Direto da Ciência.
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Investimentos públicos e privados para ciência: não é bem assim, Sardenberg
Alguns equívocos do comentarista econômico da GloboNews ao falar sobre os recursos necessários para a pesquisa no Brasil
–
MAURÍCIO TUFFANI,
Editor
MAURÍCIO TUFFANI,
Editor
É necessário desfazer uma interpretação equivocada e recorrente sobre
a realidade do investimento em ciência e tecnologia nos países
desenvolvidos. De acordo com essa visão, praticamente toda a pesquisa
nas universidades e centros de pesquisa nesses países seria financiada
por recursos privados. Um exemplo dessa compreensão errônea foi um
comentário do jornalista Carlos Sardenberg, no Jornal das Dez, da GloboNews, na quarta-feira (29), após a reportagem “Corte de 44% no orçamento do governo pode interromper pesquisas científicas”.
Concordo plenamente com a primeira parte da fala do comentarista econômico, que transcrevo a seguir. (Confira a partir de 2min no vídeo da GloboNews.)
As universidades federais e os
centros de pesquisa têm que passar por uma reforma estrutural, por um
modo diferente de ver as coisas, e tratar de procurar: um, mais
eficiência em seu funcionamento e, segundo e mais importante, buscar
outras fontes de financiamento que não o tesouro.
Na sequência, ele acrescenta a interpretação enganosa.
Como, por exemplo, as universidades
americanas, as universidades europeias, que vão buscar recursos no setor
privado, vendem pesquisas, obtêm financiamento privado para pesquisa e
etcetera. Com se faz, por exemplo, em Israel, que é um centro
tecnológico muito avançado e que seus institutos vivem de dinheiro
privado doado ou financiado de algum modo.”
Uma coisa é uma coisa
É verdade que nos países mais ricos e em alguns emergentes a maior
parte do investimento na atividade conhecida como pesquisa e
desenvolvimento (P&D) vem da iniciativa privada, como mostra o
relatório da Unesco de março deste ano “Global Investments in R&D”
(P&D em inglês). Na Europa, por exemplo, em mais da metade dos
países, pelo menos 40% dos recursos para P&D são da iniciativa
privada, como mostra o seguinte quadro desse estudo (pág. 5).
O relatório indica para o Brasil 40% de
participação do setor privado em investimentos em P&D em 2014 (pág.
4). No caso de Israel, país apontado como exemplo por Sardenberg, o
documento indica cerca de 37% de participação da iniciativa privada, e
de pouco menos de 80% para Japão, China e Coreia do Sul (pág. 6).*
Assim como os “Main Science and Technology Indicators” da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – que indicam 37,05% de participação privada em investimentos nacionais em P&D em 2013 como dado mais recente de Israel –**,
esses indicadores econômicos do Instituto para Estatística da Unesco
estão entre as referências mais confiáveis sobre os investimentos a que
Sardenberg se refere.
Pesquisas de empresas
No entanto, esses dados não englobam apenas os recursos para a
pesquisa desenvolvida por universidades e instituições de pesquisa. Eles
incluem também, e predominantemente em alguns países, os investimentos
para a P&D realizada pelas próprias instituições privadas –
atividade que aqui no no Brasil ainda é muito restrita – e que, aliás,
para isso contratam pesquisadores, inclusive com doutorado,
pós-doutorado e outras titulações.
No caso dos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 61% do investimento
em P&D em 2014 foi da iniciativa privada. No entanto, essa
atividade envolveu também a pesquisa realizada por pelo chamado complexo
industrial-militar. E, diga-se de passagem, para gerar produtos que, no
final das contas, acabarão sendo comprados pelo governo federal.
Dinheiro público
Outro exemplo de grande investimento privado nos EUA em P&D é o
da indústria farmacêutica. No entanto, grande parte da pesquisa em
medicina e saúde desenvolvida em universidades privadas nos Estados
Unidos é custeada a fundo perdido pelos Institutos Nacionais de Saúde
(NIH), do governo federal, sem o qual não teriam sido possíveis grandes
iniciativas, como o Projeto Genoma Humano durante as duas décadas finais
do século 20.
Por falar nas universidades particulares dos EUA, é importante deixar
claro que os recursos obtidos por essas instituições por meio de
cobrança de mensalidades de alunos não são nem de longe suficientes para
bancar pesquisas. Nem mesmo com doações de ex-alunos milionários seria
possível para universidades como Harvard, Yale, Princeton, Stanford e
outras custearem suas pesquisas.
Pesquisa básica
Outro aspecto importante da atividade de P&D financiada por
instituições privadas é que ela é essencialmente voltada para aplicações
tecnológicas e não envolve uma parte muito grande da pesquisa básica.
Essa é uma atividade que abrange desde trabalhos que dispensam
laboratórios, como na matemática pura, a estudos que dependem de
estruturas de grande porte, como fazendas experimentais, centros
espaciais e outras, inclusive o Grande Colisor de Hádrons (LHC), na
Suíça, que custou R$ 10,3 bilhões e levou mais de 20 anos para ser
construído.
No Brasil, entre as grandes iniciativas de C&T ameaçadas pelo
corte de recursos está a maior obra da ciência do país, o Projeto
Sirius, do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM). A
própria existência dessa instituição também está em risco. É o que
destacou a reportagem “Crise ameaça maior obra da ciência brasileira”, também de Herton Escobar, no Estadão, que afirmou:
O prejuízo disso seria tremendo para a
ciência brasileira. O CNPEM é um conglomerado de quatro importantes
laboratórios nacionais — de Biociências (LNBio), Bioenergia (CTBE), Nanotecnologia (LNNano) e Luz Síncrotron (LNLS)
—, e todos eles funcionam como “facilities”. Ou seja, são laboratórios
dotados de equipamentos caríssimos, de alta tecnologia, que servem a
toda a comunidade científica brasileira, e também à indústria nacional,
para diversas aplicações científicas e tecnológicas. Centenas de
projetos e milhares de cientistas seriam prejudicados com a paralisação.
P&D não é tudo
Como bem esclareceu a economista Maria Margareth Negrão Pinto em 2001, em sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília,
É de extrema importância o
estabelecimento da diferença entre indicadores de C&T e indicadores
de P&D (…). C&T engloba, além de P&D, todas as demais
atividades que, embora não possam ser classificadas como pesquisa, são
imprescindíveis para a sua realização. Pode-se dizer assim que C&T =
P&D+ACT, sendo C&T = Ciência e Tecnologia, P&D = Pesquisa e
Desenvolvimento e ACT = Atividades Científicas e Técnicas.*
Ainda assim…
Na verdade, mesmo nesses países onde a iniciativa privada já responde
por grande parte dos dispêndios financeiros em P&D, tem crescido
nos últimos anos a convicção da necessidade de aumentar a participação
do poder público nesses investimentos, como mostra o recente “Science|Business Report”,
publicado em junho pelo programa Horizonte 2020 da União Europeia.
Referindo-se à P&D como pesquisa e inovação (P&I), o documento
afirma (pág. 4):
A P&I financiada pelo governo
também promove para a Europa vários objetivos desejáveis, embora menos
quantificáveis. Permite mudanças estruturais para uma economia e uma
sociedade mais intensivas em conhecimento, aumentando a competitividade
internacional e o crescimento da produtividade e gerando empregos de
alta qualidade. Isso promove padrões de vida mais elevados e contribui
para o progresso de sociedades democráticas e abertas. Promove a
cooperação internacional para reunir recursos e para conectar e alinhar a
ação em direção aos objetivos da UE. Ela melhora a resiliência global e
a sustentabilidade, fornecendo novas ferramentas para proteger o meio
ambiente, melhorar a saúde e promover o bem-estar social no próprio país
e no exterior.
Voltando o filme
Não vou aqui alongar a conversa com detalhes sobre o fato já amplamente divulgado de que justamente momentos de crise países desenvolvidos têm aumentado seus investimentos em P&D.
Vale destacar ainda outro equívoco relacionado à interpretação de
Sardenberg. Sua fala aconteceu em um quadro, dirigido pela âncora Renata
Loprete e com a participação de outro comentarista econômico, o
jornalista João Borges. Logo após descrever o cenário geral referente às
contas do governo federal para este ano, com o previsível déficit
primário da ordem de R$ 159 bilhões, e imediatamente antes de dizer o
que já foi mostrado acima, Sardenberg afirmou (confira a partir de 1min40s no mesmo vídeo da GloboNews):
Esses centros de pesquisa, as
universidades federais, essa reação deles de pedir mais dinheiro pra
Brasília não vai dar em nada porque não tem dinheiro. O dinheiro “tá”
acabando. “Tá” acabando porque está indo todo para essa parte
obrigatória do orçamento que é benefícios, previdência e pessoal.
Economia burra…
Não há dúvida de que o dinheiro está acabando e não dá para cobrir
tudo. No entanto, é preciso deixar claro que o recurso solicitado para
C&T não é “mais dinheiro”, mas cerca de 44% do que já havia sido
previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações (MCTIC) para 2017. E que a dotação total do MCTIC
corresponde a apenas 0,72% da Lei Orçamentária para toda a União, já
descontadas as transferências para estados e municípios, as operações de
crédito e o refinanciamento da dívida pública.
É por essa razão de escala que o próprio presidente da Financiadora
de Estudos e Projetos (Finep), o economista Marcos Cintra, afirmou que
“o contingenciamento está sendo feito da forma mais burra possível”,
acrescentando que “ciência e tecnologia são o substrato de qualquer
desenvolvimento econômico”, como informou a reportagem “Cortar recursos da ciência é economia ‘burra’, diz presidente da Finep”, de Herton Escobar, no Estadão.
… e criminosa
No que diz respeito ao MCTIC, “mais dinheiro” significa pouco menos
de R$ 2,2 bilhões, os tais 44% congelados. No entanto, para impedir a
autorização legislativa para a instauração de processo por corrupção
passiva contra o presidente Michel Temer, o governo distribuiu R$ 15 bilhões em programas e emendas em meio à barganha para compra de votos de deputados.
No final das contas, como eu já havia dito neste site, não passam de
conversa fiada todas as alegações governamentais sobre dificuldades do
atual momento da economia para desbloquear o mínimo necessário de
recursos para evitar o caos nas instituições de pesquisa.
Em tempo: já que a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou os
incentivos fiscais para desoneração de alguns setores da indústria, por
que o governo não começa a aplicar recursos para P&D para essas
empresas?
* Parágrafo acrescentado às 22h, omitido no texto original for falha de edição.
** Aposto entre travessões acrescentado em 1º/set às 3h59.
** Citado por Claudemir Gonçalves Liberal em “Indicadores de ciência e tecnologia: conceitos e elementos históricos” (Ciência & Opinião. Curitiba, v. 2, n. 1/2, jan./dez. 2005, p. 139).
** Aposto entre travessões acrescentado em 1º/set às 3h59.
** Citado por Claudemir Gonçalves Liberal em “Indicadores de ciência e tecnologia: conceitos e elementos históricos” (Ciência & Opinião. Curitiba, v. 2, n. 1/2, jan./dez. 2005, p. 139).
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