Flores

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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Em defesa do cinismo

Friday, November 14, 2003
 
5. Em defesa do cinismo, Roberto Romano (Folha de SP,
25/4/2001)

Nos ultimos tempos da Republica brasileira, os eventos politicos atingiram  um grau inédito de corrosão. De momentos assim, so' me lembro os que antecederam o golpe de 64. Mas hoje as coisas sao mais graves. Nao e' o Executivo nem sao os quarteis a ameaca ao Parlamento, mas a sua autocorrosao. Os analistas que procuram descrever os costumes de nossos representantes no Congresso sempre repetem uma palavra magica.  A atitude e a fala dos parlamentares e dos agentes do governo, para nao falar nas togas, tem sido alcunhadas de "cinicas". Em defesa da verdade
factual e historica, e' preciso dizer que isso e' uma injustica gritante.

Os cinicos receberam tal apelido (do latim "cynicus", de origem grega, para designar o cachorro) porque mordiam como caes ferozes os hipocritas e os poderosos. O modo cinico de agir e' o exato oposto do empregado pelos senhores do Parlamento. O bom padre Vieira, no atualissimo "Sermao do Bom Ladrao", elogia o cinico Diogenes, "que tudo via com mais aguda vista do que a dos outros homens", quando ele, apontando o dedo para os "ministros da justica" que levavam 'a forca uns ladroes, "comecou a bradar: "La' vao os ladroes grandes enforcar os pequenos" ".

Quem vive em tempos de Nicolau dos Santos Neto percebe a justeza dessas frases do jesuita austero, inspiradas na conduta cinica. Aqueles filosofos ensinavam que a alma humana e' imortal, sendo preciso bem administra-la, pois a sua estrutura, embora mais elevada do que a do corpo, possui uma imensa fragilidade. O autoconhecimento mostra-se estrategico, bem como a vida em perfeita amizade ("um amigo e' uma so' alma em dois corpos"). Dentre os empecilhos 'a boa amizade, ensinam os cinicos, estao a lisonja, a inveja, a ignorancia e as humilhacoes reciprocas. Contra elas, o treino ascetico e' fundamental. Quem se acostuma a bajular o proprio corpo logo estara' apto, na alma, a ser bajulado pelo primeiro inimigo disfarcado.

A felicidade so' pode ser atingida se resultar da mais rigorosa justica e da mais rigorosa liberdade. Nao depender dos confortos ilusorios trazidos pela riqueza e pelo mando politico e' o modo de ser livre e de conquistar a plena autarquia, o dominio sobre si mesmo. Sem ela, a escravidao ronda as almas e os corpos. Assim falavam os cinicos. Disso resulta a franqueza da lingua. A palavra livre,segundo os cinicos, e' a mais bela das conquistas humanas. Nem preso aos ricos e poderosos nem sujeito 'a multidao, o verbo consciente recusa a lisonja pessoal e a demagogia. Do mesmo cinico Diogenes e' a frase famosa: "Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se nao disse uma bobagem".

A liberdade assim percebida se baseia na ascese (leia o belo texto de Goulet-Caze', M.O: "L'Ascèse Cynique"). A virtude ascetica fez o filosofo jogar longe o seu caneco ao ver um menino bebendo da fonte com a palma da mao.  Apenas o necessario 'a vida, sem luxos, sem pedantismos e sem laureis.
Essa e' a doutrina cinica. Os cinicos ajudam-nos, ate' hoje, a romper com a hipocrisia da fala "politicamente correta". Tamanha potencia da virtude fez o pensador gritar ao poderoso Alexandre: "Saia dai. A tua presenca me retira a luz do sol". Ah, se os nossos politicos e "democratas" fossem de fato cinicos! Todos os ensinamentos dessa escola resistiriam ao tempo e aos regimes politicos.

O prisma negativo que essa escola recebeu foi dado justamente pelos ardilosos donos do poder, politico ou religioso. A calunia perdura ate' os nossos dias, em proveito dos inimigos da disciplina, da liberdade de atos e palavras e dos que amam a riqueza (sobretudo a publica) para seu conforto e ostentacao. O cachorro e' simbolo, na cultura grega, da amizade politica mais nobre. Platao afirma que os dirigentes da republica devem ser como os caes: gentis e leais para com os de casa; ferozes contra os inimigos. E o tirano seria como o lobo que devora os bens dos cidadaos em proveito
proprio. Dai a tese de Jean Bodin sobre a tirania: "Tirano e' o que usa os bens dos suditos como se fossem seus". Vivemos em continua tirania neste pais.

Tudo entre nos esta' invertido e pervertido. A comecar pelo tom errado que damos 'a uma das mais rigorosas eticas filosoficas do Ocidente, a cinica. Os politicos, lobos que dominam o picadeiro de Brasilia, se distanciam dos cinicos. Eles sao hipocritas e corruptos, amolecidos nos costumes e luzidios de riqueza roubada. Se nao temos a coragem dos cinicos, pelo menos nao aceitemos as calunias contra eles, que apenas servem para absolver os seus alvos, os relaxados  na moral que enodoam as instituicoes publicas brasileiras.

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