Vai passar
O perdão para Arpaio é um gesto de jogar carne vermelha e distração para as feras
Lúcia Guimarães,
O Estado de S. Paulo
28 Agosto 2017 | 02h00
28 Agosto 2017 | 02h00
A campainha tocou pouco antes das sete da noite. Estamos no
horário de verão e a luz que entrava pela janela da cozinha ainda
bastava para pilotar meu fogão. Como acabo de me mudar e só conheço uma
pessoa no bairro, diminuí o fogo da panela intrigada, abri a porta e
ouvi a pergunta à queima roupa: “Você é judia?”. Meio atordoada,
respondi, “Não sou religiosa” e balbuciei mais algumas palavras.
Impaciente e aflita, a mulher que mora no apartamento à frente do meu me
interrompeu: “Você é ou não é judia?” Imediatamente me dei conta de que
era sexta-feira, o sol tinha se posto e havia começado o shabat. Minha
vizinha, como eu esperava, tinha um problema. “Aconteceu alguma coisa e
eu não consegui desligar meu forno,” ela explicou.
Saí descalça atrás dela, atravessei a sala já cheia de
bandejas de comida que me abriram o apetite e desliguei o forno
controlado por um painel eletrônico digital. Ela me agradeceu como se eu
tivesse lhe dado abrigo numa tempestade e se desculpou várias vezes
seguidas, supondo que, aos meus olhos, a situação devia parecer
absurda.
“Por
favor, sempre que precisar, peça ajuda,” insisti. Minha intenção era
deixar claro que não estava julgando a racionalidade do que, na minha
cozinha, não seria um drama e sim dois toques num painel de controle.
Meu novo edifício é um microcosmo do que ajudou a tornar Nova York a
metrópole do século passado. Tem um alto número de moradores judeus
ortodoxos e também hasídicos, como o proprietário que, além de me
convocar para uma entrevista, me fez escrever à mão, estilo redação do
Enem, uma carta explicando por que queria morar no prédio dele. Fiz tudo
certo até cometer a gafe de lhe estender a mão para me apresentar. A
mão ficou no ar, claro, ele não poderia tocar uma mulher. Mas se
apressou em puxar conversa para aplacar meu embaraço.O prédio tem
dominicanos de baixa renda, possivelmente com alugueis de contratos
antigos que são uma fração do meu. Tem asiáticos, imigrantes europeus e
jovens universitários mais afluentes. A maioria me recebeu com um “você é
nova aqui?” ou, simplesmente, “bem-vinda,” inclusive o senhor ortodoxo
do terceiro andar que, ao me ouvir dizer muito prazer, fez um ar
assustado, mas logo relaxou quando viu que não produzi a mão estendida e
me contou sobre a história do bairro, enquanto íamos levar o lixo no
subsolo.
Na
noite de sexta-feira, ao sentar para saborear minha refeição agnóstica,
meu estômago embrulhou quando a tela do celular acendeu com um alerta:
“O presidente acaba de perdoar o xerife Joe Arpaio”. Racismo não basta
para descrever Arpaio, condenado por desacato à Justiça num caso de
discriminação racial. Ele chegou a descrever orgulhosamente sua cadeia
como um campo de concentração. Poucos chefiaram um bando de sádicos como
Arpaio, que fizeram desfile de detentos latinos acorrentados pelas
ruas. Ou quase quebraram o pescoço de um detento paraplégico depois que
ele pediu um cateter. Ou exibiram uma excepcionalmente alta taxa de
suicídios não investigados dentro das celas. Os contribuintes do Condado
de Maricopa, no Arizona, onde Arpaio manteve seu reino de terror entre
1993 e 2010, já desembolsaram US$140 milhões de dólares para pagar
vítimas do homem que o presidente descreve como herói.
Não há a menor dúvida, o perdão para Arpaio é um gesto
de jogar carne vermelha e distração para as feras da minoria de
americanos que vê no outro a fonte de seus problemas. Por lei, aceitando
o perdão, Arpaio, aos 85 anos, aceita culpa e vai viver o resto dos
seus dias pagando advogados para se defender de uma enxurrada de
processos civis.
O sorriso amistoso da vizinha que habita um mundo tão
outro, a metros do meu, me ajuda a lembrar que Arpaio é a deformidade.
Meu edifício, a realidade.
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