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Unicamp tem primeiro professor indígena
Docente participa de disciplinas da graduação e da elaboração de dicionário de dialeto Kaingang falado por apenas 5 pessoas
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A
listagem de disciplinas da graduação em Linguística do Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp traz algo inédito neste segundo
semestre de 2017: o nome do professor indígena Selvino Kókáj Amaral. Ele
é um dos responsáveis pelas disciplinas Línguas Indígenas I e Tópicos
de Línguas Indígenas. Selvino foi contratado por meio do “Programa
Professor Especialista Visitante em Graduação”, da Pró-Reitoria de
Graduação (PRG), e dá aulas sobre sua língua materna, o Kaingang,
aprendido em casa, na comunidade de Guarita, no Noroeste do Rio Grande
do Sul.
Como professor visitante, Selvino
também ministra o curso extracurricular “Língua Kaingang viva: pesquisa e
prática em uma língua Jê”, além de palestras abertas ao público e
reuniões de trabalho com docentes e alunos. Outra participação
importante do indígena na Unicamp é a finalização de um dicionário
escolar do dialeto Kaingang paulista, que já vem sendo elaborado pelo
grupo de pesquisa liderado pelo docente Wilmar D’Angelis.
O dialeto é falado atualmente por apenas cinco indígenas nas aldeias de Icatu (município de Braúna) e Vanuíre (município de Arco-Íris),
no Oeste Paulista. Havia seis falantes do dialeto, até o falecimento de
Dona Lídia Iaiati de Campos, em julho. Dias antes a equipe de
pesquisadores esteve na aldeia e fez os últimos registros dos
ensinamentos da senhora indígena.
No vídeo abaixo, as duas últimas mulheres
falantes nativas do Kaingang (Dona Maria Rita, que fala em pé, e Dona
Gavile, sentada). Quem opera a câmera é um jovem kaingang do RS,
estudante de Letras na UFSM, chamado Josias Pó Vitorino. As outras
pessoas que aparecem são: o professor Wilmar D’Angelis, a acadêmica de linguística do IEL Mariana Freitas
A contratação do professor Selvino foi defendida pela Coordenação do Bacharelado em Linguística, a partir de proposta do professor Wilmar D’Angelis, que divide a responsabilidade com o indígena pelas disciplinas da graduação. Líder do grupo de pesquisa “InDIOMAS - Conhecimento de Línguas Indígenas e Línguas de Sinais na relação Universidade & Sociedade”
ele coordena as linhas de pesquisa "As línguas do ramo Jê Meridional e
seus dialetos" e “Fonologia e ortografia de línguas indígenas”. Também
coordena o "Projeto Web Indígena", em parceria com a ong Kamuri, voltado
à inclusão digital proativa de línguas e comunidades indígenas. O
projeto, que também tem a participação de Selvino, lançou em 2008 o site “kanhgag.org” (o primeiro totalmente em língua indígena no Brasil0.
A língua Kaingang é a terceira mais
falada entre os indígenas também porque a etnia é a terceira com maior
população no Brasil, concentrada no Rio Grande do Sul. Em segundo lugar, de acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (Funai),
está o povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul e em primeiro os
Tikuna, residentes no Amazonas. O professor Wilmar afirma que um pouco
mais da metade da população Kaingang é falante da língua nativa.
Há um grande interesse pela língua
Kaingang por causa das suas características, especialmente a fonética. O
Kaingang pertence a família linguística “Je”, uma família que só ocorre no território brasileiro. “A língua tem uma fonologia
bastante rica, com padrões silábicos tão complexos quanto o português”,
ressalta Wilmar. Porém aprender Kaingang pode ser bem mais difícil para
quem fala português do que aprender tupi, observa o linguista. Do ponto
de vista da pronúncia e dos padrões sonoros, o Kaingang é uma língua
diferente”. Ela tem muito mais vogais, com padrões de funcionamento e
combinações específicas.
“Não é uma língua de flexão como português ou como são, parcialmente,
as línguas tupi. São importantes na língua Kaingang as marcas de
aspecto que levam em conta os formatos dos objetos e suas posições
espaciais, por exemplo”
Para Selvino as disciplinas na Unicamp
não têm o objetivo de ensinar a falar o Kaingang, mas pensar sobre as
características da língua. A experiência na Universidade ele também vai
levar para as aldeias, nas aulas que oferece nas comunidades indígenas.
“Eu sempre trabalho com palestras no Rio Grande do Sul e em algumas
comunidades, com alunos que estão entrando nas universidades federais”,
complementa. O professor indígena aprendeu o português somente aos 12
anos.
O método de trabalho de Selvino segue a maneira como o professor Wilmar
afirma gostar de trabalhar, que é de forma colaborativa. “Nós vamos
focar os cursos em aspectos da língua, mas também queremos construir uma
pesquisa colaborativa. A partir de determinado momento, os alunos vão
escolher tópicos sobre a língua e o professor vai ser o falante que eles
irão entrevistar ao longo do próprio curso para produzir hipóteses e
tirar conclusões sobre aspectos da língua”.
Dicionário
A pesquisa para a elaboração do
dicionário Kaingang paulista ganhou novo fôlego com a participação do
professor Selvino. O projeto vem desde 2013, e já contou com apoio da
Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) da Unicamp,
além da própria Funai e da ong Kamuri.
“Foram os próprios indígenas que nos
pediram um dicionário, mas depois começamos a fazer um trabalho mais
amplo porque os professores indígenas aqui de São Paulo não falam a
língua com falantes nativos, só os velhos”. O grupo de trabalho fez
várias oficinas junto com os indígenas para a produção do dicionário.
“O processo de trabalho foi afinar a ortografia, melhorar a pronúncia e
assimilar o conhecimento dos professores indígenas, sempre junto com os
falantes mais velhos”.
A ideia é elaborar um dicionário escolar que
possa ser usado para ensinar as crianças. “É uma maneira de registrar e
conservar o que for possível desse dialeto de São Paulo que só tem
alguns falantes. É um dialeto em desaparecimento e sua sobrevivência
depende desse registro”, pontua.
O linguista considera um ganho para a
Universidade a presença de Selvino como docente no IEL. “Temos a
possibilidade de formar pesquisadores que trabalhem junto dos falantes
indígenas na perspectiva que eu defendo e pratico, que é a da pesquisa
colaborativa. As comunidades indígenas e as línguas indígenas não são
nossos objetos de pesquisa, mas nossos parceiros”.
O professor também ressalta a
oportunidade de aproximar um pesquisador indígena do universo acadêmico.
“São poucos indígenas que conseguem fazer mestrado, doutorado. É um
caminho muito longo, difícil e complicado para eles e não é necessário
todo esse caminho para uma pessoa que tem a intuição linguística como o
Selvino tem. Na Unicamp ele também está se formando e desenvolvendo
estratégias para continuar o trabalho garantir uma continuidade,
conquistando cada vez mais autonomia para falar e pensar a sua própria
língua”.
Silvino tem o projeto de escrever seu
próprio livro também e será sobre a linguística Kaingang. “Minha
formação não é acadêmica, mas é intelectual mesmo. A experiência serve
de preparação para que eu possa escrever o meu livro que poderá servir
tanto para as universidades como para as escolas de Ensino Médio e
Fundamental”.
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