UMA QUESTÃO DE COSTUMES
Roberto Romano
Professor Titular de Filosofia Política e Ética, na UNICAMP
Quando falamos de educação para a cidadania, nos referimos imediatamente ao estudo. Trata-se de uma questão de costumes. E costumes são a matéria da ética. Quem deseja estudar, deve assumir uma ética da frugalidade severa, com um regime grave, sem ornamentos inúteis, sem pressa, sem escutar professores que adulam os alunos e seus pais. A ética recusa a lisonja, o regime a ser seguido requer disciplina e trabalho árduo. Esta advertência nos vem de Platão. A herança grega afirma que ensino e regime alimentar identificam-se. Uma comida engordurada, abundante e imprópria, abafa os talentos da inteligência. A pedagogia correta de corpos e almas resume-se no ditado grego: "educação ou alimento". Regime, na antiguidade e hoje, diz-se da dieta e do governo. Há no pensamento platônico um nexo entre ambos, mediado pela educação. A prática lisonjeira entre mestres e discípulos também ocorre, escreve o filósofo, entre governantes e governados na política licenciosa, um grave problema da democracia.
Permitam-me recordar algumas passagens platônicas, porque elas inserem-se diretamente no tema "educação e cidadania". No livro VIII da República, nas alturas das páginas 562, Platão descreve os costumes e o ensino na polis democrática. Afirma ter sido a cobiça de dinheiro e a negligência de outros elementos políticos e educativos a desgraça do governo anterior, o mando oligárquico. Agora, pergunta Sócrates, "porventura não é a voracidade daquilo que a democracia assinala como o bem supremo a causa da sua dissolução? De qual bem falamos? Da liberdade". É o desejo deste bem e a negligência do resto que faz mudar tal forma de governo, abrindo caminho para os tiranos. No trato democrático não se misturam com prudência água e vinho, dando-se uma bebida muito forte ao povo. Este, enternecido e embriagado de licença, diz que "servil" é quem obedece os magistrados. Neste regime, são engrandecidos e benditos os "governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes". Temos um nome para este parecer e não ser: demagogia. Permitam-me um ligeiro anacronismo. Ouvi no horário eleitoral "gratuito" um candidato a deputado berrando: "vocês são os patrões, nós os empregados". Conhecemos os costumes destes "empregados" quando passam os pleitos, sentimos sua arrogância, e corremos, como o fez Maquiavel, rumo à biblioteca, para ler Platão.
A licença demagógica invade todos os recantos da polis. Platão diz que tal atitude chega às casas particulares e atinge os animais domésticos. Nesta democracia, "o pai habitua-se a ter medo dos filhos, desejando ser igual a eles, o filho a ser igual ao pai, sem ter respeito ou receio dos pais, a fim de ser livre". Em tal regime, "o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em atos; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários". Num regime semelhante, a liberdade é tão ampla, "que as cadelas, conforme o provérbio, são como as donas e também os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados à uma liberdade completa e altiva, chocando-se sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saia do caminho; e tudo o mais é assim repleto de liberdade".
Termina o arrazoado platônico: "A resultante de todos esses males é tornar a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes ordena um mínimo de responsabilidade, eles se agastam e não a suportam; acabam por não se importar nada com leis escritas ou não escritas (...) a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles". Eis, afirma o filósofo, "o belo e soberbo começo de onde nasce a tirania (...) O excesso costuma ser respondido pela mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados"1
Não há muito do que rir nesse retrato da democracia ateniense, feito por Platão. A lisonja, base das relações inter-pessoais também possibilita, no Brasil, a imitação recíproca de governantes e governados, uns vendo os outros enquanto modelos de esperteza . Demagogia, falta de respeito pelas leis, tudo isto integra nossa vida política e educacional. Docentes há que afirmam "aprender com os alunos", deles recebendo "lições de sabedoria". Na "boa" sociedade, mulheres enricadas julgam-se livres quando exibem suas celulites durante o carnaval, nas televisões, servindo como escravas da vista e do erotismo alheios, além de proporcionarem lucro aos anunciantes de cerveja, etc.
Mas não só de "colunáveis" vive a polis licenciosa. Ela também suporta burros que atropelam os passantes. Se fizermos uma pequena alteração no texto platônico, onde lemos "burros", podemos enxergar espécimes da atualidade brasileira, justificando aquela imagem. O trânsito nacional está repleto de asnos no volante.Todos imaginam que não devem nem precisam obedecer as leis. A violência é maior se o idiota (no sentido grego, o que só enxerga a si mesmo) está dentro de um automóvel importado ou caro. Os anúncios criminosos são explícitos, como o que declara: "Se você enxergar este logotipo, passe para a direita". Trata-se de um incitamento irresponsável à velocidade, empurrando aço contra a carne humana. E ficam impunes os trefegos canalhas da propaganda, e ficam impunes os por eles persuadidos. Na Unicamp, foi preciso colocar barras de ferro nas calçadas porque professores, funcionários, alunos, sobre elas estacionavam seus automóveis, impedindo mesmo a entrada para a Biblioteca Central da universidade. O número de atropelamentos no campus é assustador.
No diálogo Gorgias, Platão indica que a artimanha lisonjeira (e a propaganda é apenas um de seus casos) oculta-se sob uma arte efetiva. Assim, sob a medicina, surge a cozinha "que faz cara de saber quais são, para o corpo, os melhores alimentos. Se, por acaso, diante de um júri de crianças, for estabelecida a competição entre um cozinheiro e um médico, para saber quem dos dois, médico ou cozinheiro, tem competência sobre os alimentos úteis ou nocivos: o médico deveria, desde o começo, deixar-se morrer de fome!"2. O bajulador assume aparências de fala amiga, o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem lisonjeia, deixa os amigos na hora negra, toda pessoa franca enfrenta o próprio amigo, para seu bem, nunca o abandonando. A lisonja acostuma o corpo e a alma do estudante aos prazeres, o transforma em ser ineducável para a cidade. Certos indivíduos resistem, desde o nascimento, à educação para a cidadania. Como grãos duros, diz o filósofo, eles não amolecem na panela do ensino (Leis, 853 d, 880 e). Do mesmo modo que não se deixa "cozinhar" pela educação, um homem assim não se submete às leis, nelas ele não se funde.
Educar para a vida cidadã, escreve Platão, é como tingir almas. No livro IV da República , no processo de educação dos magistrados, lemos que "educar" uma pessoa é dar-lhe a melhor tintura das leis (República, 420d a 430a).Quem foi assim tingido possui uma opinião indelével sobre o que deve temer e sobre o que deve fazer, pois tal tintura resiste aos sabões tão ativos para descolorir, como o são os prazeres, a dor, o medo e a paixão. Esta imagem aparece também na Carta VII, um dos textos capitais para a epistemologia e a política platônicas. Ali, vemos que a cultura de quem não é filósofo compara-se ao colorido superficial dado pelo banho de sol.
A imagem mais usada por Platão é a do alimento, no processo educativo e ético. No Protágoras (35lb) diz-se que como a força física vem da natureza, e de uma boa nutrição do corpo, assim também a coragem vem da natureza e de uma boa nutrição da alma. Em múltiplas obras de Platão o termo "alimentar" é tomado neste sentido (Alcibíades Iº, Critias, Protágoras, Banquete, Fedro, Teeteto, Timeu, Leis, Carta VII). Na maioria das vezes, "alimentar" une-se à educação, paideia. Este último termo designa, nos estados mais eminentes da educação, uma via para atingir o conhecimento do Bem. Mas quase sempre paideia e alimentação são usados como sinônimos.3
Poderíamos seguir longe, na busca dos entrelaçamentos, dentro da obra platônica, entre educação e cidadania. Falei acima da lisonja. Por que surge a tirania, a partir da licença democrática? Sua causa é o idiotismo, a filáucia, o amor de si mesmo, que geram o discurso enganoso e dissimulado e nos prendem nas armadilhas de oligarcas e tiranos. A filáucia, em Platão e na filosofia ocidental inteira, é o contrário de amizade efetiva. O texto nuclear neste plano, encontra-se no livro de Platão denominado As Leis (Livro V, 73l d). É sintomático que, naquele texto, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido deste idiotismo seja comparado ao "amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres". A paixão impede o conhecimento e a prática do bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos acima de tudo. A frase platônica, referida à filáucia, impressiona: "Há um grande mal, o maior de todos, que o maior número de homens têm, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência, e ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se amor próprio. Acrescentemos que esta ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza e que ela causa nossos erros, pelo afeto que temos para conosco (...) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são de sua propriedade, mas o que é justo".4 Os leitores de Rousseau sabem a importância desta noção, o amor próprio, sobretudo quando este último irrompe na experiência política.
O amor-próprio conduz à tirania plena. Como na cidade licenciosa cada um é amigo cego de si mesmo, todos exigem adesão irrestrita à sua própria egoidade. Como este projeto não pode se realizar, alguns dentre os homens, cuja arte de enganar é mais eficaz, e cujo amor de si é maior, tornam-se governantes, logo assumindo o papel de tirano.Segundo Xenofonte o tirano não pode suportar a amizade. Ele teme e odeia os cidadãos livres que usam a rude franqueza na linguagem. Os membros da polis também o temem, em contrapartida. O governo tirânico é exercício de auto-erotismo e temor generalizado. "Uma das singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira (República, VIII, 567b). O tirano é cercado apenas por homens que, não sendo nem amigos nem inimigos, contentam-se em parecer o que lhe apraz que eles sejam, testemunhando, deste modo, sua ausência de caráter e uma ambição temível para seu próprio patrão".5 O tirano não possui amigos. Ele é o grande solitário, apesar dos muitos parasitas que o cercam, louvando-o com hipocrisia.
A oposição, na cultura grega, entre amigo e adulador, ajuda a compreender a perversidade das relações humanas sob o regime tirânico. A verdadeira amizade tem seu princípio e base na adesão racional e penosa de quem busca reger a cidade segundo a justiça. Uma cidade bem administrada, pensa Platão, é regida pela philia entre seus membros. A metáfora corporal é assumida pelo filósofo. Na cidade justa ocorre algo análogo ao que se passa "quando ferimos um dedo, pois toda a comunidade, do corpo à alma (...) sente o fato, e toda ao mesmo tempo sofre em conjunto com uma de suas partes. Assim, dizemos que ao homem lhe dói o dedo. E, sobre qualquer outro órgão humano, o raciocínio é o mesmo, relativamente a um sofrimento causado pela dor, e ao bem-estar derivado do prazer". Numa cidade livre e justa, ao mesmo tempo, "se a um dos cidadãos acontecer seja o que for, de bom ou mau, a cidade proclamará sua essa sensação e toda ela se regozijará ou se afligirá juntamente com ele"6
Vimos Platão chamar, nas Leis, o amor próprio como o "maior mal" que possa ocorrer na vida humana. Na República esta peste manifesta-se na cidade cujo caminho é tirania: ela é dilacerada, tornando-se múltipla em vez de una. O maior bem reside na vida unitária, como se enunciou acima para as dores e alegrias do ser singular e do coletivo. O pior malefício vem da individualidade posta acima do social, o maior bem ocorre com a união proporcionada pela amizade. Somos derrotados pela tirania alheia, porque nos dobramos diante de nossa própria tirania. Porque só gostamos de ouvir elogios, proibimos nossos amigos verdadeiros de nos mostrar a verdade, somos todos semelhantes ao rei sem roupas da fábula moderna. Seria preciso uma criança, sem treino na dissimulação e na lisonja, para indicar o ridículo de nosso estado. Mas como somos reis despidos, todos nós exigimos elogios às nossas magníficas roupas. Pior: como ninguém enxerga a própria nudez, rimos com a falta de vestimenta alheia.Platão reserva o riso e a comédia para escravos. Hobbes considera o riso execrável, justo por isto: ele seria a demonstração de que somos lobos cruéis, ou hienas, nada mais. Na polis que se dirige para a tirania, cuidamos de nossos negócios, o resto não importa ou é motivo de caçoada. Nela, a nossa "liberdade" pessoal e nossos bens, materiais e anímicos, são tudo. O resto não conta.
Quando leio a descrição platônica da cidade democrática, lembro-me do liberalismo ou do chamado "neo" liberalismo, com seus "executivos financeiros", jovens e belos, destruindo investimentos produtivos e produzindo apenas dividendos nas bolsas, com uma deliberada ignorância do coletivo. Os anos de individualismo desenfreado abrem caminho para o coletivismo brutal. Os anos loucos, ao redor de l920, produziram gente que dançava e bebia sobre o desemprego e o desespero de milhões. Logo após, tivemos as mais espantosas tiranias que o ser humano já conheceu. Vivemos os anos setenta e oitenta sob o signo do mercado absoluto, onde indivíduos espertos valem mais do que empreendedores e operários. Na ciranda financeira ocorreu uma glamorização que, adulando jovens executivos apresentou seu modo de vida como paradigma a ser mimetizado. Não espanta se os frutos começam a surgir, nos movimentos neo-fascistas que se tornam governo, impondo uma nova forma de controle social, abolindo a liberdade dos pobres, dos estrangeiros, dos homosexuais, em primeiro lugar. Depois, seguir-se-á a perda da liberdade coletiva. Repetindo Platão, citado acima: "O excesso costuma ser respondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações do ano, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nos Estados". Liberdade em excesso conduz à servidão em excesso, "para o indivíduo ou para a cidade".7
Com Platão, encontramos algumas razões da imitação perversa entre estudantes e professores, a qual insere-se numa perversão mais ampla, política, onde a lisonja desempenha papel nuclear na passagem da democracia para a tirania, com a perda do sentimento de ser cidadão.
O tirano mais perigoso está em nosso próprio ego, desejoso de se impor ao todo, dilacerando-o. Plutarco, num dos mais importantes tratados políticos do Ocidente, mostra que a lisonja impede o princípio fundamental da sabedoria, o "conhece-te a ti mesmo" délfico.8 Esta cegueira, individual e coletiva, marca uma ética escrava. Colaborando com ela, através da lisonja e da demagogia, professores e homens públicos preparam reinos de medo e de mentiras, baseados na propaganda e na inimizade entre cidadãos. A amizade, deste modo, é princípio político que tece uma ética da liberdade sem licença, cuja disciplina deve ser ensinada, e ministrada com o primeiro alimento. Produzir indivíduos absolutamente livres é loucura que só pode levar à ruína social e à desgraça destes pobres idiotas. Sem amizade, a vida se transforma em inferno, onde o perigo reside nos outros, para falar como Jean-Paul Sartre.
Se todos temos a possibilidade de nos transformar em tiranos, o governante que resulta de nossa idiotia coletiva se caracteriza pelo aspecto mais detestável de todos nós: sobreviver às custas dos outros.Este traço, que nega a amizade na política, foi discutido durante séculos no pensamento filosófico, de Platão aos nossos tempos. Se consultarmos um autor eminente, Elias Canetti, nele encontraremos uma reflexão acuradíssima sobre o problema. Lembro que amizade e inimizade foram tema de constrangimento estatal sobre povos inteiros, no século vinte dominado pelo nazismo e pelo estalinismo. No lado nazista, basta recordar as depurações étnicas geradas pela loucura "científica", a qual decidiu quem poderia ser "amigo" do povo Alemão e de seu Líder. No plano jurídico, tais sandices tiveram seu profeta em Carl Schmitt, sobretudo no texto grávido de horrores cujo título é "O conceito de Guerra e de Inimigo" (l938). Alí se diz que no período da guerra total (Schmitt é o inventor do têrmo "totalitário"), "mesmo setores extra-militares (economia, propaganda, energias psíquicas e morais dos combatentes) são envolvidos nas hostilidades. A superação do dado puramente militar comporta não só uma ampliação quantitativa, mas um reforço qualitativo, acentuando a hostilidade. (...) O conceito de amigo e de inimigo tornam-se por si mesmos novamente políticos e se liberam (...) da esfera dos argumentos privados e psicológicos" 9 Conhecemos os resultados desta teoria sobre o amigo e o inimigo: a guerra total abatendo-se sobre civis e sacrificando, com predileção assassina, seis milhões de judeus, mais os ciganos, e outros povos "inferiores".
No lado estalinista, do próprio Stalin até Ceaucescu, passando pela "pequena e heróica Albânia", para atingir os porões aterrorizantes da Stasi alemã, há muito o que dizer sobre a distinção entre os "que são amigos ou inimigos do Povo". O tirano da hora, o infalível Partido, declarava quem era amigável ou hostil ao proletariado. Em l939 a loucura chegou ao ponto do estalinismo proclamar Hitler amigo da massa operária mundial. "Estratégia" do gênio onisciente que dominava no Kremlin, ou cinismo de potência, o resultado foi uma enorme pilha de cadáveres na Polônia e alhures. Hitler ou Stalin, com seus êmulos menores e piores, são possibilidades sempre abertas quando não se reflete, em termos éticos, sobre a questão da igualdade cidadã, à luz das noções de amizade. Um concidadão jamais brota da natureza: ele é formado num longo processo educativo, para aprender a relativizar seus desejos e seus impulsos tirânicos. Uma pessoa que não foi educada para a cidadania, quando assume postos de governo, não pensa no coletivo, mas apenas na sua própria egoidade. Ela se torna um sobrevivente à custa de todos os demais. Para este tipo de governante, é pouco significativo que milhões morram ou sejam massacrados. O que lhes importa é sua manutenção nos cargos de mando.
Imanuel Kant, nos seus escritos pedagógicos, repete as lições de Platão, de Erasmo de Roterdam, de J.J.Rousseau : se uma criança de berço chora, dizem estes autores, é preciso acudí-la, para saber se experimenta alguma dor ou incômodo. Se no dia seguinte o choro se repetir, e não for encontrado motivo para ele, deve-se deixar que o infante berre a vontade. Deixar-se dominar pelo seu berro é educá-lo para a tirania de sua vontade. Se ele não encontrar obstáculos ao seu anseio de mando, e não perceber que outros existem no mundo, ele acarinhará cada vez mais o próprio ego, às expensas dos demais. Todo sujeito humano, pensa Kant, precisa encontrar limites à sua vontade, para se tornar realmente um sujeito livre, e não arbitrário e despótico. Quem se acostumou com o arbítrio do próprio eu, não imaginará ser estranho que outros sejam submetidos ao querer despótico de um professor, de um governante, ou de...um Deus. A liberdade, arremata Kant, ergue-se sobre o respeito sublime pela nossa própria pessoa, e pela pessoa de nosso igual. Erasmo de Roterdam dizia, no seu tratado sobre a educação do príncipe, que os cavalos seriam um ótimo exercício contra as tendências tirânicas do futuro governante: as alimárias, desconhecendo a lisonja, jogam para fora da sela quem, príncipe ou plebeu, não obedece as regras da equitação.
São translúcidas e impiedosas as páginas dedicadas por Elias Canetti à analise do amor de si, da amizade e do poderoso como sobrevivente. Lemos em Massa e Poder: "na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro; comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita importância (...) o sobrevivente deve estar sozinho diante de um ou de vários mortos. Ele se vê só, sentindo-se só, e, quando se fala do poder que o momento da sobrevivência lhe confere, jamais devemos esquecer que ele deriva da sua unicidade (os grifos são de Canetti) e somente dela". Todos ficamos satisfeitos quando nosso corpo e alma sobrevivem aos demais. Um monte de cadáveres estimula nosso sentido de sobrevivência isolada. Testemunhamos uma pedagogia assassina e genocida da imagem, na imprensa que exibe corpos de assassinados. Os que sobreviveram se comovem na pele, mas no íntimo, o mais freqüente é o regozijo, inconfessável, pelo massacre dos outros. As cenas dos caixões do Carandiru ou da Candelária, excitam os que vivem. Quando ocorreu em São Paulo o incêndio do Edifício Andraus, repetido pela destruição do Edifício Joelma, a massa humana que rodeava as construções excitava-se, como num jogo erótico, todas as vezes que um infeliz se precipitava no ar, esfacelando-se nas calçadas. Não faz muito tempo, o programa "Aqui e Agora" filmou e exibiu o suicídio de uma jovem no centro de São Paulo, as cenas fariam o Marquês de Sade parecer um casto e respeitoso defensor dos direitos humanos.
Laurent Dispot, escritor francês preocupado com os nexos entre a mídia televisiva, o terrorismo, e a educação cidadã, dizia que o máximo da violência ocorrerá quando um refém for executado, pelos sequestradores, diante das câmaras, ao vivo. Não estamos longe deste evento, aumentando a audiência da televisão que tiver esta ventura. "A satisfação de sobreviver" afirma Canetti, "uma espécie de volúpia, pode transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela cresce de acordo com as ocasiões. Quanto maior for o monte de mortos diante dos quais alguém ergue-se com vida, quanto mais freqüentemente se viver estes momentos, tanto mais intensa e mais imprescindível torna-se esta necessidade de sobrevivência".
Se todos os entes humanos partilham essa loucura, o poderoso a eleva ao máximo. Todos os governantes, de um modo ou de outro, "fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo. O condutor quer sobreviver, ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus próprios amigos. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente, afinal, é para isto que eles são inimigos. Os amigos só podem ser utilizados às escondidas".
Uma pergunta que raramente é respondida, quando se trata da sobrevivência política, é relativa ao que ocorre depois de nossa morte física. Os poderosos querem sobreviver na lembrança dos homens, mas não raro esquecem que os meios utilizados para este mister farão deles imagens aterrorizantes do medo, do pavor, da morte. Ou da covardia. Quando vivos, os aduladores dão-lhes uma espécie de "imortalidade" forçada. É o que se passou com o Führer, com o Pai dos Povos soviético, com o Grande Timoneiro chinês, com o Pai dos Pobres brasileiro. Este último foi conduzido, pelos bajuladores, à "imortal" Academia de Letras. Mas quando seus corpos desaparecem, a verdade bíblica a seu respeito surge impiedosa : "Tu és pó, e ao pó retornarás". É preciso, no ensino da cidadania, mostrar que a imortalidade, caso não seja religiosa e aí cada crença possui uma doutrina própria e se refira à vida civil laica, secular, só pode ser atingida através da elevação da alma, e não de sua venda no leilão econômico, político, ideológico. Um país que não valoriza, na formação de seus jovens, os dotes do espírito, os dons intelectuais, está fadado à morte, à insignificância.
Elias Canetti termina o seu capítulo sobre a sobrevivência e as armadilhas da amizade, discutindo o trabalho intelectual, filósofico e literário. O escritor, e Canetti toma Stendhal como exemplo, escreve no presente para poucos, sabendo que muitos o lerão no futuro. Ele continuará existindo quando os outros estarão mortos. Mas o escritor não mata ou manda matar os seus rivais, como o faz o governante tirânico. Ele opta pela companhia dos que são autores de obras lidas ainda hoje, "daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos". Deste modo, no mundo da escrita artística e especulativa, "matar para sobreviver nada significa (...) porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais vivo pessoalmente e, por conseguinte, não se poderá matar. Serão as obras que se enfrentarão, e será tarde para acrescentar alguma coisa. A rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não estão presentes. O combate que será travado por suas obras nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas esta obra precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor quanto o maior".
É fantástica essa oposição entre a sobrevivência do grande escritor e a sobrevida gozada pelo poderoso. Ensinamos, nas nossas escolas e famílias, em demasia, as artes de sobreviver no mercado econômico ou político. Esquecemos de expôr o caminho da sobrevivência verdadeira. Maquiavel afirmava entrar em seu escritório, à noite, depois de uma vida diurna prosaica e sem maiores méritos, para conversar com Platão. É semelhante reino da cultura, o qual Hegel nomeava a corrente dos grandes pensadores que definem o espírito do mundo com seus "heróis do pensamento", é este o plano visado por Canetti, ao descrever a sobrevivência almejada pelo homem de bem, o cidadão na sua plenitude. "Trata-se", diz Canetti, " do oposto daqueles donos do poder que arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca (...) Eles matam em vida, matam na morte, um séquito de mortos os acompanha para o além".
Contra as manobras para a sobrevida do político demagógico ou tirano, temos a sobrevivência do escritor. "Quem abrir um volume de Stendhal torna a encontrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos, nesta reversão da oferenda aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim"10
Os senhores podem perceber, agora, porque evoquei longamente o ensino, a lisonja, a amizade, a demagogia, o excesso que conduz ao regime tirânico, como intróito para a questão do vínculo entre educação e cidadania. A escola brasileira, do primário à universidade, desde seu início, colocou-se entre duas éticas opostas, a do sobrevivente político, continuada pela ética do sobrevivente dos negócios, e a ética do trabalho espiritual, com uma dimensão diversa do tempo. Mas este prisma não é privilégio brasileiro.Torna-se muito instrutivo ler os textos do Prof. Jacques Le Goff sobre o nexo entre universidade e poderes na época de sua gênese. Em meu livro intitulado Lux in Tenebris procurei acompanhar as notas do historiador , mostrando que a universidade, do Renascimento em diante, assumiu a ética da formação dos técnicos e dos manipuladores do poder. Com o reitor Gerson, a Universidade de Paris chegou a elogiar o tirano, "desde que os habitantes do reino durmam sossegados, sem perder suas galinhas". Le Goff mostra que os campi tornaram-se "polícias", servindo para reprimir os engenhos inventivos que semearam a Europa na Renascença e na modernidade.
Basta, para indicar o quanto os campi estiveram longe da gênese democrática e do saber moderno, enumerar os pensadores decisivos para o engendramento de nossa cultura mais elevada, notando que eles pensaram fora e contra a universidade. De Bacon até Sartre, passando por Descartes, Espinosa, Pascal e tantos outros, com raras exceções acadêmicas, como Kant e Hegel, o essencial da cultura deu-se extra muros, longe das reitorias e dos conciliábulos burocráticos da universidade. Qualquer estudioso da filosofia enrubesce ao ler a carta de Espinosa ao Eleitor Palatino, rejeitando uma cátedra em Heidelberg, porque recusava aceitar um limite para sua liberdade de pensamento. Quantos intelectuais, hoje, possuem esta coragem ética e cidadã?
Mesmo Kant, professor apegado às salas de aula, criticou com virulência a universidade de seu tempo, submissa à Igreja ou ao Estado e contrária ao saber. A sua obra imortal, O Conflito das Faculdades que lhe valeu muita dor de cabeça, junto com A Religião nos Limites da Simples Razão, é um libelo contra as faculdades que servem para manter a sobrevivência dos poderosos. As ditas faculdades, sabemos, eram a de Teologia, Direito, Medicina. Excluindo a Teologia, hoje um pouco desprestigiada junto aos governos, as outras continuam a tradição de produzir especialistas em domínio legal, enganando a massa com normas jurídicas não raro sofísticas, com base na força física inconfessada. As faculdades de medicina continuam produzindo milhares de pessoas interessadas no lucro a ser extraído do Estado e dos particulares. Como o governo é mau pagador, quem termina enriquecendo os discípulos de Hipócrates são os particulares.
Há muito que refletir sobre a união entre o ensino "especializado" nestas Faculdades, e a caixa registradora.Sempre que ouvimos a pergunta, nos consultórios médicos: "com recibo ou sem", devemos nos interrogar a respeito do ensino ético dado a estas pessoas, e acerca de nossa responsabilidade social. Num país onde 50% dos impostos são sonegados, torna-se urgente discutir os métodos e as bases axiológicas que produziram indivíduos que traficam com a saúde. Por outro lado, os que se dedicam ao público, como os professores secundários e médicos do serviço oficial, ou abreviam sua estadia nos ambulatórios e salas de aula, na busca de sobreviver com os famosos "extras", ou são tratados pelos governantes como profissionais de última categoria. Com isto, se degrada não apenas os serviços, mas o ensino sobre o valor da vida humana e da cidadania.
Na oposição entre os dois alvos a submissão aos poderosos ou o trabalho para a cultura reside a força que dirige a sociedade para o plano imortal, que servirá para alimentar (gostaria, se me permitem, lembrar as notas platônicas sobre a comida, as quais abordei no seu vínculo com o ensino, no começo) as pessoas que viverão daqui a mil anos, ou ajudará a produtividade que traz dinheiro e honras para os poderosos . Hoje, nas escolas, enfrentamos duas pressões. A primeira, cada vez mais tênue, é a da grande cultura científica e técnica que produziu Platão, Leonardo da Vinci, Leibniz, Espinosa, Descartes, Diderot, as Luzes. A outra vem dos que vivem para a inimizade e para a destruição do que é uno na sociedade e na política. Com isto, em nossas escolas agonizantes (não sou trágico, apenas expresso o que existe), some a idéia de unidade do saber e da prática cidadã.
Com isso, enfrentamos outro problema: a educação técnico-científica das massas. Desde o Renascimento produziu-se o sonho de uma difusão universal do saber, podendo-se mesmo falar num "milenarismo" científico-pedagógico. Bacon, Comenius, Erasmo, estes nomes são conhecidos pelos historiadores da educação. Um trabalho importante, nesta linha, é o livro de Charles Webster, The Great Instauration, Science, Medicine and Reform, l626-l660.11 Nele esgotam-se as análises das sugestões da frase profética lida no livro de Daniel (l2,4): "Plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia". Vale a pena lembrar o trecho inteiro: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão , uns para a vida eterna, outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios resplandecerão, como o fulgor do firmamento, os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrêlas sempre e eternamente. Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo do fim; muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará" (trad. João Ferreira de Almeida). Este grito de guerra, ligando saber e vida nova, dominou a Europa científica e pedagógica, no mesmo instante em que as escolas, inclusive as universidades, serviam aos poderosos da hora, a Igreja oficial e o Príncipe.
Desse brilho profético e pedagógico surgiram as Luzes, no século l8, movimento dividido entre adeptos de um saber acessível a poucos e os propagandistas de um saber ampliado ao maior número possível de pessoas. Infelizmente, no Brasil, como não pudemos recolher toda a herança das Luzes, apagadas pela repressão militar e policial na Colônia, costumamos denegrir este movimento, ligando-o unicamente à famosa burguesia. Parece-me muito estrito e estreito este juízo, sobretudo porque a ausência dos saberes foi suprida pela ignorância fabricada nos governos e nas sacristias. Perdoem-me os defensores da pedagogia jesuítica e dos supostos benefícios trazidos pelos inacianos ao Brasil. Mesmo aceitando sua contribuição para atenuar a barbárie dos colonizadores - e isto é matéria disputada em plano histórico - a política global de nosso colonizador dirigiu-se para afastar nosso povo do entusiasmo gerado no Renascimento e na modernidade européia. E isto afastou de nós a prática cidadã.
O resultado está aí: massas analfabetas conduzidas, na política, através de novelas e de noticiosos demagógicos. Quem, entre nós, é cristão, tem muito o que pensar sobre o peso eclesiástico nesta idiotia generalizada da massa brasileira. A crença nos milagres, que a Igreja sempre procurou administrar com prudência, aqui adquiriu foros de realidade permanente. Basta lembrarmos os anos do milagre ditatoriais, sob o mago Delfim, o plano Cruzado, a salvação collorida, a adesão a-crítica e desesperada aos "planos". A fórmula é tudo, menos raciocinada: "tem que dar certo". Esta é mais uma "épode", como diriam os gregos, um encantamento repetitivo que hipnotiza a massa e muitos intelectuais, retirando-lhes a capacidade de pensar.
O pêndulo entre adesão misóloga e desencanto absoluto corrói a cidadania brasileira. Todo governante responsável, antes de impôr esperanças messiânicas ao povo, deve refletir muito sobre esta corrosão que opera em longo prazo, destruindo a fé pública, conditio sine qua non de qualquer Estado democrático. Há quem ache graça nas manifestações de cinismo no povo, do tipo: "ele rouba, mas faz.". Isto não prenuncia uma gente livre e franca. E a franqueza é atributo essencial da liberdade. Os que hoje utilizam o poder com regras casuísticas, deseducam o povo, no desejo de ganhar eleições. Esta atitude corrompe todas as fibras da república. Os poucos privilegiados pela situação econômica brasileira, estruturalmente injusta, com seus carros Audi ou BMW, suas canetas Montblanc, seus telefones celulares, o famoso "kit imbecil", não sabem que engenhocas "modernas" não substituem a lealdade e a franqueza amiga, fundamento essencial da cidadania. A classe média brasileira, sobretudo a que se alimenta dos despojos internacionais da produção efetiva, é flutuante e aduladora. Como todo segmento sem capital próprio e sem as mãos como único recurso de vida, ela vive, como diria um hegeliano, "em outro", ou, como poderíamos dizer, "de outro", como vampiro pós-moderno.
Se a classe média é presa da idiotia, de outro lado não podemos esquecer as tentativas fracassadas para produzir e comunicar saberes urgentes ao povo. Num artigo sobre o pensamento de Diderot, Roland Mortier relata os projetos feitos por este último de produzir uma "filosofia popular". Um texto anônimo, atribuído a Dumarsais, lembra Mortier, intitulado Essai sur les Préjugés, enfureceu Frederico II, um dos poderosos sobreviventes mais adeptos de mentir ao povo dentre os que já existiram no planeta. Todos conhecem a pergunta, formulada por Frederico, sobre se é lícito mentir ao povo. A resposta do militar e burocrata moderno é óbvia, ela já existia antes dos textos chegarem à Academia Prussiana. Frederico lê Platão seletivamente. Dele, reteve apenas que só ao magistrado é lícito mentir ao povo. O resto e o entorno foi jogado às traças. O autor do Essai sur les Préjugés mostra que não existe política sem verdades ditas à população. O intelectual deve a verdade aos seus semelhantes, aos concidadãos, ao gênero humano. "Ele é desumano e sórdido quando recusa partilhar com eles o tesouro que descobriu".
Cabe ao Estado, mantido pelos cidadãos, expandir o conhecimento descoberto pelos cientistas. Assim, a "experiência e o hábito chegam a facilitar ao homem do povo, ao mais grosseiro artesão, operações muito complicadas. Temos, pois, o direito de duvidar que o hábito e a experiência lhe facilitem do mesmo modo os conhecimentos mais simples dos deveres e da moral e os preceitos da razão, dos quais evidentemente depende sua felicidade?".Note-se a insistência no termo "hábito", tanto para a vida científica quanto para a vida moral. Não por acaso este é o termo que, em nossas línguas modernas, utilizamos para traduzir a palavra grega "ethos". Sem estes hábitos, o homem do povo fica preso às paixões dos poderosos, ou se entrega às próprias paixões. Neste ponto, nosso autor anônimo apresenta uma dúvida que até hoje, ou talvez, sobretudo hoje, atravessa nossa prática educativa. Os livros úteis, diz ele, parecem não terem sido escritos nem para os grandes, nem para os pobres. "Uns e outros quase não costumam ler. Os grandes, diga-se, acreditam-se interessados com a perpetuação dos abusos, e o povo miúdo não raciocina". Deste modo, conclui o autor, "todo escritor deve ter em mente a parte média de uma nação".12
Todo o esforço das Luzes foi o sonho de tornar acessível o saber ao maior número. Até hoje suas sugestões estão aí, recusadas que foram pelo clero conservador e seus êmulos, e assumidas pelos liberais democráticos e socialistas, herdeiros da utopia científico-pedagógica renascentista. Roland Mortier reflete, na obra citada, sobre o fracasso do "projeto" diderotiano de uma filosofia popular. Ele mostra que duas ordens de fatores definiram este fracasso. Primeiro, a separação feita sobretudo pelos ideologues, herdeiros da Enciclopédia, mas limitados nas suas pretensões pelo governo tirânico de Napoleão I entre técnica e pesquisa teórica. Esta redução extraiu a profundidade nas suas exposições "científicas". Outra causa é a que já foi indicada: imaginando-se uma elite separada e acima do povo, sobretudo na época da Contra-revolução termidoriana, o grupo dos acadêmicos separou-se das camadas populares. Se tiveram brigas com o grande tirano, não é menos verdade que tinham medo da união com o povo miúdo. O reinado das massas, com Robespierre e a máquina inventada pelo Dr. Guillotin, ainda estava fresco na memória.
Depois desse momento, houve a corrida dos socialistas utópicos, todos se imaginando pastores científicos da multidão proletária, com direitos à infalibilidade na condução dos negócios sociais. Neste clima, o comtismo, com seu "poder espiritual", projetou um ensino técnico redutor da cidadania. É conhecido o mote positivista sobre o operário que é cidadão apenas no interior da fábrica. O marxismo, pensamento científico nos moldes do século passado, não escapou da separação entre elites pensantes e massa dirigida. Nas experiências ocorridas de fato, e não nos escritores vencidos, ele aprofundou o abismo entre pesquisa e população. Enquanto tudo isso ocorria, a universidade seguiu seu passo de tartaruga, imprecando as massas por sua ignorância, e aderindo sem vergonha aos vencedores da hora. O fisiologismo universitário seria matéria de uma longa pesquisa histórica e sócio-psicológica.
Até hoje enfrentamos um problema fundamental: como assumir o desafio da necessária formação técnica e cidadã das massas, conditio sine qua non de sobrevivência coletiva no século 2l ? Uma pergunta continua de pé: qual a base ética das nossas escolas, do ensino elementar à universidade, para produzir o ensino profissionalizante, se nelas o que se visa é a produção de elites, elites estas, diga-se, cada vez mais degradadas e proletarizadas? Estes desafios se emaranham na reflexão sobre o ensino da cidadania. Não tenho resposta para tais pontos. E considero mentiroso quem diz ter soluções rápidas e seguras para semelhantes aporias. Penso que uma saída é o empenho junto aos partidos democráticos, pelo menos em setores deles, para que se transformem em educadores coletivos, com ajuda dos mestres, visando, em prazo longo, mudar a atitude das massas diante dos donos do poder. Para isto, a receita é a mesma recomendada por Platão: disciplina e escolha criteriosa dos objetos a serem estudados. Outro ponto desta receita é fugir da lisonja e da demagogia. Outra recomendação ética é a fornecida por Elias Canetti: deixar de fornecer apoio para a sobrevivência dos tiranos que "roubam mas fazem".
Se nos desinteressarmos e não enfrentarmos o problema da formação técnica e cívica das massas, ficaremos sozinhos nos campi, nas igrejas, nos partidos. Sem assumir questões como a do ensino técnico-científico, vinculado à cidadania e aos direitos humanos, ficaremos reduzidos à situação dos estabelecimentos italianos de ensino, em l803, quando Roma estava ocupada pelas tropas francêsas. Perguntado sobre a atitude dos governantes estrangeiros face às escolas públicas, um professor respondeu: "Elas são toleradas, como os bordéis"13 Se optarmos pelo "realismo", e pela busca de sobrevivência política ou economica individual, certamente não impediremos que nossas escolas se transformem em prostíbulos do espírito. Elas estarão em consonância com o que ocorre, às vezes, no Congresso Nacional. Mas para mudar, rumo ao melhor, o Parlamento, urge redefinir nossa prática cotidiana no universo escolar, na sociedade, nos partidos políticos. O que fizeram de nós, retomemos Sartre, pode ser modificado. Mas para isto é preciso disciplina, rigor cívico, espírito democrático. Esperemos que estes elementos aumentem em nosso convívio, se quisermos escapar, no milênio próximo, à pura e simples barbárie.
1. República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1980.
2. Gorgias, 464 c-e; Trad. francesa de Robin, L. Pleiade, T. I
3. Para todos estes pontos, cf. Pierre Louis, Les Metaphores de Platon, Rennes, Imprimeries Reunies, 1945.
4. Cf. Leis, V, 731 e. Trad. francesa Robin, L. Pleiade, página 784; trad. Loeb, página 338-339.
5. Cf. Fraisse, Jean-Claude, Philia, la Notion d' Amitié dans la Philosophie Antique, Paris, Vrin, 1984, página 169.
6. República, 462 a-e, trad. Gulbenkian, páginas 23l-233.
7. Cf. República, Ed.Loeb,Oxford, página 3l2; Ed. portuguesa Fundação Gulbenkian, página 399).
8. Cf. "De Discernendo Amico ab Adulatore" , ed. Loeb, Moralia,V.1, trad. Babbit, F.C., l986, página 267. Tradução brasileira Isis Borges B. da Fonseca. in Como Tirar Proveito de seus Inimigos. SP. Martins Fontes, 1997.
9. Cf. Le Categorie del 'Político', l972, Bologna, Il Mulino, páginas l93 e seguintes.
10. Massa e Poder. Ed. Universidade de Brasilia. 1986.Páginas 251-309.
11. London, Duckworth, l97511. London, Duckworth, l975
12. Cf. Roland Mortier, "Diderot et le Projet d'une 'Philosophie Populaire'. In Revue Internationale de Philosophie, "Diderot et l'Encyclopédie -l784-l984-, nº l48-l49, fasc. l-2, l984, páginas l82-l95.
13. Cf. Hegel, G.W.F. "Prefácio" à Filosofia do Direito, trad. francêsa de R, Derathé, Paris, Vrin, l975, página 53.
"Um Estado injusto na sua política interna deve necessariamente desejar a espoliação dos seus visinhos, pois alí ele ofereceria algum ressarcimento aos seus cidadãos frustrados ao mesmo tempo que desvelaria novas fontes de recursos". (Fichte, resenha sobre o Projeto de Paz Perpétua de Imanuel Kant, no Philosophisches Journal, 1796).
Palavras atuais, muito atuais....
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