturas que prejudicam ou exploram pessoas, famílias, sociedades ou a nossa mãe Terra.

O desenvolvimento econômico para ser sustentável, precisa colocar a pessoa e o trabalho no centro do desenvolvimento, mas integrando o problema do trabalho com o ambiental. Tudo está interligado, e devemos responder de forma integral
 
Quando o modelo de desenvolvimento econômico se baseia apenas no aspecto material da pessoa, ou quando beneficia apenas alguns, ou quando prejudica o meio ambiente, gera um clamor, tanto dos pobres como da terra, que “reclama de nós outro rumo” [19]. Este rumo, para ser sustentável, precisa colocar a pessoa e o trabalho no centro do desenvolvimento, mas integrando o problema do trabalho com o ambiental. Tudo está interligado, e devemos responder de forma integral [20].

Uma contribuição válida para esta resposta integral por parte dos trabalhadores é mostrar ao mundo o que vocês bem conhecem: a conexão entre os três “T”: terra, teto e trabalho[21]. Não queremos um sistema de desenvolvimento econômico que fomente gente desempregada, nem sem teto, nem sem terra. Os frutos da terra e do trabalho são para todos [22], e “eles devem chegar a todos de maneira justa” [23]. Esta questão adquire especial relevância em relação à propriedade da terra, tanto nas áreas rurais como urbanas, e às normas jurídicas que garantem o acesso à mesma [24]. E neste assunto, o critério da justiça por excelência é o destino universal dos bens, cujo “direito universal ao seu uso” é “o princípio fundamental de toda a ordem ético-social” [25].

É imperativo passar da indústria energética atual para uma mais renovável para cuidar da nossa mãe Terra. Mas é injusto que esta transferência seja paga com o trabalho e o teto dos mais necessitados
É pertinente recordar isso hoje, quando celebraremos em breve o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e também quando os direitos econômicos, sociais e culturais devem ser percebidos com maior força. Mas a promoção e a defesa de tais direitos não podem ser realizadas à custa da Terra e das gerações futuras. A interdependência entre o trabalho e o meio ambiente nos obriga a repensar o tipo de tarefas que queremos promover no futuro e as que precisam ser substituídas ou transferidas, como, por exemplo, as atividades da indústria de combustíveis fósseis poluentes. É imperativo passar da indústria energética atual para uma mais renovável para cuidar da nossa mãe Terra. Mas é injusto que esta transferência seja paga com o trabalho e o teto dos mais necessitados. Ou seja, o custo da extração de energia da terra, um bem comum universal, não pode recair sobre os trabalhadores e suas famílias. Os sindicatos e movimentos, que conhecem a relação entre trabalho, teto e terra, têm a obrigação de contribuir a este respeito.

Outra contribuição importante dos trabalhadores para o desenvolvimento sustentável é destacar outra tríplice ligação, um segundo conjunto de três “T”: desta vez entre trabalho, tempo e tecnologia. Em termos de tempo, sabemos que a “aceleração contínua das mudanças” e a “intensificação de ritmos de vida e de trabalho”, que alguns chamam de “rapidación”, não contribuem para o desenvolvimento sustentável, nem para a qualidade do mesmo [26]. Sabemos também que a tecnologia, da qual recebemos tantos benefícios e oportunidades, pode dificultar o desenvolvimento sustentável quando está associada a um paradigma de poder, dominação e manipulação [27].

Hoje não é apenas a dignidade do empregado que está em jogo, mas a dignidade do trabalho de todos, e da casa de todos, a nossa mãe Terra
 
No contexto atual, conhecido como a Quarta Revolução Industrial, caracterizado por esta “rapidación” e a refinada tecnologia digital, a robótica e a inteligência artificial [28], o mundo necessita de vozes como a de vocês. São os trabalhadores que, em sua luta por uma jornada de trabalho justa, aprenderam a enfrentar uma mentalidade utilitarista, de curto prazo e manipuladora. Para essa mentalidade, não importa se há degradação social ou ambiental; não importa o que é usado e o que é descartado; não importa se há trabalho forçado de crianças ou se o rio de uma cidade é poluído. Importam apenas os ganhos imediatos. Tudo é justificado em função do deus dinheiro [29]. Dado que muitos de vocês contribuíram para combater esta patologia no passado, encontram-se agora numa posição privilegiada para corrigi-la no futuro. Peço-lhes que abordem este difícil tema e que nos mostrem, a partir de sua missão profética e criadora [30], que uma cultura do encontro e do cuidado é possível. Hoje não é apenas a dignidade do empregado que está em jogo, mas a dignidade do trabalho de todos, e da casa de todos, a nossa mãe Terra.

Por esta razão, e como afirmei na encíclica Laudato Si’, temos necessidade de um diálogo sincero e profundo para redefinir a ideia de trabalho e o rumo do desenvolvimento [31]. Mas não podemos ser ingênuos e pensar que o diálogo se dará naturalmente e sem conflitos. Precisamos de agentes que trabalhem incansavelmente para gerar processos de diálogo em todos os níveis: ao nível da empresa, do sindicato, do movimento; ao nível dos bairros, da cidade, regional, nacional e mundial. Neste diálogo sobre o desenvolvimento, todas as vozes e visões são necessárias, mas especialmente as vozes menos ouvidas, das periferias. Conheço o afã de muitas pessoas para trazer essas vozes à luz nos fóruns onde são tomadas as decisões sobre o trabalho. Peço-lhes que se juntem a esta nobre tarefa.

Uma contribuição importante dos trabalhadores para o desenvolvimento sustentável é destacar outra tríplice ligação, um segundo conjunto de três “T”: desta vez entre trabalho, tempo e tecnologia
 
A experiência nos diz que, para que um diálogo seja frutuoso, é necessário partir do que temos em comum. Para dialogar sobre o desenvolvimento, é conveniente recordar o que nos une: nossa origem, pertença e destino [32]. Com base nisso, podemos renovar a solidariedade universal de todos os povos [33], incluindo a solidariedade com os povos do futuro. Além disso, poderemos encontrar modos de sair de uma economia de mercado e de finanças, que não dá ao trabalho o devido valor e orientá-la para aquela em que a atividade humana é o centro [34].

Os sindicatos e os movimentos de trabalhadores por vocação devem ser especialistas em solidariedade. Mas para contribuir para o desenvolvimento solidário, peço-lhes que cuidem de três tentações.

Não devemos exagerar a mística do trabalho. A pessoa “não é só trabalho”
 
A primeira, a do individualismo coletivista, isto é, proteger apenas os interesses de seus representantes, ignorando o resto dos pobres, marginalizados e excluídos do sistema. É necessário investir em uma solidariedade que ultrapasse os muros de suas associações, que proteja os direitos dos trabalhadores, mas, de modo especial, aqueles cujos direitos nem sequer são reconhecidos. Sindicato é uma palavra bonita que vem do grego dikein (fazer justiça) e syn (juntos) [35]. Por favor, façam justiça juntos, mas em solidariedade com todos os marginalizados.

Meu segundo pedido é que se cuidem do câncer social da corrupção [36]. Assim como, em determinadas situações, “a política é responsável pelo seu próprio descrédito, graças à corrupção” [37], o mesmo se aplica aos sindicatos. É terrível essa corrupção daqueles que se dizem “sindicalistas”, que se põem de acordo com os empreendedores e não se interessam pelos trabalhadores, deixando milhares de companheiros sem trabalho; isto é um flagelo que mina as relações e destrói tantas vidas e famílias. Não deixem que os interesses espúrios arruínem a sua missão, tão necessária nos tempos atuais. O mundo e a criação inteira esperam com esperança para serem libertados da corrupção (cf. Rm 8, 18-22). Sejam fatores de solidariedade e esperança para todos. Não se deixem corromper!

Uma contribuição válida para esta resposta integral por parte dos trabalhadores é mostrar ao mundo o que vocês bem conhecem: a conexão entre os três “T”: terra, teto e trabalho
 
O terceiro pedido é que não se esqueçam do seu papel de educar consciências em solidariedade, respeito e cuidado. A consciência da crise do trabalho e da ecologia precisa ser traduzida em novos hábitos e políticas públicas. Para criar tais hábitos e leis, precisamos que instituições como as de vocês cultivem virtudes sociais que facilitem o florescimento de uma nova solidariedade global, que nos permita escapar do individualismo e do consumismo e que nos motivem a questionar os mitos de um progresso material indefinido e de um mercado sem regras justas [38].

Espero que este Congresso produza sinergia suficiente para propor linhas de ação concretas do ponto de vista dos trabalhadores, caminhos que nos conduzam a um desenvolvimento humano integral, sustentável e solidário.

Agradeço novamente a você, sr. Cardeal, como também àqueles que participaram e contribuíram, e a todos eu dou a minha bênção.

Vaticano, 23 de novembro de 2017.

Francisco.

Notas:

[1] Beato Paulo VI, 1967, Populorum Progressio, 14.

[2] Papa Francisco, 2017, Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL), 28 de junho de 2017.

[3] São João Paulo II, 1981, Laborem Excercens, 3.

[4] Pontifício Conselho Justiça e Paz, 2005, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 269.

[5] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, 1966, Const. Past. sobre a Igreja no mundo atual Gaudium et Spes, 34; São João Paulo II, 1981, Laborem Excercens, 25.

[6] Laborem Excercens, 6.

[7] Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 261.

[8] Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 265. [Santo Ambrósio, De obitu Valentiniani consolatio, 62].

[9] São João Paulo II, 1991, Centesimus Annus, 31.

[10] Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 273; cf. Papa Francisco, 2015, Laudato Si’, 125.

[11] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL); e Laudato Si’, 231.

[12] Cf. Laborem Excercens, 7.

[13] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 276.

[14] Papa Francisco, 2013, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 203.

[15] Cf. Evangelii Gaudium, 204.

[16] Cf. Evangelii Gaudium, 205.

[17] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).

[18] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 272.

[19] Laudato Si’, 53.

[20] Cf. Laudato Si’, 16, 91, 117, 138, 240.

[21] Cf. Papa Francisco, 2016, Discurso aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, Sala Paulo VI, sábado, 05 de novembro de 2016.

[22] Cf. Laudato Si’, 93.

[23] Conc. Ecum. Vat. II, 1966, Const. Past. sobre a Igreja no mundo atual Gaudium et Spes, 69.

[24] Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 283.

[25] Laudato Si’, 93.

[26] Laudato Si’, 18.

[27] Cf. Laudato Si’, 102-206.

[28] Cf. Manyika, J., 2016, “Technology, jobs, and the future of work”. McKinsey Global Institute. Nota informativa preparada para o Fórum Mundial Fortune-Time no Vaticano, dezembro de 2016 (atualizada em fevereiro de 2017).

[29] Trata-se de um perigoso “relativismo prático” (Papa Francisco, 2015, Laudato Si’, 122).

[30] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).

[31] Cf. Laudato Si’, 3, 14.

[32] Cf. Laudato Si’, 202.

[33] Cf. Laudato Si’, 14, 58, 159, 172, 227.

[34] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).

[35] Cf. Discurso à Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL).

[36] Cf. Evangelii Gaudium, 60.

[37] Laudato Si’, 197.

[38] Laudato Si’, 209-215.

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