São Paulo, segunda, 30 de março de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Sobre o conceito de inimigo interno
Os filósofos tentaram, durante a história do Ocidente, atenuar a violência política. Ernst Bloch, num escrito sobre o direito e a dignidade humana, a certa altura, perde a contenção e chama Carl Schmitt, o advogado nazista, de "prostituta". Várias razões tinha o escritor de "Princípio Esperança". O jurista germânico definiu as bases de uma prática estatal assassina: a distinção entre "amigo" e "inimigo". Desde Platão, o alvo da bem-ordenada república era fazer com que seus membros fossem unidos por laços inquebrantáveis de amizade. O governante sábio, ao contrário do tirano, seria como o cão de guarda: dócil para os da casa, assustador para os estranhos. Cada indivíduo, nesse clima, deve sentir as dores e as alegrias da cidade como suas. A pólis, em resposta, vibra com as lágrimas ou os risos de todos os componentes do corpo político. O inimigo, assim, jamais é interno, salvo em caso de luta civil ou de tirania. O "grande feito" de Carl Schmitt, num texto de 1938, foi dar sentido à doutrina totalitária que afirmava a guerra total no século 20, incluindo as lutas internas e internacionais, superando a antiga distinção entre combatentes e não-combatentes. Nela, "mesmo setores extramilitares (economia, propaganda, energias psicológicas e morais dos não-combatentes) são envolvidos na contraposição hostil", conforme a tradução italiana de G. Miglio. Resultado genocida: judeus, ciganos, comunistas, liberais, católicos que desobedeciam aos pactos entre o Vaticano e Hitler, protestantes que lutaram contra o racismo, doentes em geral, todos os que estavam fora da "normalidade" imaginada para o "saudável povo alemão", mesmo sem uniforme de guerra, foram declarados "inimigos". Contra eles, todas as armas -a economia, a propaganda, as energias psicológicas e morais e sobretudo a força física (campos de concentração, fuzilamentos sumários)- foram benditas. Essa é a causa do qualificativo atribuído por Bloch a Schmitt: sua prostituição residiu em pôr ao alcance da canalha fascista "argumentos" que degradavam o direito e a dignidade humana. Com o fim do segundo conflito mundial e o advento da Guerra Fria, a tese amaldiçoada do "inimigo generalizado" germinou no leste e no oeste, tornando a vida civil um inferno. Nos EUA ou na União Soviética, líderes e massas promoveram a caça e a morte dos "inimigos". Estes, de preferência, eram os opositores. Mas também integrantes do poder, caídos em desgraça, se incluíam em seu número. No Brasil, tivemos os primos de Carl Schmitt, como o famoso "Chico Polaca", cuja sapiência, após servir o Estado Novo, foi concedida aos ditadores, nos monstruosos "atos institucionais". Sob a ditadura castrense, sofremos torturas, mortes, perseguições à imprensa, violências contra sacerdotes católicos e pastores protestantes e cassação de liberais, em nome da luta contra o "inimigo interno". Julgávamos restrita ao máximo essa doutrina sanguinária no regime civil de hoje. Nos enganamos. Em data recente, um parlamentar, adepto desse ideário, foi promovido, por meio de clara barganha política, ao cargo de vigilante dos direitos humanos. Na mesma hora, um médico que traiu o juramento de Hipócrates, por colaborar com o crime hediondo da tortura, foi prestigiado pelo governo. D. Paulo Evaristo Arns, símbolo da amizade entre cidadãos em nosso tempo, ao criticar esse retorno ao passado, recebeu insultos do "guardião dos direitos humanos", segundo os valores do Congresso Nacional. O insuportável tornou-se pior quando o presidente da República conspurcou a democracia ao repetir, diante de jovens e de cidadãos aos milhões, a mesma tese levantada por Schmitt e pelos "juristas" a soldo dos generais. Criticar o prestígio concedido pelo governo aos torturadores é próprio dos "inimigos", afirmou o homem que deveria ser o supremo magistrado. Imagino que nome esse seu ato receberá dos historiadores e filósofos do futuro. Os do presente, com aquele grito de guerra, estão ameaçados de morte, física ou moral. Roberto Romano, 52, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). |
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