EXCLUSIVO: Médica notifica suicídio de Cancellier como acidente do trabalho, provocado por assédio moral insuportável
Aos dois meses da morte do reitor dois fatos: a impunidade da
delegada e a coragem de uma médica que ao registrar o óbito no
Ministério da Saúde criou um importante dispositivo para responsabilizar
o Estado brasileiro
2 dezembro, 2017
Completados hoje dois meses da tragédia que consternou o país, o
Governo, a Polícia e a Justiça Federal continuam ignorando os notórios
abusos e excessos de poder que levaram ao linchamento moral e à morte do
reitor Luiz Carlos Cancellier, já amplamente configurados por renomados
juristas. No entanto, uma atitude corajosa e mantida até agora no
anonimato, pode mudar o curso dessa história de horror e impunidade.
Enquanto as associações corporativistas dos juízes federais do Brasil e
de Santa Catarina; dos procuradores da república e dos delegados da
Polícia Federal emitia uma nota oficial isentando esses agentes de
qualquer falha na condução da “Operação Ouvidos Moucos”,
silenciosamente, uma médica do trabalho do Ambulatório de Saúde do
Hospital Universitário notificou a morte de Cancellier ao Ministério da
Saúde como fruto de assédio, humilhação e constrangimento moral
relacionados ao trabalho. Com a notificação, o suicídio do reitor fica
tipificado como acidente do trabalho e passar a constituir um importante
instrumento para responsabilizar o Estado brasileiro pela sua morte.
Antes de se aposentar por tempo de contribuição, a médica do trabalho
Edna Maria Niero, 55 anos, coordenadora da equipe do Ambulatório de
Saúde do Trabalhador do H.U., cumpriu o que havia prometido a si mesma e
aos colegas de profissão de todo o país no dia da morte de Cancellier. A
profissional conta que só esperou um pouco para passar a forte comoção
causada pela tragédia para poder fazer as investigações necessárias e
levantar os dados pessoais do professor junto à Reitoria, ao setor do
Pessoal da UFSC e ao prontuário médico. E no dia 24 de outubro, depois
de preencher o minucioso formulário do Sistema Nacional de Agravos de
Notificação com os seus dados e as condições do óbito, a médica atestou
que o nexo causal da morte do reitor é relacionado ao trabalho: “Não
tive nenhuma dúvida”, afirma ela. “Quando foi violentamente alijado do
local onde atuava no auge da sua gestão, o reitor foi também arrancado
de sua própria vida”. O abalo emocional que ele sofreu está incluído na
lista de doenças de notificação compulsória do MS e integra agora as
estatísticas epidemiológicas de morte do trabalhador.
A proibição de circular na universidade onde realizou a maior parte
de sua trajetória de vida e a humilhação que sofreu levaram-no à decisão
de acabar com o seu sofrimento, afirma Edna. Segundo ela, as
circunstâncias da morte do reitor tiveram imediata repercussão entre os
profissionais que integram a área da saúde do trabalhador, entre
médicos, psicólogos, enfermeiros, psiquiatras, assistentes sociais,
antropólogos etc. “Nós discutimos o caso amplamente em congressos,
reuniões e fóruns virtuais da área. Para o conjunto de técnicos ficou
claríssimo que se tratava de acidente do trabalho: um transtorno mental
que levou ao óbito”. Quem atua nessa área compreende que na nossa
sociedade o trabalho é a identidade da pessoa e se confunde com a sua
própria vida, explica. “Tirar o trabalho de alguém é, portanto, tirar a
sua vida. E nós sabemos que a universidade era a vida do reitor”, pontua
a médica que, como Cancellier, fez toda sua formação e carreira
profissional na UFSC, desde que saiu do município de Tubarão, no Sul de
Santa Catarina, aos 16 anos. Graduada em Medicina em 1986, fez mestrado
em Ergonomia e Doutorado em Engenharia de Produção na mesma
universidade, buscando preencher o aspecto interdisciplinar da sua
especialidade.
Embora conterrânea do professor Cancellier, Edna só o conheceu antes
da sua eleição para reitor, quando foi chamada para contribuir com o
processo de implantação de uma equipe de Saúde do Trabalhador. “O
ambulatório de ST do Hospital Universitário foi criado por iniciativa e
incentivo de sua gestão”, reconhece, lembrando que o reitor era
entusiasta de projetos que fortalecessem o cuidado com as condições do
ambiente do trabalho a fim de evitar casos de doenças psíquicas e
emocionais ligadas ao estresse e à depressão. “Ele sempre nos dizia:
trabalhem, mas preservem sua alegria. O trabalho não pode gerar
sofrimento”, conta Maria de Lourdes Borges, secretária de Cultura e
Artes da UFSC.
Com esse nexo, o suicídio do reitor entra para os dados
epidemiológicos do Ministério da Saúde como morte provocada por abalo
emocional resultante de assédio moral insuportável. Embora já fosse
conhecida nos fóruns restritos ao campo da medicina do trabalho, a
iniciativa da servidora manteve-se no anonimato até há pouco. Na véspera
da realização da “Aula Pública Resistência ao Abuso de Poder e ao
Fascismo”, realizada na Universidade Federal de Santa Catarina no dia 27
de novembro, tomei conhecimento da notificação através da assistente
social do Fórum da Justiça da Trindade, Maris Tonon, integrante, como
eu, do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção. No dia seguinte, ao
discursar em nome do Coletivo que promovia o evento, revelei a atitude
da médica, que não estava na plateia, mas foi muito aplaudida pelo
auditório lotado do Garapuvu, em Florianópolis. Assista ao
vivo https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/643048125819068/
Hoje, ao completar dois meses do falecimento de Cancellier, contatei
Edna por telefone na cidade de Joinville, onde ministra um curso na área
de saúde. Em uma longa conversa, a médica se disse feliz pelo
acolhimento de sua iniciativa e desejou que ela se desdobre em outras
ações capazes de restabelecer a justiça e a verdade para o professor.
Lembrou que as consequências jurídicas ou penais da notificação competem
a outras instâncias, mas a tipificação do óbito para que sejam tomadas
providências no sentido de evitar novos casos são de sua atribuição.
“Ainda que isso não devolva a vida do reitor, é meu dever fazê-lo”.
Como profissional da área, esclarece que agiu em nome da sua
obrigação ética e profissional de trazer as causas do óbito à luz dos
órgãos públicos responsáveis pela saúde do trabalhador. “São as
estatísticas que monitoram as ações na área e geram intervenções capazes
de prevenir outros acidentes de trabalho dessa natureza”, explica.
Hoje, a cada dez trabalhadores atendidos pelo Sistema Integrado de
Atenção à Saúde do Servidor na UFSC, sete apresentam sintomas de
depressão ligados ao falecimento trágico do reitor, segundo informação
também da assistente social Maris Tonon. Outros cinco casos de suicídio
ocorreram na UFSC após o falecimento do reitor, mas não se pode afirmar
que haja relação com a morte de Cancellier porque as circunstâncias e
causas ainda estão sendo estudadas.
Responsável também pelos estudos e pelas pesquisas em torno dos danos
à saúde do trabalhador catarinense provocados pelo Amianto, que
determinaram a proibição do seu uso em Santa Catarina, a médica diz que
não cabe a ela entrar no mérito da culpa. Revela, contudo, que ficou
chocada com a manifestação das associações corporativistas de juízes e
delegados ao defenderem a normalidade dos procedimentos abusivos da
delegada e da juíza sem sequer citaram o suicídio como consequência da
operação.
Uma fonte da reitoria, que prefere não se identificar, assegura que
antes de tomar a decisão, Cancellier recebeu, por canais indiretos,
informação do Ministério Público Federal de que seu retorno ao cargo de
reitor não seria mais autorizado. Como professor de direito
administrativo, nesse momento ele teria compreendido também que não
havia condições morais de retornar ao exercício em sala de aula quando
era acusado pela massa ignara de um desvio de verbas que sequer ocorrera
na sua gestão. Cercado de todos os lados pela mídia, pela Polícia, pela
Justiça Federal, o reitor não viu chances para provar sua inocência no
pesadelo, digno de um romance de Kafka, em que fora enredado pelo
corregedor da UFSC. Sem provar nada contra seus indiciados, sem
retificar as informações distorcidas que inflamaram o ódio na opinião
pública e midiática, sem pedir desculpas aos familiares pela perda
traumática de um irmão e de um pai inocente, a “hollywoodiana” operação
Ouvidos Moucos conseguiu apenas arrancar do reitor o único bem que ele
tinha, além de um apartamento de classe média: seu trabalho e sua vida.
DELEGADA MACARENA: PROCESSADA E PROMOVIDA
A notificação do suicídio do reitor como acidente do trabalho traz um
instrumento jurídico fundamental para os processos futuros ou vigentes
de responsabilização do Estado brasileiro por essa morte e pelos danos
irreparáveis causados pela perda à família e à comunidade universitária.
Exemplo disso, é a denúncia apresentada no dia 31 de outubro pela
família ao Ministério da Justiça contra a delegada federal Érika Marena
pedindo a sua responsabilização administrativa, cível e criminal pelos
episódios de abuso de poder que levaram ao suicídio do reitor.
Entregue ao ministro Torquato Jardim, a denúncia também alega
violação da lei do sigilo de operações policiais antes da sua conclusão,
argumentando que ao convocar a mídia para cobrir a prisão, a delegada
feriu o dever de proteção à imagem de um cidadão que não era sequer
investigado ou citado no processo e jamais havia respondido a um
processo administrativo em sua carreira. Conforme a carta-denúncia, a
delegada descumpriu a própria determinação da juíza Janaína Cassol, que
autorizou o pedido de prisão sob a condição de que a imagem da
universidade e dos envolvidos fosse resguardada e que o sigilo da
operação fosse mantido até a sua conclusão.
Até agora, o irmão Acioli Cancellier, que assina a representação, bem
como os advogados da família, não receberam resposta do Ministério da
Justiça. Ao contrário, no dia 28 último, a ex-coordenadora da Lava-Jato
em Curitiba foi nomeada ao cargo de superintendente da Polícia Federal
do Estado do Sergipe pelo novo diretor geral da PF, Fernando Segóvia, o
que configura uma “premiação” ambígua, típica dos aparatos de repressão
brasileiros historicamente negados ao reconhecimento dos seus erros e
crimes perante as vítimas. Ao mesmo tempo em que recebe uma “promoção”, a
delegada também é afastada do foco do escândalo na Superintendência da
PF em Santa Catarina, onde os desastres de sua atuação conseguem ser
unanimidade entre os setores de esquerda e os que apoiaram o impeachment
de Dilma. É o caso do procurador geral do Estado, João dos Passos
Martins, que condenou a prisão do reitor como um caso típico de afronta
ao Estado de Direito, e emitiu nota pública se manifestando pela punição
dos agentes responsáveis. “Limitar o poder é condição básica da
democracia e do direito”, afirmou durante a Aula Pública.
O caso do reitor pode ser analisado sob a ótica do mal no Direito,
argumentou a filósofa Maria de Lourdes Borges, ao falar sobre seus
projetos futuros de investigação durante a defesa do seu Memorial para o
cargo de professora titular do Curso de Filosofia da UFSC, no dia 29 de
novembro. Presidente da Associação Brasileira de Filosofia Kantiana e
especialista em Hegel, a professora afirmou que podem ser vistos como
requintes de crueldade a prisão espetacularizada por mais de cem agentes
da Polícia Federal, o fato de um cidadão desarmado e sem antecedentes
criminais ter sido algemado nas mãos e acorrentados nos pés, submetido a
revista íntima, despido e humilhado durante duas horas em frente aos
outros presos e encarcerado num Presídio sem a constituição de denúncia e
sem o direito à defesa. Esses fatos abusivos indicam, segundo ela, o
exercício do mal pelos aparatos
policiais. https://www.facebook.com/raquelwandelli/videos/1556866457739067/
Agasalhando sem nenhum cuidado acusações de que estava atrapalhando
as investigações imputadas pelo corregedor Rodolfo Hickel do Prado (que,
ao contrário do seu acusado, apresentava antecedentes por crime de
calúnia e difamação), a Polícia e a Justiça Federal trataram um homem de
ficha limpa como prisioneiro de guerra. Essa figura analisada pela
filosofia do direito refere-se ao sujeito animalizado e judaizado diante
da opinião pública incitada ao ódio pelo poder. Em nome da necessidade
do coliseu de satisfazer sua fome de violência, toda injúria física e
tortura psicológica contra o prisioneiro pode ser legitimada. Não apenas
a supressão dos seus direitos constitucionais à defesa, mas a violação
do seu corpo e da sua dignidade.
Nota do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção
Pela apuração imediata das responsabilidades civis e criminais: há dois meses morria o professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, vítima de abuso de poder!
Mais de dois meses depois da espetaculosa operação “Ouvidos moucos”,
protagonizada pelos agentes públicos Polícia Federal e Ministério
Público Federal, sob a chancela da Justiça Federal, e precisamente 60
dias após a morte do professor Cancellier, reitor da Universidade
Federal de Santa Catarina, um silêncio cúmplice e profundo das
autoridades públicas do estado se faz sentir, na comunidade
universitária e sociedade em geral.
Prevalece até aqui a impunidade e nenhuma ação concreta de apuração e
investigação de responsabilidades foi instaurada contra os agentes do
fascismo. Ademais, outros cinco professores e um técnico-administrativo
continuam banidos da UFSC: Marcos Baptista Lopez Dalmau, Gilberto de
Oliveira Moritz, Rogério da Silva Nunes, Eduardo Lobo e Marcio Santos
(professores); Roberto Moritz da Nova (funcionário da FAPEU). Todos
tiveram suas vidas expostas e foram julgados e condenados pelo tribunal
da mídia tradicional, parceira e cúmplice, desde as primeiras horas da
manhã, da PF, MPF e Justiça Federal.
O Coletivo Floripa contra o Estado de Exceção vem à público exigir
que as autoridades constituídas de Santa Catarina, a saber o governo
estadual e os deputados estaduais, ajam no sentido de instaurar o devido
processo legal de apuração de responsabilidades das autoridades
envolvidas no flagrante abuso de autoridade e ruptura do Estado
Democrático de Direito.
Na Sessão Solene fúnebre do Conselho Universitário da UFSC do dia 03
de outubro, o governador em exercício, Eduardo Pinho Moreira, assumiu
como posição oficial a nota emitida pelo Procurador Geral do Estado,
João Martins dos Passos Neto: “Por isso, respeitado o devido
processo legal, é indispensável a apuração das responsabilidades civis,
criminais e administrativas das autoridades policiais e judiciárias
envolvidas”.
Em recente Sessão na Assembleia Legislativa de Santa Catarina
(Alesc), em homenagem ao reitor morto, o desembargador e professor da
UFSC, Lédio Rosa de Andrade, também cobrou uma posição do Executivo
estadual e do próprio parlamento catarinense. É preciso investigar quem
autorizou a transferência do reitor e dos demais presos da
Superintendência da Polícia Federal para o Presídio de Florianópolis, no
qual foram submetidos a toda sorte de humilhações. Qual autoridade
autorizou a entrada do professor Cancellier e dos demais presos no
sistema prisional de SC? É sempre bom lembrar: a “espetacular” e
desastrada operação mobilizou 105 policiais para prender seis
professores e um técnico-administrativo da UFSC. A PF os chamou, leviana
e irresponsavelmente, de “quadrilha”, que havia “desviado R$ 80 milhões
do programa de ensino à distância”. Uma mentira que o site da Polícia
Federal mantinha no ar, até dias atrás, porque na verdade esse era o
montante do programa em mais de 10 anos. O suposto desvio, ainda sob
investigação, teria sido, algo entre R$ 300 a R$ 500 mil, em período
anterior à gestão de Cancellier.
Enquanto a comunidade universitária e a sociedade aguardam
providências concretas do governo de SC e da Assembleia Legislativa, num
gesto de escárnio, a delegada responsável pela tal operação é
“severamente promovida” para o cargo de Superintendente da Polícia
Federal, no estado de Sergipe. É mais uma agressão vil aos familiares,
amigos, colegas de profissão que continuam a luta em defesa da Autonomia
Universitária e do Estado Democrático de Direito.
Contra todo tipo de golpe e perda de direitos!
Pela aprovação urgente da Lei Cancellier de Abuso de Autoridade na Câmara Federal!
Pelo absoluto respeito aos Direitos Individuais e Coletivos assegurados na Constituição!
Em defesa da UFSC, da Autonomia Universitária, da Soberania Nacional e do Estado Democrático de Direito!
Não ao Estado de Exceção!
Florianópolis (SC), 02 de dezembro de 2017.
NOTA DO COLETIVO FLORIPA CONTRA O ESTADO DE EXCEÇÃO
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